Mudar o mundo sem tomar o poder: o significado da revolução hoje, de John Holloway, professor do Instituto de Ciências Sociais e Humanidades da Universidade Autônoma de Puebla, México, traz à tona uma concepção de transformação de sociedade a partir da tática de luta política baseada no antipoder enunciada pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional. Partindo do fracasso do “socialismo real”, o autor afirma, enfaticamente, que o desafio revolucionário do início do século XXI é justamente o da primeira parte do enunciado pelo título de seu livro.
Em obra revisionista marxista, o autor chama a atenção para o fetichismo do Estado, afirmando que toda instituição representa uma forma alienada de relação social de poder, e que o Estado não foge à regra.
Para Holloway, a aparente impossibilidade de revolução no limiar do século XXI, derivada do fracasso de tentativas de mudar o mundo conquistando o Estado, na realidade reflete o fracasso de um modo particular de pensar a revolução a partir do controle estatal e não o fracasso da revolução enquanto fenômeno social. O autor afirma que, durante mais de cem anos, os sonhos de transformação da sociedade foram canalizados para a burocracia – mediante a definição de estratégias orientadas para a construção de um partido, para o estabelecimento de formas de disciplinar a luta de classes (p. 32), para a utilização das regras eleitorais e para a ocupação de postos políticos na esfera do Estado – ou para a luta armada. Estas estratégias, na opinião do autor, mesmo quando se mostraram vitoriosas, desembocaram no triunfo e no reforço das relações sociais capitalistas (p. 312). Sentencia: “o que falhou é a idéia de que a revolução significa tomar o poder para abolir o poder. […] A única maneira de se imaginar agora a revolução é como a dissolução do poder, não como a sua conquista” (p. 37).
O que o autor denomina fracasso do socialismo, no entanto, deve ser encarado apenas como parte de um fracasso mais amplo, porém provisório; uma derrota circunstancial na atual conjuntura de luta de classes. As tentativas de mudar a sociedade sem a violência revolucionária também fracassaram e, com elas, as experiências mutualistas, a utopia dos sindicatos, o socialismo de Allende, as cooperativas e, porque não dizer, os partidos políticos, mesmo os ditos de esquerda (socialistas, comunistas…); movimentos que foram derrotados ou então apropriados e/ou incorporados pelo sistema capitalista, o que, do ponto de vista estratégico, significa derrota.
Ao mesmo tempo em que critica Foucault por indução à não “possibilidade de emancipação” – para Foucault, “a única possibilidade é uma constelação de poder-e-resistência sem fim” –, Holloway, como o caçador que cai na armadilha por ele próprio preparada, repete o que condena e afirma que o poder não pode ser tomado, uma vez que “não é algo que uma pessoa ou instituição em particular possui. O poder reside mais na fragmentação das relações sociais” (p. 114). Por esta ótica, seriam equivocados os movimentos revolucionários que concebem a sociedade como nacional (isto é, dentro dos limites estatais), reforçando o Estado enquanto ponto de partida para a transformação social. Tal percepção, segundo Holloway, estaria fundamentada num recorte conceitual das relações sociais dentro das fronteiras espaciais e numa concepção mecânica segundo a qual o mundo seria formado por sociedades nacionais – cada uma com seu próprio Estado – que se relacionam em uma rede inter-nacional. Para Holloway, os movimentos norteados por este entendimento não percebem a desterritorialização das relações sociais levada a cabo pela exploração capitalista e a inserção do Estado Nacional em uma rede global – fenômenos que, desde o início, são parte integrante do capitalismo. O nacionalismo é um elemento inevitável da lógica burguesa e a idéia da tomada do poder a partir do controle do aparelho estatal reafirma como “inevitavelmente legítima a idéia da constituição nacional (estatal) das relações sociais e, portanto, participa da fragmentação da sociedade em unidades nacionais” (p. 146). A rejeição ao poder, então, se converte na construção do poder; o realismo do poder se concentra num fim e a ele se dirige. Tomar o poder é uma forma de apropriar-se do já constituído, é alimentar o processo que tem levado a uma reprodução das relações de dominação capitalistas.
