Modo “cartonero” de reprodução e circulação para a literatura. Resenha de: FANJUL, Adrián Pablo. Malha fina cartonera: novidade e projeto formador. Alea, Rio de Janeiro, v.18, n.2, p.369-374, ago. 2016.
Em agosto de 2015, em São Paulo, começou suas atividades uma nova editora independente: a Malha Fina Cartonera. Como seu nome já antecipa, trata-se de um empreendimento “cartonero”, que vem somar-se às centenas de selos editoriais desse tipo que surgiram no mundo, e muito especialmente na América Latina, desde o início deste século. No caso, Malha Fina Cartonera é iniciativa de professores e estudantes do curso de Letras de Universidade de São Paulo, sendo a professora Idalia Morejón Arnaiz e a pós-graduanda Tatiana Lima Faria suas inspiradoras iniciais e quem têm garantido um vínculo acadêmico para as atividades da nova editora. Encontramos Malha Fina Cartonera na web no seguinte endereço: <https://malhafinacartonera.wordpress.com/>.
Entrando ao blog da editora, podemos apreciar imediatamente o logotipo, criado com base na forma de uma folha de barbear. O desenho é do artista cubano Enrique Hernández. No blog lemos, a respeito, que
Tal como, de modo geral, as lâminas revelam as faces por detrás das barbas, inclusive às vezes revelam novas faces para rostos já conhecidos, a Malha Fina Cartonera pretende revelar para o seu público tanto escritores da FFLCH que permanecem inéditos quanto obras latino-americanas pouco conhecidas do público brasileiro.
Nosso principal objetivo aqui é resenhar o trabalho editorial de Malha Fina Cartonera, sua inserção na tradição das editoras denominadas “cartoneras” da América Latina, distinguindo de maneira especial seu projeto cultural focado na interseção dos universos linguístico-culturais hispânicos e brasileiros e destacando também o importante papel que esta iniciativa pode ganhar na formação de diversos profissionais, inclusive de educadores, no campo da linguagem.
Em 2002, em Buenos Aires, dá seus primeiros passos o que logo seria a editora Eloísa Cartonera. O poeta Washington Cucurto e o artista visual Javier Barilaro vinham trabalhando em um projeto de edição que já tinha o nome “Eloísa”. Para viabilizar economicamente as edições, começam a comprar o papelão (em espanhol, “cartón”) vendido por catadores que, na Argentina, são conhecidos como “cartoneros” porque recolhem e vendem papel e papelão. Cucurto, Barilaro, e os que participavam do projeto, compravam o papelão a um preço maior que o que pagavam as empresas que exploravam o trabalho dos catadores. A relação com os “cartoneros” e a participação deles no processo de produção dos livros foi crescendo, já que os editores montaram uma oficina onde os livros se armavam, encadernavam e pintavam artesanalmente. Assim surgiu “Eloisa Cartonera”, primeira editora com essas características, que começou a funcionar no início de 2003, em um local onde também se vendiam verduras e legumes. No início, se acrescentou a curadora de arte Fernanda Laguna.
Vemos, então, que o modo “cartonero” de reprodução e circulação para a literatura surge das condições do atual capitalismo nos espaços urbanos, porém, mais especificamente, dos processos de resistência (nas mais diversas acepções do termo) contra o neoliberalismo. Com efeito, “Eloisa Cartonera” não é imaginável fora do contexto de empreendimentos autogestivos que percorreram todas as áreas de economia na crise que levou à insurreição argentina de 2001 e cujas penúrias econômicas se prolongaram por alguns anos mais. Não apenas a rebeldia, mas sobretudo a criação de fortes redes solidárias caracterizaram esse histórico processo mediante o qual os argentinos deixaram atrás a desintegração provocada pelo neoliberalismo e recuperaram o crescimento econômico. Em relação à produção industrial de bens surgiram as empresas comunitárias geridas pelos próprios trabalhadores (PETRAS & VELTMEYER, 2002). Mas, como explica Palomino, os próprios movimentos massivos de assembleias de bairros e de desempregados que povoaram o espaço público desenvolveram, além do protesto, “huertas comunitarias, venta directa de la producción a través de redes de comercialización alternativas, elaboración y manufactura artesanal e industrial de productos frutihortícolas, panaderías, tejidos y confecciones artesanales e industriales, etc” (PALOMINO, 2003: 119). Sem dúvida, esse entorno de sociabilidade contribuiu para que se pudesse visualizar o possível ganho mútuo nessa iniciativa solidária específica que foi a edição “cartonera”.
Não casualmente, o manifesto de Eloisa Cartonera − que aqui citamos de sua reprodução em Akademia Cartonera: A Primer of Latin American Cartonera Publishers (2009) − começa localizando seu nascimento nesse contexto e determinado por ele:
Nació en el 2003, por aquellos días furiosos en que el pueblo copaba las calles, protestando, luchando, armando asambleas barriales, asambleas populares, el club del trueque, ¿se acuerdan del club del trueque?, ¡Cómo pasa el tiempo de este lado de la tierra! Por aquellos días, hombres y mujeres perdieron sus trabajos, y se volcaron masivamente a las calles en busca del pan para parar la olla, como se dice, y conocimos a los cartoneros. (BILBIJA & CELIS CARABAJAL, 2009: 57)
A editora, como fariam de modo geral as muitas cartoneras que depois surgiram, combinava alguns autores novos com textos inéditos de autores consagrados, alguns dos quais, como Ricardo Piglia, César Aira, Rodolfo Fogwill e Tomás Eloy Martínez doaram obras breves.
