Pensar modernidade nos grandes centros urbanos nas primeiras décadas do século XX é, principalmente quando se leva em consideração a perspectiva dos trabalhadores nacionais de origem afrodescendente, acompanhar o processo de reorganização do espaço urbano de forma a reproduzir os padrões europeus em detrimentos de influências culturais negras. As principais cidades do Brasil foram buscar inspiração, principalmente, nas referências francesas e mobilizaram os recursos possíveis para controlar as manifestações de origem africanas ou indígenas. Em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, em nome da modernidade, as populações empobrecidas foram empurradas para os locais mais distantes e sem estruturas, iniciando um processo histórico de marginalização nos principais centros urbanos.
Os pesquisadores do campo da História Social, a partir de diferentes olhares e fontes, observaram o entusiasmo de estadistas com a construção de grandes avenidas, o empenho de sanitaristas com o combate às epidemias que assolavam a população, além de práticas do cotidiano que possibilitaram a contenção de indivíduos não brancos em espaços que representariam o progresso da nação brasileira1. Entre os temas debatidos também destacaram o impacto dos imigrantes europeus nas dinâmicas sociais daquele período, que convergiam para a construção de um Brasil moderno embranquecido. A partir de ideias concebidas no pensamento raciológico europeu, parte da classe política e da intelectualidade brasileira passou a condicionar o lugar do país na modernidade à constituição de uma nação branca nos trópicos em um período de longo prazo.
Por outro lado, lideranças e intelectuais afrodescendentes reagiram à modernização marginalizadora, apontando o lugar do negro na história do Brasil e, consequentemente, para uma outra concepção de nação que desconstruía a noção de experiência negra enquanto expressão do atraso. Nesse sentido, as narrativas que anunciavam a emergência de um Brasil modernizado nos termos europeus foram confrontadas por diferentes vozes que conformaram uma modernidade negra no Brasil, que passaram a imaginar a nação, e o Ocidente em geral, como uma ampla comunidade capaz de abrigar o negro enquanto civilizado. As modernidades negras se revelaram de diferentes maneiras, através das publicações de intelectuais e ativistas negros, ou de representações criadas por intelectuais brancos, como algumas obras associadas à geração modernista da década de 1920. A partir dessa profusão de representações se reforçou a ideia de que as populações negras poderiam ser incorporadas ao processo civilizatório brasileiro e ocidental2.
As noções de modernidade eurocêntrica e de modernidade inclusiva conviveram e interagiram durante a primeira metade do século XX, atravessando os debates sobre a identidade nacional, as identidades regionais e as desigualdades de classe e de raça. Essas tensões aparecem como tema no livro publicado pelos historiador Rafael Cardoso. Em Modernity in Black and White: Art and Image, Race and Identity in Brazil (1890–1945), Cardoso reflete sobre as múltiplas modernidades, ou as modernidades periféricas, que surgem em representações culturais fora dos círculos das elites vanguardistas e desafiam a narrativas mainstream sobre o modernismo. O próprio historiador anuncia a sua afiliação a uma linhagem de acadêmicos que enfatizam o caráter multidimensional dos modernismos e criticam o tradicional discurso sobre o modernismo brasileiro que gira em torno da semana de 1922. De acordo com Cardoso, abaixo da superfície do elitismo dos críticos de arte existia uma cultura de revistas e outros impressos que reagiam esteticamente às experiências urbanas.
O historiador se envereda pelas artes gráficas das revistas de grande circulação nas primeiras décadas do século XX sem deixar de lado os modernistas do mainstream, elucidando uma fronteira entre o erudito e o popular. Nesta obra, Rafael Cardoso articula temas e questões explorados em escritos anteriores como a representação de afro-brasileiros na arte, o modernismo nas artes gráficas e a relação entre arte e identidade nacional. Em uma incursão temporal em um espaço geográfico determinado, Cardoso os rearticula em uma linha do tempo que identifica modernismos antes da década de 1920 em uma paisagem singular como a cidade do Rio de Janeiro, que combinava a “novidade” e o “atraso”, simbolizando as contradições brasileiras daquele período. As fontes analisadas revelam a coexistência entre sagrado e o profano e o urbano e o rural em um espaço que força a convivência entre as elites eurocentradas e as classes populares formadas por trabalhadores imigrantes e afrodescendentes.
