Morte, Gênero e Sexualidade/Revista M./2023 

Persistir no exercício da pesquisa não é uma tarefa fácil em lugar algum, face todas as demandas de produtividade e os recorrentes impedimentos que enfrentamos em termos de falta de tempo e estrutura, quanto mais em um cenário negacionista como o que nos é familiar, em que tão frequentemente as análises teóricas da cultura e das relações sociais são descartadas como luxo, futilidade ou até mesmo excentricidade acadêmica, como percebemos nos últimos governos brasileiros após o golpe de 2016. Todavia, o desafio se torna sensivelmente maior quando o objeto de pesquisa é percebido como tabu pela maior parte da sociedade – este é, sem sombra de dúvidas, tanto o caso da morte quanto o das reações de gênero, temas comumente tidos como ímãs de controvérsias, questões acerca das quais o melhor (segundo uma parcela conservadora da sociedade) seria “silenciar”.

Desse ponto de vista, reunir um conjunto tão rico e diverso de investigações como as que estão incluídas neste dossiê, Morte, Gênero e Sexualidade, é certamente uma vitória, uma conquista em si, mais um feito acadêmico especialmente rico em vista de todos os debates que poderão se desdobrar futuramente a partir das considerações aqui exibidas. Elas poderão incitar diálogos e colaborar no avanço de agendas e, com isso, construir outros saberes, abrindo mais espaço para miradas desafiadoras e multifacetadas das realidades brasileiras, deslindando controvérsias oriundas dos silenciamentos de grupos oprimidos, minando visões pré-concebidas e contribuindo para políticas cada vez mais plurais.

A existência humana é marcada por uma infinidade de definições, recortada por limites, mas poucos destes produzem efeitos tão críticos para nossas experiências no mundo quanto os marcos que separam as identidades de gênero, que repartem a saúde e a doença e desenham a fronteira entre a vida e a morte. Conforme aponta Bruna Benevides (2022), no Dossiê assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2021, a partir de fontes nacionais e internacionais, os números referentes às mortes violentas de pessoas da comunidade LGBTQIA+, em especial aquelas que se identificam como trans, são estarrecedores em nosso país. Sá et al (2021) sugerem, por sua vez, que no que diz respeito ao crime de feminicídio, os índices brasileiros figuram entre os mais alarmantes do globo. O que se pode extrair desses dados, ao menos a princípio, é que, se a morte vem para todos, no Brasil, ela se apresenta de maneira consideravelmente mais sinistra e frequente para alguns setores da sociedade.

Tudo indica que, se há flagrantes desigualdades de gênero na maior parte dos aspectos da vida, as disparidades se perpetuam na morte – em toda a sua órbita, incluindo a esfera da vida estendida, isto é, a memória que se enuncia em discursos falados, escritos e artísticos.

Estes tópicos, indubitavelmente sensíveis e carregados de preconceitos, ou seja, as feminilidades, queeridades e seus atravessamentos pela finitude da vida, constituem os temas nucleares das pesquisas reunidas nessa obra. A morte, sendo especialmente definitiva e carregada de tabus, atravessa a presente coletânea como um fio condutor controverso e fascinante. Como afirmado por Jean-Pierre Vernant (1989, p. 86, tradução nossa), “dos mortos entre os mortos, não há nada a dizer”, isto é, cabe a nós, os vivos, tratar da morte, visto que ela não pode fazer isso por si mesma.

A utilização dos mortos em âmbito social permite a conciliação da rede de relações pessoais em torno dos mesmos e de sua memória, porque com a finitude os mortos imediatamente passam a ser concebidos como exemplos e orientadores de posições e relações sociais. Diante disso, o espaço cemiterial é privilegiado para a expressão das práticas culturais de um determinado meio social, visto que a individualização das sepulturas e os valores expressos nestas demonstram o desejo de preservar a identidade e a memória dos mortos, servem à demonstração e/ou transmissão dos valores culturais e à própria reconstituição do sentido existencial para os que ficam (Carneiro, 2016, p. 22).

