Mudanças climáticas e problemas ambientais |  PerCursos | 2020

No livro The Uninhabitable Earth: A History of the Future − publicado em 2019 e no mesmo ano traduzido para o português e editado no Brasil −, o jornalista estadunidense David Wallace-Wells, com base em projeções científicas de um aquecimento global de 4º a 4,5ºC até o ano 2100, discorreu sobre os problemas necessariamente gerados por essa provável alteração. Com variações conforme distintos pontos do globo, podem ser vislumbradas diversas catástrofes: derretimento de calotas polares; ondas de calor com grande poder letal; secas; incêndios florestais; enchentes; crises alimentares e sanitárias; intensas imigrações provocadas pela impossibilidade de sobrevivência nas novas condições do ambiente. O jornalista não se furtou a arrolar decisões urgentes a tomar: “um imposto de carbono e o aparelhamento político para eliminar agressivamente a energia suja; uma nova abordagem de práticas agrícolas e uma guinada na dieta mundial de carne e laticínios; e investimento público em energia verde e captura de carbono.” (WALLACE-WELLS, 2019, p. 276). Contudo, na atual ordem econômico-política mundial, qual a probabilidade de que essas decisões sejam tomadas e efetivadas, em larga escala?

O ano de 2020, muito fortemente marcado pela pandemia de Covid-19, mas também por incêndios de matas e florestas na Austrália, nos EUA e em países da América do Sul (especialmente no Brasil e na Bolívia), parece indicar que talvez não sejam necessários 80 anos para que nos encontremos em uma “Terra inabitável”. Afinada com as preocupações motivadas por esse grave cenário, a segunda edição da revista PerCursos, em 2020, traz o dossiê “Mudanças climáticas e problemas ambientais”. Os seis artigos que compõem o dossiê articulam pesquisadores vinculados a instituições do nordeste, do sudeste e do sul do Brasil.

O desafio de promover o desenvolvimento sustentável, aliado ao planejamento urbano, é sublinhado no primeiro artigo, de autoria de Rylanneive Leonardo P. Teixeira, Zoraide Souza Pessoa, Ana Célia B. Araújo e Eric M. Soares Dias; para os autores, é preciso criar, nas cidades, estratégias de adaptação às mudanças climáticas que, pautadas na sustentabilidade, promovam “justiça ambiental e menor vulnerabilidade”. O planejamento urbano e a sustentabilidade também são valorizados no artigo de Samantha Jandrey e Juarês José Aumond; os autores apresentam previsões de impacto das mudanças climáticas sobre a orla marítima do município catarinense de Itapema, tendo em vista que o aumento do nível do mar afetará áreas densamente edificadas, bem como áreas de mangues e restingas.

As transformações que impactam o clima têm sido admitidas, observadas, medidas e estudadas, embora não haja consenso quanto às suas razões – afinal, qual o grau de responsabilidade das ações humanas nessas mudanças? Além disso, vivemos um momento histórico em que até mesmo noções científicas basilares são acintosamente postas em xeque, e as mudanças climáticas não escapam do negacionismo. Nesse sentido, tem particular interesse o artigo de Mathias Lengert, Rosiane Zavonello e Cláudia Herte de Moraes, que abordam, na perspectiva da Análise do Discurso, 47 reportagens sobre mudanças climáticas, veiculadas em 2016 por dois jornais brasileiros de grande circulação: Folha de S. Paulo e O Globo. Entre os resultados da análise está a detecção, na cobertura jornalística do tema feita por esses dois veículos de imprensa, de uma ênfase maior no discurso científico (e, consequente, do recuo quanto ao espaço destinado às posturas negacionistas ou céticas).

Os danos e desastres ambientais são salientados nos três demais artigos do dossiê, sendo que em dois deles ganha relevo o tema da vulnerabilidade socioambiental. Eduardo Schmidt Longo e David Valença Dantas, mobilizando ferramentas do geoprocessamento, apresentam uma proposta de identificação de áreas especialmente vulneráveis a conflitos e riscos socioambientais. Como indicativos do potencial do método, são apresentados os dados obtidos a partir de sua aplicação em uma área do município de Florianópolis, em Santa Catarina: o distrito do Campeche. Já José Lidemberg de Sousa Lopes e Leandra Lourenço Domingos tomaram como ponto de partida, na pesquisa que gerou o artigo, casos concretos de enchentes em Alagoas e, mais especificamente, o desastre socioambiental causado pelo transbordamento da bacia do Rio Mundaú, em 2010, no município de União dos Palmares, Alagoas. Entre as contribuições da pesquisa está a elaboração de um mapa de transbordamento do rio Mundaú, que poderá orientar as administrações municipais na gestão do território.

