Modernismos | Revista Brasileira de História | 2022
O Theatro São Pedro no início do século XX | Imagem: Fabiana Crepaldi
Em memória de Nicolau Sevcenko, historiador do modernismo e dos “seus frementes anos 1920”.
Em um texto de intenções um tanto polêmicas, o crítico estadunidense Harris Feinsod, estudioso de literatura e cultura modernistas, evoca o poeta russo-revolucionário Maiakovski: “Parem de uma vez por todas essas reverências contidas em efemérides de centenários, a veneração por meio e publicações póstumas. Tenhamos artigos para os vivos! Pão para os vivos! Papel para os vivos!” (Feinsod, 2016, tradução nossa). Nessa mesma linha, Feinsod declara: “Há muitas razões para se apavorar com a chegada do ano de 2022”.
De fato, por inevitável que seja, toda comemoração, e todas as efemérides de centenários em especial, correm o risco de promover mais esquecimentos do que memória, mais ocultamento e exclusão do que aprofundamento e análise. Em todo caso, espera-se que, em alguma medida, o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, com suas celebrações laudatórias, mas também com suas contestações e seus deslocamentos críticos, ofereçam menos uma falsa aparência de coerência, como sugere Feinsod, do que uma oportunidade de expansão de um arquivo vívido e palpitante, sempre em transformação e em movimento. Eis, pois, a “beleza do vivo”, para pôr o mote de Michel de Certeau às avessas, aqui em questão.
Nesse artigo de apresentação do dossiê Modernismos, da RBH, valemo-nos da reconstituição das celebrações do cinquentenário da Semana de 1922 para lançar luz sobre alguns significados que hoje se confirmam e se impõem, por vezes com alguma violência, não somente acerca do que o modernismo ultrapassou, mas também dos seus aspectos que, vistos na atualidade, podem parecer datados. Se, como sugere o pesquisador Frederico Coelho, o ano de 1972 representa o momento em que se cria “uma espécie de consenso público ao redor da importância do Modernismo brasileiro” (Coelho, 2021, p. 109), as celebrações do cinquentenário coexistiram com outras efemérides de maior monta, a exemplo do Quarto Centenário de Os Lusíadas (1572) e do Sesquicentenário da Independência (1822-1972), e pode-se dizer que foram relativamente discretas.
Houve até quem aventasse que a discrição comemorativa se deveu em parte ao fato de as datas de 13, 15 e 17 de fevereiro de 1972 terem coincidido com o calendário do carnaval daquele ano. Para ficar com esse exemplo que escapa ao campo da chamada alta cultura letrada, é de se observar que, naquele carnaval, no Rio de Janeiro, a escola de samba Imperatriz Leopoldinense escolheria Martim Cererê, de Cassiano Ricardo, conhecido e controvertido poeta, prócer do verde-amarelismo, para ser o livro-tema do desfile, homenageado de seu enredo carnavalesco, a passar em forma de cortejo na Avenida Presidente Vargas.
O argumento da parcimônia na comemoração dos cinquenta anos da Semana levou a que, no último dia de 1972, um artigo de balanço, veiculado pelo prestigioso “Suplemento Literário” do jornal O Estado de S. Paulo, lamentasse que as comemorações haviam sido modestas, com destaque apenas para três eventos: uma exposição fotográfica em Paris, organizada pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP); as reedições de Klaxon e Terra Roxa, revistas vanguardistas dos idos de 1920; e um ensaio do filósofo e crítico literário paraense Benedito Nunes sobre a antropofagia oswaldiana (Ortiz, 1972, p. 1).
O autor do texto no jornal paulistano, Gilberto Ortiz, não indica o título do artigo, mas sabe-se que Benedito Nunes havia publicado no final do ano anterior, por meio daquele mesmo suplemento, o texto “O retorno à antropofagia” (26 dez. 1971), assinando também o alentado e denso prefácio ao volume VI das Obras completas de Oswald de Andrade, subintitulado Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. Este quarto volume acabara de ser publicado pela combativa Editora Civilização Brasileira, de Ênio da Silveira (Freire, 2019), sob os auspícios de um importante redentor da história do modernismo paulista, mormente da figura de Oswald de Andrade, o crítico Mário da Silva Brito. Benedito Nunes, por seu turno, propunha uma mirada filosófica aos textos histórico-ensaísticos de Oswald, que consagrariam o crítico como um dos mais agudos intérpretes oswaldianos, sob o título de “A antropofagia ao alcance de todos”.