O problema inescapável da finitude há tempos cobra respostas da humanidade. Cientes do avanço do tempo, da decadência do corpo, da suscetibilidade às doenças e, consequentemente, do encerramento das operações que caracterizam o funcionamento do corpo vivo, buscamos o consolo de uma eternidade secundária por intermédio da memória, expressa em monumentos, livros, canções e, evidentemente, da religião. Incapazes de conter a degradação de nossos processos físicos, aprendemos a encontrar conforto na sobrevida que as narrativas são capazes de produzir. Concebemos existências além da existência, cercamos o morrer de cerimônias, datas e aparatos festivos, e, no entanto, o tabu da morte, a ferroada da separação eterna, segue inevitável e doloroso. De maneira contraditória, porém compreensível, a morte invoca curiosidade tanto quanto desperta repulsa. Como escreve Moscovici:

Toda violação das regras existentes, um fenômeno ou uma ideia extraordinários, tais como os produzidos pela ciência ou tecnologia, eventos anormais que perturbem o que pareça ser o curso normal e estável das coisas, tudo isso nos fascina, ao mesmo tempo em que nos alarma. Todo desvio do familiar, toda ruptura da experiência ordinária, qualquer coisa para a qual a explicação não é óbvia, cria um sentido suplementar e coloca em ação uma procura pelo sentido e explicação do que nos afeta como estranho e perturbador (Moscovici, 2007, p. 204).

O gênero, por sua vez, não é um território de poucas polêmicas – possivelmente, guarda tantos tabus quanto os que envolvem o fim da vida. Espaço de disputas, de constantes combates tanto da ordem do simbólico quanto da disciplina dos corpos sentida por todos no dia a dia, o gênero é, para usar os termos de Judith Butler (2003), caracterizados por problemas – o que não constitui, como aponta a autora, algo negativo. As continuidades e rupturas que permeiam os marcos de gênero, movem conflitos ao seu redor, mas também reforçam e ressignificam identidades, reafirmando no mundo o lugar de indivíduos que frequentemente são oprimidos por ser quem são, mas seguem lutando por agência ao persistir existindo. Como escrevem Silva et al (2011, p. 19): “São as práticas de gênero que permitem, contraditoriamente, sua existência e transformação”.

Debater estes temas implica se abrir para uma tapeçaria de complexidades. Essa coleção expõe um repertório de trabalhos que abordam, de forma franca, reflexiva e bem embasada, a viuvez, o suicídio, a LGBTfobia, o sexismo e o luto, e suas conexões com a morte e o morrer.

O texto de Dulceli Estacheski, Expectativas de casamentos frustradas e a morte suicida como desfecho: análise de inquéritos policiais por suicídios da cidade de Castro/PR do início do século XX, analisa inquéritos de suicídios ocorridos no referido município, casos em que a motivação específica das mortes parecem ter sido as complicações decorrentes da instituição do matrimônio. A autora trabalha aqui com os efeitos dramáticos de uma instituição tida como um dos pilares da vida em sociedade, o casamento heteronormativo, as pesadas expectativas depositadas nessa instituição enquanto base de uma vida plena e produtiva, e os efeitos devastadores que a frustração dessas expectativas pode ter na vida dos envolvidos.

Ainda no escopo das relações estáveis, porém não mais no espectro da heteronormatividade, o artigo subsequente, A vivência do luto do cônjuge em idosos gays, lésbicas, bissexuais e/ou trans: Revisão Narrativa, de Leticia Gabarra, Victoria Pereira Garcia Domingues, Tom Almeida e Gabriela Casellato Brown Ferreira Santos, se volta para o estigma do envelhecimento e da viuvez em meio à comunidade LGBTQIA+. O texto salienta a escassez de literatura sobre o tema, um problema evidente para a representação social dessa comunidade, já amplamente sujeita à estigmatização social. O exame das especificidades destes lutos, segundo os autores, é um passo na direção da desconstrução de preconceitos tenazes a respeito das afetividades, dos vínculos não-normativos, da finitude e das complexas negociações desenvolvidas nessa interseção.

A seguir, em Representações de mulheres na arte tumular do Cemitério de São João, Manaus (AM): imaginário social da belle époque e a emancipação feminina, Márcio Páscoa e Carla Aires Martins apresentam um estudo da arte tumular produzida em Manaus entre o fim do século XIX e o início do XX, focado nas representações da mulher em comparação com as condições sociais de que desfrutavam as mulheres, e as atitudes delas esperadas, neste contexto. Os autores indicam uma forte presença feminina na arte cemiterial em paralelo com a explosão econômica vivida pela cidade em decorrência da exploração da borracha e o florescimento artístico que resultou dessa conjuntura. Observam, pelo estudo comparativo da esfera do real e do campo simbólico das artes, um horizonte de expectativas mais complexo do imaginário feminino do que a convencional demanda por uma mulher subserviente, maternal, socialmente respeitável e religiosamente devota.