O livro foi organizado em cinco capítulos que abordam diferentes perspectivas sobre o moderno nos quais a cultura popular é retratada por ilustradores de revistas de grande circulação e pela elite das artes plásticas. Cardoso, ao longo da obra, demonstra as suas habilidades de historiador da arte, nos brindando com descrições minuciosas das fontes analisadas em um exercício de identificação de elementos na composição das artes que revelam diferentes percepções sobre o popular. O historiador, entretanto, não se propõe a apenas fazer a contextualização e a interpretação de uma série de obras artísticas, o livro apresenta uma narrativa que ganha em sofisticação ao acompanhar as trajetórias de figuras-chave das artes gráficas que possibilitam a articulação entre os temas debatidos nos capítulos.
No primeiro capítulo, no qual analisa o imaginário sobre as favelas, por exemplo, Rafael Cardoso ressalta a importância de Paulo Barreto, conhecido popularmente como João do Rio. O jornalista, segundo historiador, foi fundamental para a construção de uma representação sobre as favelas que ia além das alegorias de vício e perigo. A partir de uma incursão noturna, em tom jornalístico, João do Rio fez um relato sobre a sua experiência no Morro de Santo Antônio, revelando o distanciamento e o estranhamento com as práticas culturais dos moradores, descrevendo a favela como um outro território dentro da cidade. Ainda assim, observa Cardoso, reconheceu a dignidade daquelas pessoas que habitavam o morro. Gustavo Dall’Ara, artista que retratou a favela em duas obras, também foi citado pelo historiador, como referência de uma representação positiva. Por outro lado, seja na pintura de Tarsila do Amaral ou no manifesto de Oswald de Andrade, a favela aparece de maneira abstrata destacando-se mais como um experimento estético do que uma expressão das experiências de pobreza dos habitantes. Entretanto, as ilustrações de J. Carlos (João Carlos de Brito e Cunha) são as que ganham destaque na análise de Cardoso, pois reforçaram a associação entre favela e negritude a partir de uma estética racista inspirada nas artes gráficas dos Estados Unidos.
Entre os distanciamentos e as aproximações em relação às culturas populares que faziam parte do processo de modernização do Rio Janeiro, o historiador aponta diferentes projetos de representação do moderno que foram procurar inspiração nas classes populares da cidade. Assim, no segundo capítulo, Cardoso explora as sociabilidades da boemia que se configurava na virada dos séculos e o imaginário construído em torno desse universo. Aqui as interações entre artistas se dão em espaços que potencializam a criação de uma arte moderna através de uma rede que envolve bares e escola de artes. Ao perscrutar o clima festivo nos ambientes da intelectualidade carioca, Rafael Cardoso apresenta ao leitor figuras importantes das duas primeiras décadas do século XX que representaram as novas experiências urbanas e também as performaram em eventos noturnos e carnavalescos.
O artista afro-brasileiro Calixto Cordeiro – conhecido popularmente como K. Lixto – assume o papel de arquétipo de uma geração de ilustradores que se notabilizaram com a arte em revistas de grande circulação, como O Malho, e ganharam o status de celebridade. K. Lixto reproduzia em seus traços a sua própria experiência como dançarino boêmio, a sua postura flamboyant revelava a sua capacidade de circular entre as fronteiras de classe e de raça, contrastando com a dificuldade de alguns artistas, principalmente aqueles associados com a Semana de 22, de se entregar à cultura popular dos grandes centros urbanos daquele período. Rafael Cardoso destaca como o Carnaval carioca se apresentava para esses artistas celebridades como uma oportunidade de misturar as vivências da elite e das classes populares.