Dois motivos básicos impedem, segundo o autor, uma verdadeira transformação a partir da estratégia de tomada do poder de Estado. O primeiro deles deriva do fato de que essa tática exclui a possibilidade de se conceber os indivíduos enquanto sujeitos ativos (p. 99), uma vez que ela fetichiza de tal forma a essência do Estado que não permite aos homens perceber as estruturas estatais como mais um elemento propiciador do despedaçamento das relações sociais (p. 115). Essa fetichização impede que o Estado seja visualizado como o lugar de poder que realmente é. O Estado é, então, apreendido como o locus onde o conflito social é definido enquanto “político”, o que o abstrai das relações econômicas da sociedade de classes, e gerido a partir dos canais apropriados (administrativos, jurídicos etc.), de tal forma que as relações sociais de acumulação capitalista deixam de ser contestadas (p. 144). O segundo motivo que reduz o alcance transformador das estratégias de mudança social fundamentadas no objetivo de se alcançar a tomada do poder está no fato de que, de acordo com Holloway, ao enfatizar prioritariamente a luta pela conquista do Estado, tais estratégias transformam essa conquista do poder estatal em um fim em si mesmo, deixando em segundo plano o objetivo essencial de transformação da sociedade. Desta forma, a estratégia transformadora da sociedade que visa a esfera política (Estado) converte-se em apenas mais um elemento da (re)produção das relações de produção capitalistas.
Nesta perspectiva, Holloway critica a ortodoxia marxista que, mesmo concebendo o Estado como instrumento da classe capitalista, contraditoriamente concentra-se na perspectiva de sua conquista como meio de transformar a sociedade. Tal posição política é concebida enquanto uma visão instrumental que vê a relação Estado/sistema como externa.
Por outro lado, Holloway, ao mesmo tempo em que onipotencializa o poder e dissolve-o nas relações sociais, faz o mesmo com os sujeitos, concebendo o seu grito como ponto de partida e de retorno (p. 221). Sugere, frente à massacrante realidade capitalista, a resistência de um sujeito indefinido e indefinível num universo de uma realidade intangível: comunidades autônomas, que se manifestam espontaneamente de forma antagônica ao capital. Uma definição fluida, perigosamente parecida com a tese dos sujeitos sociais de Negri e Hardt1 – criticados na obra em epígrafe –, que afirma a existência de uma multidão quase amorfa a protagonizar o antagonismo ante o “Império”. A arma da dissonância, da negação, do grito (subjetivo, abstrato) submeteria a realidade tirânica (objetiva, concreta) da opressão capitalista. A subjetividade deve submeter a materialidade.
A concepção de Holloway de ação antagônica às relações capitalistas é um tanto romântica, inclusive porque não aponta formas de materialização de uma transformação social que não passe pela tomada do Estado. Talvez falte à obra a ação concreta da práxis revolucionária. O antipoder pode se constituir em uma tática importante de ação social, mas não pode pretender negar completamente todas as outras. A história tem mostrado que a violência, antiga companheira do homem, ainda é a mãe da revolução, pois nenhum grupo dominante abdicará de sua posição na sociedade sem recorrer ao monopólio que exerce da violência. À força material deve opor-se a força material. O grito é apenas o ponto de partida, não o de chegada.
O eixo central da obra de Holloway, do ponto de vista teórico, fundamenta-se, no entanto, nas categorias poder-fazer (o antipoder) e poder-sobre (poder político). A primeira, a do poder-fazer, remete a uma contraposição revolucionária à ordem capitalista e, conseqüentemente, ao Estado; a uma experimentação de novas formas de organização social e de exercício político realmente democráticas: “é difícil conceber um fazer que não tenha como condição prévia o fazer dos outros”, diz (p. 46). A sua concepção do fazer encontra-se no princípio marxista do sujeito pensante – o que diferencia os homens dos animais. O fazer se sintetiza na negação do status quo: sujeito é aquele que grita, que se insurge contra a ordem estabelecida, que se coloca contra o Estado e contra o poder: “no princípio não era o verbo, mas o grito […] a força dirigente da revolução” (p. 9). O que nos tornaria sujeitos seria a nossa capacidade de negação, de dissonância. Mesmo que nossa subjetividade seja um construto social, não é nosso grito que deve ser submetido pela realidade: é a realidade que deve ceder à nossa repulsa pelo conjunto de coisas que nega nosso papel de sujeitos, que nega nossa repulsa à aceitação da “inevitabilidade da desigualdade, da miséria, da exploração e da violência crescentes” (p. 16).
