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Monarquia e Igreja na Galiza na segunda metade do século VI: O modelo de monarca nas obras de Martinho de Braga dedicadas ao rei suevo | Leila Rodrigues da Silva

Fruto da tese de doutoramento defendida em 1996 pela autora, a obra Monarquia e Igreja na Galiza na segunda metade do século VI: O modelo de monarca nas obras de Martinho de Braga reflete sobre o modelo de monarca presente nos escritos de Martinho, bispo de Braga, destinados ao monarca suevo Miro. Produzidos na esteira do processo de aproximação entre os bispos da Galiza de vertente católico-nicena e a monarquia sueva, tais escritos expressariam não somente a conjunção entre os entes político e eclesiástico como, em especial, destacariam o cunho moral e normativo da missiva eclesiástica dirigida à liderança germânica.

Ainda que evidentemente enriquecida pelas pesquisas desenvolvidas, desde então, junto ao Programa de Estudos Medievais (PEM-PPGHC/UFRJ), a publicação mantém estrutura similar à de sua tese de doutorado defendida em 1996, de caráter sistemático e enunciativo.

Assim, o livro divide-se em cinco partes: a introdução (p. 11-26), na qual a autora expõe suas referências teórico-conceituais, discute a produção historiográfica referente ao tema e apresenta a documentação empregada; o primeiro capítulo (p. 27-59), destinado ao conturbado contexto de organização eclesiástica na Galiza, ladeado pelo assentamento dos suevos na região e culminante na aproximação entre bispos e a monarquia sueva expressa na conversão dos monarcas suevos ao catolicismo niceno e na realização dos concílios bracarenses; o segundo capítulo (p. 61-86), no qual discute a inserção de Martinho nos assuntos políticos e eclesiásticos galaicos, contemplando sua formação intelectual precedente, seu papel na fundação de mosteiros e sua liderança nos concílios sediados em Braga (561 e 572); o terceiro capítulo (p. 87-135), no qual se realiza propriamente a análise textual do corpus documental Martiniano; e, por fim, a conclusão (p. 137-142), que sintetiza as proposições de cada trecho da obra e destaca os aspectos inovadores derivados de sua análise documental.

Em suas páginas introdutórias, Leila Rodrigues confronta-se tanto com a historiografia política tradicional – considerada elitista, biográfica e descritiva (p. 13- 14) – quanto com a conotação apologética típica de trabalhos de especialistas da Igreja dedicados ao estudo da monarquia sueva,1 da Igreja galaica ou da trajetória de Martinho. Para tal, filia-se à perspectiva da Nova História Política, que a seu ver “realça a ideologia e as relações de poder (…), capaz, portanto, de observar as estreitas relações entre política e religião” (p. 14). Em consonância com sua opção teórica a autora elenca considerações de autores como Terry Eagleton, Aline Coutrot, Jacques Julliard e, de modo menos explícito, Pierre Bourdieu.

Além disso, em sua ampla discussão bibliográfica a autora ressalta a importância da renovação dos estudos promovida por conferências reunidas desde meados do século passado – como o Colóquio de Estudos Martinianos (1950) e a XIV Semana Internacional de Direito Canônico (1970), dentre outros –; pela publicação da Revista Bracara Augusta entre as décadas de 1960 e 1970; e pelas pesquisas individuais de autores como Luís García Moreno, Pablo Díaz Martinez, Jorge Lopes Quiroga, Santiago Castellanos e, em especial, por Alberto Ferreiro, particularmente a partir da década de 1980.

Em relação às fontes utilizadas pela autora, observamos uma distinção entre os documentos examinados. De um lado, a autora emprega textos que dão conta da situação eclesiástica e política da Galiza entre os séculos IV e VI, além de outros produzidos por autores romanos, que mencionam os germanos antes de sua chegada à península ibérica ou que serviram de inspiração para Martinho. No primeiro grupo se incluem a Crônica de Idácio e as Histórias de Jordanes Paulo Orósio; a epístola de Vigílio de Roma, além de fragmentos de Agostinho de Hipona; o segundo grupo reúne trechos de Sêneca, Tácito e Amiano Marcelino.

Ao contrário, outro conjunto de documentos aborda especificamente o contexto de aproximação entre Igreja e Monarquia sueva em meados do século VI, via de regra produzidos por Martinho, considerado “porta-voz” (p. 138) dos interesses eclesiásticos, ou que mencionassem sua atuação: além das atas dos concílios bracarenses, confeccionadas sob a autoridade intelectual martiniana, destacam-se trechos de Isidoro de Sevilha, Gregório de Tours, Venâncio Fortunato, Pascásio de Dume, dentre outros, que exaltam a importância do prelado bracarense. Deste conjunto documental, de maior relevância para a tese de Leila Rodrigues, destacam-se as quatro obras presumidamente dedicadas ao monarca Miro e atribuídas ao bispo de Braga, examinadas pela autora em seu terceiro capítulo: Formula Vita Honestae, De Superbia, Pro Repellenda Iactancia e Exortatio Humiliatis.

O capítulo um refere-se, como dissemos, à trajetória eclesiástica na Galiza, coligada à chegada dos suevos e ao subsequente processo de formação da Monarquia na região. Merecem destaque as sucessivas mudanças da confissão de fé dos monarcas suevos nesse período de assentamento, que se traduzem em dificuldades crescentes para os quadros eclesiásticos nicenos desde inícios do século V até meados do século VI: relaxamento da disciplina e da instrução clerical; manutenção de práticas ditas pagãs, especialmente entre as populações rurais; e, por fim, disseminação de práticas litúrgicas e ascéticas associadas ao movimento priscilianista, considerado herético pelas autoridades eclesiásticas desde fins do século IV. Tal situação só se alteraria, segundo a autora, com a aproximação entre o episcopado niceno e os monarcas suevos, ocorrida em meados do século VI e melhor expressa pela conversão dos reis ao cristianismo niceno e pela realização de concílios.