No terceiro capítulo, o historiador aprofunda a sua análise sobre as revistas das duas primeiras décadas do século XX, observando os avanços de técnicas de impressão e reprodução fotográfica que possibilitaram a experimentação artística. Aqui Cardoso foca na materialidade das produções artísticas dos ilustradores dessas revistas e nas inovações artísticas que se revelam, por exemplo, nas propagandas e na diagramação. Os periódicos desse período funcionaram como um canal privilegiado para as produções de artistas, dentre elas as caricaturas, que foram estimuladas por figuras como Gonzaga Duque, um entusiasta da arte “do povo para o povo”. A revista Fon-Fon, em que o título faz referência à modernidade através da onomatopeia da buzina de automóvel, popularizou, através de inovações, as artes gráficas que retratavam as mudanças vividas pelas sociedades urbanas do Brasil, principalmente no Rio de Janeiro. Esse mesmo periódico, de acordo com Cardoso, também demonstrava as contradições associadas aos sujeitos marginalizados, como mulheres e negros, zombando de Monteiro Lopes, primeiro congressista negro eleito no Brasil, e estampando ilustrações como a de K. Lixto que problematizava a situação da população negra no período pós-abolição.
Ao observar a trajetória de Oswald de Andrade, no quarto capítulo, Rafael Cardoso aponta os limites da Antropofagia enquanto projeto de construção de uma identidade nacional. Se o popular e o afro-brasileiro emergiram nas revistas das duas primeiras décadas entre alegorias positivas e negativas, a Antropofagia pareceu negligenciar as experiências negras e, seguindo o temperamento de Oswald, até mesmo zombar da possibilidade de construção de uma identidade nacional a partir da constituição de subjetividades negras. Aqui o historiador reforça o seu argumento do caráter elitista de artistas ligados à Semana de 22 e a dificuldade do grupo para apreender as experiências negras da modernidade brasileira.
Por outro lado, no final da década de 1920, Di Cavalcanti e o poeta francês Benjamin Perét manifestaram um fascínio pela cultura afro-brasileira, reproduzindo a relação de estranhamento já comum em obras de jornalistas que exploravam o universo mágico das religiões afro-brasileiras. No olhar de Cardoso, essas duas figuras são importantes porque representam o esforço de criação de uma estética que incorporaria o negro e alguns elementos da cultura afro-brasileira às noções de povo e trabalhador brasileiro. A luta de classes que mobilizava a intelectualidade de esquerda no Brasil, na obra de Di Cavalcanti, foi influenciada pelo muralismo mexicano, articulando as ideias de cultura, raça e nação na concepção de uma brasilidade. Nesse sentido, o samba, que não foi considerado por Mário de Andrade como um gênero representativo da cultura brasileira, foi ganhando espaço como referência fundamental na concepção de um imaginário sobre o Brasil moderno.]
Ao explorar o modo como as artes passaram a incorporar as culturas populares não eurocentradas à identidade nacional, o historiador conduz o leitor para o tema do último capítulo, em que apresenta o debate sobre a “cara do brasileiro”. De acordo com Rafael Cardoso, o varguismo foi marcado pela busca da afirmação de uma identidade para a nação capaz de eliminar as regionalidades. Depois da Revolução de 30, a noção de raça não desparece necessariamente, mas é reelaborada em diferentes linguagens no processo de definição de um perfil brasileiro. Nesse contexto, a falta de “uniformidade” e “homogeneidade” foi um desafio para artistas que ainda resistiam a reconhecer as matrizes indígenas e afro-brasileiras e desejavam um brasileiro próximo do ariano. Gustavo Capanema, por um lado, imaginava um futuro embranquecido para o Brasil, mas Candido Portinari, por outro, retratava em suas pinturas o homem “moreno”, capaz de traduzir a “mistura brasileira”. A estética de Portinari, assim como os temas trabalhados em suas obras, seria incorporada pelo discurso oficial do governo que, através dos trabalhos de artistas como o ucraniano Dimitro Ismailovitch e da curadoria do antropólogo Arthur Ramos, definiram as diferentes “faces do Brasil”.
Assim, em Modernity in Black and White, o leitor acompanha uma perspectiva mais ampla do modernismo, reproduzido nas artes plásticas, mas principalmente nas artes gráficas. Na obra de Rafael Cardoso, as renovações estéticas e as novas técnicas de impressão evidenciam uma profusão de contradições e tensões sociais no processo de imaginação de um Brasil moderno. A noção de raça, seja no retrato da urbanidade carioca ou da sociedade brasileira de maneira mais abrangente, atravessa o enquadramento dos artistas sobre as experiências populares, que se revela em discursos sobre a diferença racial ou sobre a mistura de raças. Através das artes, observamos diferentes percepções sobre o popular que contribuíram com elementos para forjar a ideia de uma democracia racial no Brasil.