Apesar do lamento do jornalista do Estadão, naquele 31 de dezembro, em São Paulo, as comemorações públicas haviam sido marcadas para a primeira semana de maio, com cartazes reproduzindo a tela “Operários” (1933), de Tarsila do Amaral, afixados em pontos estratégicos do centro de São Paulo. Outro marco celebratório deu-se no histórico Teatro São Pedro, situado na rua Albuquerque Lins, com a estreia da peça “Esses intrépidos rapazes e sua maravilhosa Semana de Arte Moderna”, de autoria de José Carlos Queiroz Telles, com músicas de Chico Buarque e Toquinho, direção de Fernando Peixoto, e um cenário, por assim dizer, circense-tropicalista, concebido por Hélio Eichbauer, o mesmo que fora responsável pela cenografia de O rei da vela, de José Celso Martinez Correa, quatro anos antes (Veloso, 2017).
Também fora de um universo artístico-cultural mais estrito, assinale-se que os Correios tiveram a iniciativa de lançar um selo comemorativo, a reproduzir a capa do programa da Semana de 1922, criado originalmente por um de seus partícipes, o pintor Di Cavalcanti. Consta ainda que, a convite de Ruth Escobar, o diretor franco-argentino Vitor Garcia pretendia montar O homem e o cavalo, de Oswald de Andrade, mas, devido aos cortes ao texto impostos pela Censura – vivia-se sob o arbítrio do governo Médici -, acabou por desistir.
Em São Paulo, o evento mais comentado foi a exposição “A Semana de 22: antecedentes e consequências”, em cartaz no MASP, já situado no novo prédio da Avenida Paulista, concebido por Lina Bo Bardi, em cujo vão central se remontou o Circo Piolin, com espetáculos diários. Em acréscimo, o diapasão encomiástico assistiu a uma série de concertos no Theatro Municipal e contou com presença, entre outros, da pianista Guiomar Novaes. Esta, como se sabe, participara, um tanto a contragosto, do evento de cinquenta anos atrás, nos pródromos daquele mesmo palco do centro paulistano.
Em 1972, a maioria daqueles que hoje se consideram protagonistas do movimento já não se encontravam vivos, tais como três integrantes do chamado Grupo dos 5: Anita Malfatti, Mário e Oswald. Tarsila já era octogenária e faleceria no ano seguinte, ao passo que Menotti Del Picchia, a então completar oitenta anos, este sim assumira de forma oportuna a dianteira na organização das comemorações oficiais de São Paulo. Tirando proveito, o remanescente, poeta autor de Juca Mulato, ofereceria seu testemunho de artífice da Semana em uma série de palestras pelo país afora.
Mas as esperadas comemorações que demarcariam a centralidade de Semana na memória da cultura brasileira assistiriam também a um ano de perdas para o legado modernista. No dia 3 de junho, poucas semanas depois do início da exposição no MASP, morria no Guarujá, aos 55 anos, um dos idealizadores do referido cinquentenário, o pintor Oswald de Andrade Filho, o Nonê. O primogênito do homônimo escritor, em parceria com Pietro Bo Bardi, concebera tal exposição no Museu soerguido por Chateaubriand, mas não pôde presenciar sua inauguração.
Na ambiência de 1972, enquanto nos cinemas entrava em cartaz o, por assim dizer, antropofágico Como era gostoso o meu francês, de Nelson Pereira dos Santos, o mercado editorial destacava-se com o lançamento de Vanguarda europeia & modernismo brasileiro, de Gilberto Mendonça Teles, professor da PUC-Rio; com Modernismo Brasileiro, Bibliografia 1918-1971, lançado pela Biblioteca Nacional e organizado por Xavier Placer, escritor e poeta; com os seis volumes da coleção Poetas do modernismo: antologia crítica, sob organização de Leodegário Amarante de Azevedo Filho, professor e ensaísta.
