Isabel Allende é nome consagrado na literatura. A Casa dos Espíritos (1982) é seu livro mais conhecido e os elementos ali presentes fizeram com que ela fosse colocada, juntamente a pouquíssimas escritoras – as mexicanas Elena Garro e Laura Esquivel – entre os nomes do Realismo Mágico Latino-americano. Escreveu outros 22 títulos, entre os quais Paula e Eva Luna. Juntos, são mais de 70 milhões de exemplares vendidos pelo mundo e traduzidos para 42 idiomas. Já recebeu mais de 60 prêmios literários, entre os quais o “Prêmio de Literatura do Chile” (2010), o “Prêmio Hans Christian Andersen”, na Dinamarca (2012) e a “Medalha da Liberdade”, nos Estados Unidos, a mais alta distinção civil do país. Em 2018, Allende tornou-se a primeira escritora de língua espanhola premiada com a medalha de honra do “National Book Award”, nos Estados Unidos.
Na seção de “agradecimentos” em sua obra mais recente, Mulheres de minha alma. Sobre o amor impaciente, a vida longa e as boas bruxas, a autora assumiu ter recebido de seus agentes a sugestão para escrever sobre Feminismo. Optou por se afastar do gênero que a consagrou e com o qual tem maior familiaridade, o romance, escolhendo o autobiográfico para desenvolver a narrativa.
A escrita foi iniciada em 2020, no começo da pandemia do Covid-19, quando Allende iniciava um relacionamento na maturidade, aos 78 anos. Com uma tirada humorística, presente em outros trechos, brincou, afirmando que deveria estar produzindo um romance inspirado em García Marquez: “Amor nos tempos de Coronavírus” e prosseguiu, levantando dúvidas sobre a resistência da relação recente diante da convivência estreita e fechada.
Diferentes motivos levarão leitoras(es) a se aproximarem desta obra. O sobrenome Allende desperta interesses em um grupo significativo na América Latina. Nesse sentido, é preciso atenuar expectativas já que no texto as perspectivas e objetivos da autora são outros. Diferentemente de grandes nomes da política ou da cultura latino-americana que fizeram uso dessa prática cultural para afirmar a identidade e estabeleceram amálgamas entre história pessoal e nacional, entre sujeito e nação, Isabel Allende se afasta deste modelo. Optou por apresentar-se como “eterna estrangeira”, evidenciando seu distanciamento dos países com os quais tem relações de origem. Por circunstâncias relacionadas aos ofícios do pai, que exercia um cargo diplomático, a escritora nasceu no Peru. Ainda na infância, quando sua mãe foi abandonada com dois filhos pequenos e um recém-nascido, dirigiram-se ao Chile, onde viveu a infância e juventude, em convívio com os avós maternos. Com o golpe militar, em 1973 exilou-se na Venezuela, onde atuou como jornalista e desde 1987 vive na Califórnia, nos Estados Unidos.
Quem, por acaso, venha a se frustrar por não encontrar na obra uma quantidade satisfatória de citações à América Latina, ao Chile ou a Salvador Allende, precisa saber que a escritora não pode ser acusada de ignorar a realidade latino-americana. Alguns de seus romances, inclusive o primeiro e mais famoso, trazem referências ao período ditatorial do ditador Augusto Pinochet. Noutros, aspectos da colonização, nos quais discorreu acerca da presunção de superioridade dos colonizadores e fez menções às consequências políticas, econômicas, sociais e culturais para os povos colonizados.
O que esperar deste livro da consagrada escritora? Trata-se de um texto autobiográfico e é interessante que, ao tomá-lo como opção de leitura, as características do gênero sejam consideradas. Boa parte dos sujeitos que produzem uma autobiografia fazem-no no acaso da vida. Voltam-se aos fatos pretéritos e, por meio da escrita, (re)elaboram literariamente o passado, buscando dar sentido à experiência vivida. Puxam fios de reminiscências considerados dignos de registro, selecionam alguns fatos, excluem ou omitem outros, procurando afirmar uma identidade que desejam que seja reverberada na posteridade.
No exercício de elaboração do “eu”, uma das estratégias bastante recorrentes entre autobiógrafos(as) e identificável no texto de Allende, está a proposta de uma “utopia unificadora”. Segundo Phillippe Lejeune, um dos grandes teóricos do gênero autobiográfico, no ensejo de convencer acerca da identidade que se deseja afirmar, por estar voltada ao passado e buscar abarcar “uma vida” e para dar unidade ao eu, é frequente o recurso do “sempre”. Selecionando memórias de seu percurso de vida, desde a infância até o presente, Allende aponta a identidade e a representação com as quais quer se ver reconhecida: Feminista.