A segunda categoria, a do poder-sobre, é fruto da fratura do poder-fazer; é o poder tal qual conhecemos e que dá sustentação à sociedade capitalista, cuja construção pressupõe a destruição da nossa subjetividade e não a sua afirmação; é o processo oriundo da sobreposição do poder individual sobre o social.
Para pensar em “mudar o mundo sem tomar o poder”, afirma o autor, devemos partir do poder-fazer, negando a ação nefasta do poder individual e afirmando, em contraposição, o social. Esta ação contra-hegemônica pode ser percebida na imensa gama de movimentos antipoder que não objetivam ganhar posições na esfera política institucional. O movimento zapatista pode ser um dos pontos de partida para “salvar a revolução do colapso da ilusão do Estado e do colapso da ilusão do poder” (p. 39). Outras manifestações difusas também são apontadas por Holloway, como o Fórum Social Mundial, o movimento de Seattle, os estivadores de Liverpool, entre outros.
Para Holloway, a rejeição da dominação – mediante a sabotagem dos instrumentos da produção, a deserção (o comportamento hippie, o suicídio…) e a violência (vandalismo, desordem, terrorismo) – é uma das formas de negação do poder. O desafio teórico é desenvolver a capacidade de olhar a pessoa que anda pela rua e captar o vulcão silencioso que passa (p. 232), pois esta pessoa tem milhões de maneiras de dizer “não!” A sobrevivência do capitalismo, conseqüentemente, depende da detenção dos sabotadores, da recaptura dos desertores, do enquadramento dos suicidas e loucos, dos atos de guerra contra desordeiros e “terroristas” porque “as trabalhadoras e trabalhadores devem trabalhar e produzir valores. O capitalismo deve explorá-los. Sem isso não haveria capitalismo” (p. 301).
O livro não aponta estratégias e não estabelece conclusões, mesmo porque não se propõe a isto. Por outro lado, não se pode enquadrá-lo como não-marxista, neomarxista ou tampouco pós-marxista – como manda o figurino modista “pós-moderno”. Sua temática está contextualizada na sociedade capitalista e isto o aproxima, necessariamente, da esfera da crítica marxista em função do uso de suas categorias centrais. Trata-se de uma tentativa de contribuição, que não pode ser ignorada mesmo por quem dela vier a discordar, ao fenômeno não novo, e mais que nunca urgente, da revolução social. A construção de contrapoderes é essencial como parte do processo de desgaste e destruição do sistema capitalista e deve receber a atenção que merece pela sua importância. Relações de contrapoder devem servir de desestabilizadores do capital e de seu Estado representante. Trata-se de uma reflexão pertinente, fundamentada na crítica radical ao capital, no resgate do antifetichismo e no esforço de recomposição da luta anti-hegemônica de caráter revolucionário. É uma reflexão profícua, com gosto de coisa nova e criativa. Neste novo século, que já nasce com uma perda salutar de suas certezas, Holloway vem nos dizer que as esperanças… estas não as perdemos.
Seria um livro inconcluso? Talvez, mas o século ainda é um bebê.
Nota
1 HARDT, M.; NEGRI, A. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001.
Resenhista
José Rubens Mascarenhas de Almeida – Professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). Doutorando em Ciências Sociais pela PUC-SP. E-mail: almeida@uesb.br
Referências desta Resenha
HOLLOWAY, John. Mudar o mundo sem tomar o poder: o significado da revolução hoje. São Paulo: Viramundo, 2003. Resenha de: ALMEIDA, José Rubens Mascarenhas de. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v. 4, n. 1, p. 237-242, 2004. Acessar publicação original [DR]
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