O processo de representação do Brasil, no entanto, é profundamente assimétrico. No epílogo da obra, Cardoso, sem pretensões sociológicas, aponta os limites dos projetos de constituição da brasilidade. O historiador encerra o livro com uma breve análise do lugar social do negro através da personagem Virgulina, a mulher negra que pode ser usada e abusada pelo homem branco e que aparece constantemente em ilustrações de revistas. Essa é uma representação criada para o consumo de leitores brancos de classe média e que demonstra, afirma Cardoso, a relação conflituosa com as populações não europeias do país. O que é possível observar, ao longo da capítulos também, é a falta de protagonismos de artistas negros na disputa pela constituição de imaginários sobre o Brasil, ainda que com a presença de figuras como K. Lixto. Essa não é uma questão explorada por Cardoso, mas que atravessa os temas debatidos na obra. Diferentemente dos Estados Unidos, onde uma classe de negros intelectuais, entre as décadas de 1920 e 1930, se propôs a reelaborar a imagem dos negros na modernidade através do Harlem Renaissance, não se formou no Brasil uma ampla classe de intelectuais negros capaz de dialogar e questionar as narrativas dos modernistas brasileiros.
Modernity in Black White é uma obra importante para se refletir sobre a construção da brasilidade a partir de uma noção de modernismo mais abrangente. A publicação do livro faz parte do esforço de historiadores estadunidenses de divulgar pesquisas de historiadores como Rafael Cardoso entre os estudiosos do campo de Latin American Studies, mas é importante que seja traduzida para os leitores brasileiros interessados no tema.
Notas
1. Ver BUTLER (1998), SANTOS (2017).
2. Ver GUIMARÃES (2003), GILROY (2001).
Referências
BUTLER, Kim D. Freedoms Given, Freedoms Won: Afro-Brazilians in PostAbolition São Paulo and Salvador. New Brunswick: Rutger University Press, 1998
GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Modernidade e dupla consciência. São Paulo, Rio de Janeiro: Editora 34, 2001.
GUIMARÃES, Antonio S. A. A modernidade negra. Teoria & Pesquisa, São Carlos, n. 42-43, 2003, pp. 41-62.
SANTOS, Carlos José Ferreira dos. Nem tudo era italiano. São Paulo e pobreza (1890-1915). São Paulo: Annablume, 2017.
Resenhista
Flávio Thales Ribeiro Francisco – Professor Adjunto do Bacharelado em Ciências Humanas e do Bacharelado em Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (CECS-UFABC). Doutor (2014) pelo Programa de História Social da Universidade de São Paulo. Possui mestrado (2010) e graduação (2006) em História pela mesma instituição. Tem experiência na área de História, com ênfase em História da América, atuando principalmente nos seguintes temas: História dos Estados Unidos, Identidades, manifestações político-culturais transnacionais, Diáspora africana, Imprensa. É membro do LEHA (Laboratório de Estudos de História das Américas) e integrante do Grupo de Estudos de História dos Estados Unidos e Relações Interamericanas. https://orcid.org/0000- 0003-1617-977
Referências desta Resenha
CARDOSO, Rafael. Modernity in Black and White, art and image, race and identity in Brazil, 1890–1945. Nova York: Cambridge University Press, 2021.Resenha de: FRANCISCO, Flávio Thales Ribeiro. Raça, povo e alteridade na modernidade brasileira. ARS. São Paulo, v.19, n. 42, p. 625- 641, 2021. Acessar publicação original [DR]
Décima sexta edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…
Décima sétima edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…
Vigésima segunda edição. N.03. 2023 Edição 2023.3 Publicado: 2023-12-19 Artigos Científicos Notas sobre o curso de…
Publicado: 2024-06-19 Artigo original A rota dos nórdicos à USPnotas sobre O comércio varegue e o…
Quem conta a história da UFS, de certa forma, recria a instituição. Seus professores e…
Publicado: 2023-06-30 Edição completa Edição Completa PDF Expediente Expediente 000-006 PDF Editorial História & Ensino 007-009…
This website uses cookies.