Fechando o dossiê, o artigo de Luana Fernandes dos Santos e Tatiana Dahmer Pereira e de Azeredo articula desastres ambientais à pandemia de Covid-19, tendo em vista o que é designado como “colapso do capital”. Na perspectiva das autoras, há que se considerar os desastres ambientais como processos social e historicamente situados; assim, para melhor compreender a pandemia de Covid-19, cabe analisar o processo que a gerou, explicitando sua estreita relação com a produção e reprodução capitalista.

Além dos artigos que compõem o dossiê, esta edição da revista PerCursos contempla seis outros artigos e uma resenha. Tal como ocorre no dossiê, os artigos de perfil temático variado foram elaborados por autores cujos vínculos institucionais remetem a diferentes regiões do país: nordeste, centro-oeste, sudeste e sul. Caracterizam-se ainda por diversidade temática e disciplinar, de modo a estimular diálogos entre História, Psicologia, Geografia e Arquivologia.

Quatro autores − Ronan da Silva P. Gaia, Alice da Silva Vitória, Cristina Aparecida Silva e Fabio Scorsolini-Comin – analisam dimensões da masculinidade negra no Brasil, vislumbradas no rap “Jesus chorou”, composto por Mano Brown, do grupo Racionais MC’s. Pedro Henrique C. Fernandes e Guilherme Ferrari Oliveira apresentam as contribuições da geografia eleitoral e do voto para pensar as relações de poder em municípios do norte central do Paraná, entre 1947 e 2016.

Leonardo Baptista examina aspectos da trajetória da Delegacia de Ordem Política e Social no Espírito Santo, durante a ditadura militar, sobretudo a partir de documentação de arquivo referente às décadas de 1970 e 1980. Dos desafios de interpretação da documentação de arquivo do DOPS/ES, passamos àqueles de tratamento dos documentos arquivísticos digitais, abordados em artigo elaborado por Henrique Machado dos Santos, Fabiana Ciocheta Mazuco e Daniel Flores. Autores referenciais como Caio Prado Junior, Celso Furtado e Florestan Fernandes são revisitados por Leônidas de Santana Marques, que em seu artigo busca destacar o legado desses intelectuais para pensar a categoria de “desenvolvimento”; são apresentados, em grandes traços, momentos e argumentos fundamentais do pensamento de Prado Jr., Furtado e Fernandes, tendo em vista sua compreensão dos processos históricos de desenvolvimento capitalista, a partir do caso brasileiro.

Lana de Souza Cavalcanti, Marquiana de Freitas V. B. Gomes e Vanilton Camilo de Souza, por sua vez, discutem uma experiência colaborativa de produção de material didático (sobre o “território goiano”) na qual se intentou favorecer o protagonismo de professores e alunos que seriam seus futuros usuários; afirma-se ainda, no artigo em questão, uma “Geografia Escolar”, que imbricaria conhecimentos próprios da Geografia com as demandas e especificidades do contexto escolar.

Completa a edição a resenha de Maurício Silva sobre o livro A descolonizar las metodologías: investigación y pueblos indígenas, da pesquisadora neozelandesa Linda Tuhiwai Smith. Originalmente publicado em 1999, em inglês, tendo como referência principal as pesquisas e atividades da autora voltadas para o povo maori, o livro foi traduzido para o espanhol e publicado no Chile em 2016, pela editora Lom. A editora Lom tem se destacado na edição de publicações que buscam valorizar os povos originários; aliás, lom é uma palavra da língua dos yámanas (ou yaganes), habitantes da Terra do Fogo, e significa “sol”. Que a afirmação solar da perspectiva decolonial inspire reflexões luminosas, nesses tempos tão sombrios para Gaia! Janice Gonçalves Editora-Chefe


Referência

WALLACE-WELLS, David. A terra inabitável: uma história do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.


Organizadora

Janice Gonçalves – Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. Editora-Chefe.

Referências desta apresentação

GONÇALVES, Janice. Editorial. PerCursos. Florianópolis, v. 21, n. 46, p. 01 – 04, maio/ago. 2020. Acessar publicação original [DR]

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