No primeiro parágrafo se adianta a dizer: “Não exagero ao dizer que fui feminista desde o Jardim da Infância, antes que o conceito fosse conhecido em minha família” (p. 7). Noutro capítulo, mais à frente, reafirmou a tese do “sempre fui feminista”, articulando-a ao conteúdo da independência econômica. De posse de um discurso representativo do feminismo liberal, evidenciou contribuições de uma grande referência do pensamento feminista, Virgínia Woolf, em Um teto todo seu. Nas descrições sobre requisitos necessários para que uma mulher pudesse escrever ficção, Woolf afirmou a imprescindibilidade de um lugar sossegado para escrever, certa independência financeira e validação social. Allende a parafraseou com as seguintes palavras:
Não há feminismo sem independência econômica. Isso eu já vi nitidamente na infância, com a situação de minha mãe. Nós, mulheres, precisamos dispor de recursos próprios e administrá-los, e para isso há necessidade de instrução, capacitação e um ambiente laboral e familiar adequado (…). Se eu digo que era feminista aos cinco anos (e com muita honra), não é porque eu lembre, visto que isso ocorria em nível emocional, antes do uso da razão, mas porque minha mãe me contou. Já então Panchita vivia atemorizada pela filha estranha que lhe coubera por destino. Quando eu era menina, na casa do meu avô, os homens da família tinham dinheiro, automóvel, liberdade para ir e vir à hora que lhes desse na veneta e autoridade para tomar todas as decisões, até as mais ínfimas, como o menu do jantar. Minha mãe não tinha nada disso e vivia da caridade do pai e do irmão mais velho; além disso, gozava de pouca liberdade, porque precisava zelar pela boa reputação. Quanto daquilo eu percebia? O suficiente para sofrer. (…) Meu avô dizia que quem paga manda. Esse é o primeiro axioma que incorporei a meu nascente feminismo” (p. 128, 129 e 130)
Escrever sobre mulheres não é novidade nos textos desta jornalista que ganhou fama como romancista. Grande parte de seu público leitor é feminino, bem como a maioria das personagens principais de suas histórias. Quem conhece alguns de seus títulos tem dimensão dos esforços de Isabel Allende em inserir discussões de gênero e referências às lutas feministas em suas obras. Em A Casa dos Espíritos, traz, com a personagem Nívea, menções aos primeiros movimentos feministas do século 20. De forma mais sutil, tratou de assuntos como libido e liberdade feminina, mencionando a castração dos desejos de mulheres, em Filha da Fortuna.
Em Mulheres de minha alma, porém, a autora abre mão do subterfúgio das personagens ficcionais, falando em primeira pessoa, e o faz tecendo um amálgama entre o social – neste caso, concentrando-se nas mulheres – e o pessoal. O título permite algumas interpretações sobre quem seriam elas. Allende citou, literalmente, a mãe, a filha Paula, morta em 1992, vítima de uma rara doença sanguínea, e outras três muito próximas: Lori, Mana e Nicolle, ao elaborar a dedicatória. Mas há possibilidades de se considerar a inclusão de outras figuras femininas que a marcaram, ao grafar “e outras mulheres extraordinárias de minha vida”, no trecho referido. Sua admiração e gratidão a elas ficaram registradas no corpo da obra, por meio de referências diretas e indiretas. Ao fazê-lo, a escritora deixou evidente algo que é uma constante na prática e no pensamento feminista e de igual modo em outros movimentos sociais: o reconhecimento de que as conquistas desfrutadas no presente são a soma das reflexões teóricas e das práticas políticas das (os) que vieram antes e continuarão necessárias da parte de quem vier depois.
Por meio de capítulos curtos, a autora tomou uma série de assuntos caros ao movimento feminista, relacionando-os à sua vida pessoal. Usou seu sentimento de inadequação ao padrão europeu para discutir o tema da “beleza’, um dos estereótipos relacionados ao feminino. Munida de doses de humor, escreveu que a ausência do atributo tão exigido ao sexo feminino a teria obrigado a desenvolver outras habilidades para se destacar. Discorreu sobre o significado do envelhecimento para as mulheres, incluindo outro, pouco enfrentado quando se trata de uma abordagem voltada a essa faixa etária, e especialmente em relação ao sexo feminino: a sexualidade na terceira idade.
Seria uma armadilha lê-la falando de forma tão positiva sobre a “vida longa” – ainda que não omita alguns limites – desconsiderando a perspectiva interseccional na análise. É inegável que a realidade social e financeira de Allende lhe traz privilégios ao envelhecer, permitindo que tenha condições de vivenciar experiências na sua faixa etária que ainda lhe permitem desfrutar prazeres da vida. Nas páginas, a despeito de ter dimensão das vicissitudes que cabem a cada um e, inclusive, incluí-las na narrativa, a romancista procura desenhar a imagem de uma mulher madura, de espírito e corpo ativos, cheia de vida, que escreve, aprecia um bom vinho, se apaixona e ainda mantém interesse por sexo.
