O “afastamento do mundo” para se dedicar integralmente à vida religiosa é comum à maioria das religiões. Desde que o grupo social arcaico se tornou mais complexo começaram a surgir os feiticeiros, sacerdotes e pajés, nitidamente identificáveis nas pinturas murais da mais antiga pré-história, e confirmadas pelos exemplos da Antropologia. Mas esses especialistas da religião, mesmo que mantenham um modo de vida diferente e separado da comunidade, e portanto “afastados do mundo” ainda não são monges no sentido estrito e no entendimento tradicional. Porém, para entrar melhor nesta discussão, é preciso apurar os termos, pois só por si, sem se considerar seu uso, as palavras induzem em erro: monge vem de monachus, termo semelhante a mónada: singular, isolado, que é só um, vocábulo que deu origem a monastério, e mosteiro, e a topônimos como Munique. Mas o mosteiro é o lugar onde vive a comunidade de muitos monachus, dos “isolados que estão juntos”, e só se entende esta aparente contradição quando se compara com o seu equivalente, mas contrário: convento. Este significa o lugar para onde “convêm” ou se congregam muitas pessoas, e a diferença está em que no convento a vida comunitária predomina sobre o modo de vida individual no trabalho, na oração e no estudo, enquanto no mosteiro o mônaco teria mais tempo para a vida espiritual.
Mesmo que no uso vulgar os dois termos – mosteiro e convento – se usem indistintamente, esta breve explanação nos serve para introduzir as questões fundamentais, das quais a primeira é a já indicada: o impulso para a dedicação à vida religiosa em tempo integral é próprio de todas as sociedades, e não constitui uma quebra da tendência humana à socialização; pelo contrário, a vida social no interior dessas comunidades é intensa, e nunca se corta totalmente da sociedade ambiente. A variedade de modos de vida religiosa é muito grande, desde os eremitas, esses sim isolados, até aos que vivem monasticamente porém inseridos na cidade e no campo; mesmo assim, a vida monástica apresenta traços semelhantes em quase todas as religiões complexas; e, seja qual for a opção de vida, a tensão entre a vivência individual e a coletiva é sempre um dos focos principais das normas e regras monacais. Deste modo a afirmação inicial tem de ser completada: as circunstâncias da cultura religiosa, do ambiente da época e da tradição, impõem ao monaquismo características próprias a cada caso ou modalidade.
É possível, então, discernir em que aspectos as culturas celtas e germânicas impuseram seus selos, ou marcas no monaquismo cristão ocidental? Se o fizeram, teremos de observá-los nos movimentos monásticos da Alta Idade Média, antes que Roma impusesse sua hegemonia sobre todas as variantes do cristianismo regional. Talvez se pudessem levantar algumas hipóteses, a confirmar pelos documentos e pelas tradições, como por exemplo: a maior presença do monaquismo feminino, de certo modo independente e paralelo ao masculino, entre os celtas irlandeses e britânicos; ou um forte espírito de obediência e comunitarismo entre os monges germânicos, contrastando com a variedade e certa “anarquia” dos monges celtas. Mas nossa intenção não podia ser esse “descobrimento”, que exigiria pesquisa e trabalho muito além de um dossiê. O que pretendemos levantar é a contribuição das áreas culturais celtas e germânicas, e das suas lideranças religiosas, para o surgimento e fortalecimento do movimento monástico europeu da Alta Idade Média – mesmo que alguns casos nos trouxeram para mais perto do apogeu medieval.
Os artigos apresentados neste dossiê cobrem diversas áreas da presença celta e germânica, reportando-se a questões da vida interior dos mosteiros, mas sobretudo às relações da vida monástica com a sociedade em que se inseriu: Farrell trata do serviço pastoral na Irlanda, Souza fala da opinião de uma crônica merovíngia sobre acontecimentos político-religiosos do Oriente, Uchoa estuda a comunidade monástica e sua percepção do corpo para controle da virtude, Frazão da Silva e Rodrigues da Silva discutem os vínculos entre as lideranças monásticas e as figuras do poder real e da nobreza. Assim considerado, o monaquismo como movimento e modo de vida é o resultado e ao mesmo tempo o modelo para a sociedade cristã, e neste sentido o artigo de Conde da Silva sobre as virtudes das damas e cavaleiros vem nos trazer o ideal cristão fora dos mosteiros, mas refletindo os ideais espirituais que os monges elaboravam e difundiam. O elo de ligação está explícito no artigo de Sirgado Ganho, em que um monge, e líder de monges, apresenta as normas de virtude não só para os leigos, mas para o próprio rei e sua corte. Através da análise da Visão de Túndalo, Zierer e Messias demonstram como narrativas compiladas por monges serviram como propaganda religiosa, visando a conversão dos fiéis e as corretas normas de comportamento para que atingissem o Paraíso na outra vida.
Esta pequena amostra da contribuição do monaquismo para a construção da Cristandade, e da Europa, é rica, mas não é suficiente para os seus e nossos objetivos: ela pede outros complementos que oportunamente serão apresentados nesta revista.
João Lupi – Professor Doutor (UFSC). E-mail: lupi@cfh-ufsc.br
LUPI, João Editorial. Brathair, São Luís, v.11, n.2, 2011. Acessar publicação original [DR]
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