Nos doze anos que se passaram, as editoras cartoneras se multiplicaram rapidamente. Segundo dados no blog de Malha Fina, elas já existem em 21 países e há mais de 300 editoras do tipo reconhecidas na América Latina. No Brasil, a primeira cartonera foi Dulcinéia Catadora, fundada em 2007, em São Paulo, por Lucia Rosa e Peterson Emboava. De modo geral, a elaboração dos livros pelas cartoneras é artesanal e cada exemplar é pintado individualmente com tinta guache. Muitas cartoneras e os coletivos que as sustentam oferecem oficinas de edição, como é o caso também desta nova Malha Fina, que, como veremos, já organizou atividades desse tipo.
Quando foi criada a primeira editora cartonera do Brasil, “Dulcineia Catadora”, o nome “Dulcinéia” era o de uma catadora próxima dos fundadores. Porém, como eles não deixaram de perceber, é também remissão a uma figura memorável das literaturas hispânicas. É que a edição cartonera no Brasil mostra uma particular vinculação com os espaços de língua espanhola e uma indagação em determinadas relações possíveis entre os universos linguístico-culturais brasileiros e hispânicos. Concordamos a respeito com Flávia Krauss (2015), quem encontra na prática editorial cartonera um lugar propício para o “entremeio”, termo que adota de María Teresa Celada (2010) para significar as relações de proximidade e diferenciação incompleta entre ambas as línguas, e a vivência de instabilidade semântica de circular entre elas.
Não casualmente, um dos primeiros livros publicados por Dulcinéia Catadora no seu primeiro ano de funcionamento foi Uma flor na solapa da miséria, de Douglas Diegues, escritor que produz na forma interlingual que ele denomina “portunhol selvagem” (com instabilidade na grafia da própria denominação). Essa obra já tinha sido publicada em 2005 pela Eloisa Cartonera. Diegues, em 2007, deu início também a uma editora cartonera, Yiyi Jambo, que funciona na cidade de Ponta Porã, fronteira entre o Brasil e o Paraguai. E são numerosos, dentre os títulos publicados pelas cartoneras de países do Cone Sul, os que correspondem a traduções do espanhol para o português e vice-versa.
Nesse contexto, a aparição de Malha Fina Cartonera, por envolver em ampla proporção professores, pesquisadores e alunos da área de Espanhol da USP, promete ser um espaço que reflita e amplie esse lugar da edição como cenário privilegiado para diversas formas de relação, no discurso literário, entre os dizeres e as identidades linguísticas brasileiras e hispano-americanas.
Não é raro, para quem observa listas e coleções de editoras cartoneras, encontrar que algumas delas se desenvolvem no âmbito universitário ou em colaboração com grupos dessa extração. Embora não tenha sido essa sua origem, é compreensível que tenha acontecido esse direcionamento, já que a crítica acadêmica, marcada por uma relação com as práticas de pesquisa, tende a cumprir, em relação ao campo literário, um papel simultaneamente consagrador e desestabilizador, atento às novas formas de produção.
Malha Fina surge como uma das editoras cartoneras que começam no âmbito universitário. No caso, do curso de Letras da Universidade de São Paulo, e com uma forte interação inicial com um selo editorial (La Sofía Cartonera) vinculado à Universidad Nacional de Córdoba, Argentina, com a qual a área de Espanhol da USP mantém diversos intercâmbios desde tempo atrás.
Já na seção “Quem somos?” do seu blog, Malha Fina Cartonera sinaliza essa relação com a universidade, vínculo que, mais que como institucional, se apresenta como o de um espaço de práticas letradas:
A Malha Fina Cartonera é um selo editorial que resulta de um desejo incessante pelo novo. Busca estimular a produção e vida literárias no âmbito universitário de modo não convencional e autônomo, proporcionando um espaço de atuação e mobilização dos estudantes de Letras. Nesse primeiro ano serão publicados autores latino americanos em traduções inéditas e também outros livros de autores vinculados à Universidade de São Paulo. Nossa equipe é composta por professores, alunos e colaboradores. Está sempre de capas abertas à espera de interesse e entusiasmo.
Malha Fina, nos seus cinco meses de existência, tem promovido oficinas sobre design editorial e sobre como editar livros cartoneros. Esse tipo de atividades, junto com as que necessariamente fazem parte de um projeto editorial, tais como a investigação literária, a tradução e a arte de desenho, têm, no âmbito universitário e sob a proposta de um modo de produção autônomo, uma grande potencialidade formadora sobre profissionais das letras e da linguística. Não apenas no campo da edição, também nos da tradução e do ensino das literaturas e mesmo das línguas, se levarmos em conta o modo como a diversidade linguística do espanhol e os sentidos que resultam de sua enunciação no espaço do português brasileiro podem fazer parte da materialidade dessa realização. Do lugar que nos cabe nas ciências da linguagem e na formação de professores de espanhol no Brasil, cremos que uma impronta “cartonera” pode contribuir grandemente para desestabilizar estereótipos sobre as línguas e culturas com que trabalhamos.