O texto de Ana Paula Costa Silva e José Juliano Cedaro, Mulheres que trabalham com a morte: a perspectiva feminina diante de ofícios do sistema funerário, nos permite ter um importante vislumbre da presença feminina em um campo repleto de tabus: os serviços ligados aos cuidados com os mortos. Os autores observam que neste campo profissional, como em tantos outros, a discriminação de gênero é um problema, criando uma dupla camada de tabus: o de trabalhar com a morte e o de ser mulher neste ambiente profissional, carregando toda a bagagem social que associa o feminino às tarefas relacionadas aos cuidados com o outro. A partir de dados coletados por meio de entrevistas, a pesquisa aponta as dificuldades regularmente enfrentadas por essas mulheres, bem como a notável intensificação de sua carga de trabalho em decorrência da pandemia de Covid-19.

Por fim, em Lili como fantasma: tensionando a cena de interpelacão da teoria queer, Udinaldo Francisco Souza Júnior e Angela Lucia Silva Figueiredo abordam o caso do assassinato da ativista LGBTQIA+ Shaynna Xayuri Morgana, mais conhecida como Lili, em 27 de agosto de 2017. Os autores buscam aqui, a partir da observação participante do funeral de Lili e de diálogos com seus amigos e parentes, tratar das contradições e desafios que emanam do ativismo e da visibilidade queer diante de uma realidade ainda permeada por atentados brutais contra a humanidade.

É evidente nessa lista de estudos uma ampla diversidade de temas, ângulos e metodologias, cada qual buscando, dentro de seu próprio horizonte de especificidades, lançar luz sobre uma forma diferente de se lidar com o fim do ciclo vital, com o drama do luto, com a negociação das memórias que inevitavelmente se segue à morte. Essas investigações, que englobam interesses transversais da historiografia, da psicologia, das ciências sociais e dos estudos de literatura e arte, que se debruçam sobre uma gama variada de problemas das pesquisas sobre gênero e morte, não buscam de maneira alguma esgotar as possibilidades de qualquer um dos temas discutidos. Ao contrário, a expectativa central de todos os envolvidos com essa publicação é abrir cada vez mais espaços de debate e fazer o possível para que os tabus do gênero e da morte não nos impeçam de tratar francamente de vivências tão fundamentais de nossa humanidade.


Referências

Benevides, B. (Org.). (2022). Dossiê assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2021. Distrito Drag/ANTRA.

Butler, J. (2003). Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Civilização Brasileira.

Carneiro, M. (2016). Desnudando a masculinidade: representações de nudez e seminudez na estatuária funerária paulistana (1920-1950). [Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás]. Disponível em: http://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/5744 . Acesso em 20 de dezembro de 2022.

Moscovici, S. (2007). Representações sociais: investigações em psicologia social. Vozes.

Sá et al. (2021). The geography of femicide in Sergipe, Brazil: matriarchy, human development, and income distribution. Revista Brasileira de Epidemiologia, 24 (suppl 1), p. 1-12.

Silva, M. do C. C. da. (2007). A formação do escultor Rodolfo Bernardelli na Itália (1877- 1885): uma análise de sua trajetória a partir de fontes primárias. Revista de História da Arte e Arqueologia, 6, p. 123-136.

Silva, J. M. et al. (2011). Espaço, gênero & masculinidades plurais. Todapalavra.

Vernant, J-P. (1989). L’individu, la mort, l’amour: soi-même et l’autre em Grêce ancienne. Gallimard.


Organizadores

Maristela Carneiro – Doutora em História, pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Atualmente é Professora da Faculdade de Comunicação e Artes e Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). E-mail: maristelacarneiro86@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6335-7379   CV: https://lattes.cnpq.br/8461204091007488

Cícero Joaquim dos Santos – Doutor em História pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Atualmente, é Professor do Departamento de História da Universidade Regional do Cariri (URCA), do Mestrado Profissional em Ensino de História – ProfHistória (URCA) e do Mestrado Profissional em Educação (PMPEDU -URCA).  E-mail: joaquim.santos@urca.br ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4897-4336  CV: http://lattes.cnpq.br/4970627821671141


Referências desta apresentação

CARNEIRO, Maristela; SANTOS, Cícero Joaquim dos. Apresentação. Revista M. – Rio de Janeiro, v. 8, n. 15, e12374, jan./jun. 2023. Acessar publicação original [DR/JF]

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