A confluência de interesses políticos e religiosos coincide com a chegada de Martinho à região, tema abordado no capítulo dois. Neste trecho, ao estudar a trajetória do bispo anterior a sua chegada à Galiza, Leila enfatiza a importância da educação clássica e pastoral obtida por Martinho em suas viagens ao Oriente e, quiçá, à Itália e à Gália. Tal formação erudita permitiu-lhe assumir uma posição de destaque nos assuntos políticos e religiosos galaicos, de modo quase imediato. A fundação do mosteiro de Dume, a condução dos assuntos conciliares bracarenses, a evangelização das populações rurais e, especialmente, as obras dirigidas aos monarcas expressariam a preponderância martiniana.2

A análise do modelo de conduta do monarca delineado pelos escritos martinianos é contemplada pelo terceiro capítulo. O exame das virtudes e, por outro lado, dos vícios que conformariam a atuação monárquica é norteado por três pressupostos, quais sejam “uma concepção moral da monarquia, o princípio do homem integral [i.e., seguindo a noção de Walter Ullmann, na qual se aproximam as esferas pública e privada] e a idéia do monarca como exemplo a ser seguido” (p. 102).

Entre as virtudes ressaltadas nestes escritos martinianos encontram-se a prudência, a magnanimidade, a continência, a justiça e a humildade. Pela análise da autora, nota-se que o encadeamento argumentativo de Martinho – especialmente em sua Formula Vitae Honestae – parte de princípios típicos da moral estóica3 para, gradualmente, vincular-se às noções cristãs, delineadas por exemplos bíblicos como o de Davi e por citações paulinas. As noções de justiça e de humildade são, assim, decisivamente cristianizadas.

De maneira correlata, os vícios da jactância e da soberba são condenados a partir de uma perspectiva plenamente cristã. Conforme indicado pela autora, Martinho adverte o monarca para os perigos de ambas: se, por um lado, a jactância encontra-se disponível a todas as pessoas, por outro a soberba é característica dos monarcas, que por meio desse vício romperiam o contrato estabelecido com Deus, exemplo maior dos soberanos e que lhes garantia a procedência de sua autoridade.

Vale ressaltar que a análise atenta para o fato de que o modelo ideal de monarca formulado nos escritos esteve atento às relações de poder inscritas no reino suevo: a autora destaca entre as obras indícios ligados tanto às difíceis relações do monarca com as assembléias guerreiras suevas quanto à ameaça expansionista visigoda e as opções político-diplomáticas dos suevos, que buscavam em contrapartida vincular-se aos francos e bizantinos. Além disso, mesmo as virtudes germânicas – notadamente bélicas – foram alvo das advertências e conselhos martinianos, muito embora tenham sido relegadas diante das referências romanas e, sobretudo, cristãs.

Destarte, a análise de Leila atenta para a ingerência normativa dos escritos martinianos: ora apresentando-se como conselheiro e, na maioria das vezes, como admoestador, Martinho projeta uma ampla gama de intervenções sobre a conduta de Miro.

Tal intervenção justifica-se tanto pela presumível relação pessoal estabelecida entre monarca e bispo quanto, em especial, pela gradativa influência dos eclesiásticos nos assuntos políticos do reino, uma vez que estes se apresentavam como os “únicos capacitados a interpretar a palavra divina” (p. 141). Aos bispos, a aproximação com os suevos garantia a possibilidade de superar os desafios disciplinares e heréticos que grassavam na região; ao monarca, mais do que um especulado interesse confessional, interessava afirmar sua posição de domínio junto aos nobres suevos e às populações afastadas dos centros urbanos.

Por fim, ressalta-se que o livro dirige-se tanto aos interessados no estudo da Igreja galaica, da monarquia sueva ou de Martinho de Braga quanto aos buscam conhecer um trabalho derivado da Nova História Política, particularmente no processo de formação das monarquias germânicas ou no estudo da atuação do episcopado latino, sem esbarrar em uma interpretação personalista, heróica ou mesmo devocional.

Notas

1 Não sem antes criticar a postura de certos historiadores espanhóis e franceses que aventaram a irrelevância do estudo da trajetória sueva diante dos reinos visigodo e franco, dado seu caráter acessório ou mesmo descartável.

2 A autora rejeita, contudo, qualquer interpretação que enfatize a excepcionalidade ou a originalidade intelectual de Martinho. Leila frisa que o percurso intelectual realizado pelo bispo bracarense encontrava-se disponível à maioria dos representantes aristocráticos que se dedicassem ao ofício episcopal ou monástico: a seu ver, a importância de Martinho reside precisamente em sua capacidade de articular a formação intelectual recebida às demandas políticas e eclesiásticas do referido contexto, particularmente ao formular um modelo de conduta aos monarcas (p. 139).

3 Razão pela qual a obra martiniana foi, ao longo do período medieval, considerada de autoria de Sêneca.


Resenhista

Paulo Duarte Silva – Mestre em História Comparada Universidade Federal do Rio de Janeiro.


Referências desta Resenha

SILVA, Leila Rodrigues da. Monarquia e Igreja na Galiza na segunda metade do século VI: O modelo de monarca nas obras de Martinho de Braga dedicadas ao rei suevo. Niterói: EdUFF, 2008. Resenha de: SILVA, Paulo Duarte. Revista de História Comparada. Rio de Janeiro, v.3, n.2, 2009. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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