Não faremos aqui uma leitura crítica dos quatro livros já publicados por Malha Fina, dos quais há uma boa resenha no próprio blog da editora (SOUSA, 2015), mas os descreveremos brevemente.
O livro 22 poemas, de Fabiano Calixto, foi publicado em parceria com a já mencionada Yiyi Jambo, de Ponta Porã. É, como o próprio título indica, uma seleção de poemas desse autor de origem pernambucana, radicado em São Paulo, que já conta com vasta obra publicada, inclusive um livro pela editora Cosac Naify, e traduções do poeta dominicano León Félix Batista.
Também poesia, Pretexto para todos os meus vícios, de Heitor Ferraz Melo, autor de São Paulo embora nascido na França, apresenta textos inéditos. Ferraz Melo tem ao menos cinco livros de poesia publicados previamente, além de muitas colaborações com a revista CULT como crítico literário.
Outro dos livros, Os olhos dos pobres, de Julián Fuks, narrador conhecido por títulos como Histórias de literatura e cegueira (Record, 2007) ou o recente romance A resistência (Companhia das Letras, 2015), reúne dois contos: o homônimo e “O jantar”, que já foram publicados em espanhol em 2014 pela editora La Sofía Cartonera.
Diálogos e incorporações, de Juliano Garcia Pessanha, circula entre modulações literárias e ensaísticas no tipo de vozes que cria e põe em cena. Dividida em quatro partes, cada uma delas tem como centro de referência um escritor ou um filósofo. O autor tem sua obra anterior recentemente recopilada em uma edição de Cosac Naify, Testemunho transiente.
Para concretizar outra das suas ambições, que é divulgar produção literária de estudantes de graduação e pós-graduação da Universidade de São Paulo, Malha Fina Cartonera realizou uma convocatória pública que está em andamento. Um comitê formado por reconhecidos críticos e editores selecionará duas propostas dentro das modalidades de poesia e/ou narrativa. As obras selecionadas serão publicadas em formato cartonero, inicialmente em cem exemplares.
Finalizando, embora Malha Fina Cartonera não seja a primeira editora desse tipo no país, é sim, a primeira que surge no âmbito dos estudos hispânicos no Brasil, e isso não é pouco. Sua potencialidade como espaço para mostrar relações pouco visíveis entre as línguas, literaturas e culturas da América Latina encontrará, sem dúvida, terreno fértil em uma Faculdade como a de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, em especial na sua área de Espanhol, onde a experimentação, a reflexão e a pesquisa sobre esses “entremeios” já tiveram expressões pioneiras.
Por isso, cremos também que pode atingir uma boa projeção sobre o conjunto do hispanismo brasileiro e de modo geral sobre aqueles que, na universidade, tentam pensar a América Latina a partir das suas práticas literárias e culturais. Para sua abordagem no século XXI, é cada vez mais evidente que a modalidade cartonera deve integrar o repertório de estudos.
Referências
BILBIJA, Ksenija & CELIS CARABAJAL, Paloma (Ed.). Akademia Cartonera: A Primer of Latin American Cartonera Publishers. Winconsin: Paralell Press, 2009. [ Links ]
CELADA, María Teresa. “Entremeio español / portugués – errar, deseo, devenir”, Caracol, n. 1, 2010: 110-150. [ Links ]
KRAUSS, Flávia. “Sobre o entremeio: a escritura dos manifestos presentes em Akademia Cartonera”, Malha Fina Cartonera (blog), 2015. Disponível em <https://goo.gl/v8I03g>. Acesso em: 20 nov. 2015. [ Links ]
PALOMINO, Héctor; “Las experiencias actuales de autogestión en Argentina. Entre la informalidad y la economía social.” Nueva Sociedad, n. 184, 2003: 115-128. [ Links ]
PETRAS, James & VELTMEYER, Henry. Argentina: entre la desintegración y la revolución. Buenos Aires: La Maza, 2002. [ Links ]
SOUSA, Pacelli Alves de. “Coedições e outras considerações: Fuks, Pessanha, Calixto e Ferraz na Malha Fina”, Malha Fina Cartonera (blog), 2015. Disponível em: <https://goo.gl/E4Su7d>. Acesso em: 20 nov. 2015. [ Links ]
Adrián Pablo Fanjul é professor no Departamento de Letras Modernas da USP e doutor em Linguística pela Universidade Estadual Paulista, campus de Araraquara. É bolsista de produtividade nível 2 do CNPq. Publicou os livros Espanhol e português brasileiro: estudos comparados (Parábola, 2014), em coautoria com Neide González, e Português e Espanhol: línguas próximas sob o olhar discursivo (Claraluz, 2002), e, nos últimos anos, artigos nas revistas Bahtiniana, Cadernos de Letras da UFF, Lingua(gem) em Discurso e Letras de Hoje.
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