Além dos temas citados, também estão presentes no texto: direitos sexuais e reprodutivos, violências contra mulheres, divórcio, maternidade, liberdade, entre outros. Ao abordar aqueles que não lhe afetaram diretamente, fez a opção de incluir situações de mulheres e meninas com as quais teve contato, em viagens ou outras experiências. Em sua escrita autobiográfica, uma das estratégias de elaboração de um “monumento de memória”, não se esquivou de destacar uma contribuição especial na luta pelas mulheres, que foi a criação da Fundação Isabel Allende, que surgiu em 1996, com fundos iniciais da venda do livro Paula, escrito em homenagem à memória da filha. A ONG atende, preferencialmente, mulheres e crianças no Chile e na Califórnia que se encontram em situação de vulnerabilidade, oferecendo acesso a direitos reprodutivos, oportunidades para a independência econômica e proteção contra a violência. (Cf: https://isabelallende.org/es/programs;).
Ao se propor falar sobre Feminismo, pode-se colocar a seguinte pergunta: afinal, o que esperar como contribuições desta obra de Isabel Allende? Iniciadas(os) na temática de gênero prontamente perceberão que, a despeito dos bons propósitos, não há novidades a aprender. Ressalte-se que não estamos tratando de uma especialista sobre feminismo. Ao escolher elaborar uma apresentação do “eu” a partir dessa imagem, Allende não demonstrou ambições em incluir elementos teóricos. Para especialistas nos estudos de gênero tornar-se-á evidente que a autora recai em algumas essencializações ao desenvolver determinados temas. Maternidade e a respectiva relação estabelecida pelo senso comum e o “instinto materno” são alguns exemplos. De forma similar, ao tratar sobre a relação das mulheres com o poder e liderança, idealiza e essencializa, deixando entender que virtudes “femininas” fariam inclinar a “balança para uma sociedade mais justa e igualitária (p.171).
Mas os possíveis “deslizes” localizados não comprometem o potencial “revolucionário” dessa obra. Se forem consideradas as incompreensões e preconceitos que subsistem em relação aos Feminismos, em pleno século XXI, especialmente as manifestações e discursos anti-gênero aguerridos dos dias atuais, talvez avaliemos melhor as potencialidades desse título de Allende, ao chegar às mãos de suas (seus) milhares de leitoras (as) atingidos.
Uma figura com a projeção de Isabel Allende assumir-se perante seu público leitor tradicional com essa imagem, denunciando a habilidade da lógica machista ao representar feministas como “bruxas histéricas e cabeludas”, não deve ser visto como algo desprezível. E mais: mostra-se ousada, na parte final, ao questionar outro estereótipo feminino, a “docilidade”, e convocar suas leitoras a se “zangarem” até que a fúria feminina pulverize os fundamentos e desmantele o sistema em que se fundamenta a civilização, o patriarcado (p. 168). Igualmente importante foi o fato de assinalar que a luta é difícil, complexa e leva tempo. Avanços devem ser comemorados, sem perder de vista que determinadas vitórias serão efêmeras, posto que os riscos de reveses são inequívocos. Outro dado importante foi a lembrança de que será necessário persistir nas lutas e esta deve ser uma postura que passa pelo coletivo.
Conforme sublinhado inicialmente, amainadas as expectativas que são alheias aos objetivos propostos pela autora, podemos afirmar que a obra possui vários atributos, fazendo com que mereça ser lida. Observados os vícios e as virtudes presentes no relato, é bom considerar que ele também expressa parte de um pensamento geracional ao qual a escritora pertence. Elas, que vieram antes de nós, ainda têm o que inspirar e ensinar a esta e às futuras gerações e seus testemunhos são registros que não devem ser ignorados.
Referências
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet (Trad. Jovita Maria Gerheim Noronha, Maria Inês Coimbra Guedes). Belo Horizonte: Editora da UFMG.
WOOLF, Virgínia. Um teto todo seu. (Trad. Bia Nunes de Sousa; Glauco Mattoso) São Paulo: Tordesilhas, 2014.
Resenhista
Romilda Costa Motta – Doutora pela Universidade de São Paulo (USP) e Pesquisadora Colaboradora da Universidade Federal da UFABC. https://orcid.org/0000-0002-3892-9531 . E-mail. Romilda.motta@ufabc.edu.br
Referências desta Resenha
ALLENDE, Isabel. Mulheres de minha vida. Sobre o amor impaciente, a vida longa e as boas bruxas. 2ª ed. Trad. Ivone Benedetti. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020. Resenha de: MOTTA, Romilda Costa. Sobre o amor impaciente, a vida longa e as boas bruxas. Revista Eletrônica da ANPHLAC, v. 21, 31, p. 576-582, ago./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]
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