A lista amplia-se com Tarsila, de Aracy Amaral, pela editora Martins, professora uspiana que pontificaria nos estudos do modernismo sob as lentes das artes plásticas. No bojo editorial da efeméride, sucede ainda a reedição de Antecedentes da Semana de Arte Moderna, do historiador literário Mário da Silva Brito, cuja primeira edição remontava ao ano de 1958 (Brito, 1971).
À sombra da repercussão oficial das celebrações oficiais do Sesquicentenário da Independência, mobilizador e catalizador dos investimentos governamentais da ditatura então vigente, o modernismo não deixou de marcar sua posição, ao contrário do retrospecto pessimista do jornalista do Estadão supracitado. Há uma série de publicações e republicações promovidas pelo governo paulista, o que denota o sentido tão acadêmico quanto oficial adquirido pela data. Nesse sentido, Frederico Coelho dá relevo aos seguintes títulos: Antologia dos poetas paulistas da Semana de 22 e Metamorfoses de Oswald de Andrade (1969), ambos de Mário da Silva Brito; Mário de Andrade: ramais e caminhos (1972), de Telê Ancona Lopez, tenaz estudiosa marioandradina; A literatura em São Paulo em 1922, de Breno Ferraz do Amaral (1972); e a já citada republicação em fac-símile da revista Klaxon (Coelho, 2012, p. 114).
Ponto fora da curva, registre-se também uma publicação associada ao cinquentenário da Semana de parte da Editora Leitura, que relançou três novelas do romancista e político paraibano José Américo de Almeida, cuja projeção se dera com A bagaceira, em 1928, no mesmo ano de aparição de Macunaíma: Reflexões de uma cabra (1922), O boqueirão (1935) e Coiteiros (1935).
Com efeito, tal como em 2022, também em 1972 surgiam diversas tentativas de descentralizar a hegemonia do modernismo paulista, seja apontando para outras latitudes regionais, em especial Minas Gerais e Pernambuco, seja reivindicando o papel pioneiro atribuído a outros atores. Este foi o caso conhecido do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, que argumentava, em caderno especial dedicado ao Modernismo, igualmente publicado no Suplemento do Estado de S. Paulo, a 20 fevereiro, ter sido ele, em realidade, o deflagrador de um autêntico modernismo nacional.
Isso se dera graças ao “Movimento regionalista tradicionalista e, a seu modo, modernista”, seu manifesto dos anos 1920 (Freyre, 1977), que sublinhava a preexistência de um espírito renovador na capital pernambucana antes de 1922. Em contraponto, o jornalista Joaquim Inojosa reivindicava para si o papel de primeiro divulgador do modernismo no Nordeste e chamava, no mesmo jornal, a posição de Freyre de “o movimento imaginário do Recife” (Inojosa, 1972, p. 4).
O debate do descentramento e da crítica ao “paulistocentrismo” não é, pois, novo. Em 21 de janeiro do mesmo ano, o crítico de arte Walmir Ayala anuncia no Jornal do Brasil o lançamento, em março, de “uma das homenagens mais polêmicas do cinquentenário” (Ayala, 1972, p. 2). O fato se daria na revista ilustrada Cultura, editada pelo Ministério da Educação e Cultura, um número com intenções de fazer uma revisão do registro histórico da Semana. Nela, pontificavam o eminente crítico baiano Afrânio Coutinho, que discute o caráter nacional do modernismo; o poeta mineiro Murilo Araújo, a tratar o modernismo no espaço urbano do Rio de Janeiro, capital da República; o também poeta de Minas Henrique de Resende, que ressalta a importância e a sobrevivência do movimento Verde, de Cataguases, cidade do interior de Minas Gerais; e ainda outro poeta, Reinaldo Bairão, cujo texto recorda que Guiomar Novais estava alheia ao programa modernista, insistindo em tocar Chopin nas noites festivas de fevereiro de 1922.
Convém não confundir a revista acima, publicada entre 1971 e 1984 pela Diretoria de Documentação e Divulgação do MEC, com a conservadora Revista Brasileira de Cultura, editada pelo Conselho Federal de Cultura do MEC. Por seu turno, tal periódico, no primeiro trimestre daquele ano, trouxe a lume um artigo de autoria de Teixeira Soares sobre Mário de Andrade (Soares, 1972, pp. 65-78), e outro em que Alphonsus de Guimarães Filho fazia um apanhado das recentes publicações sobre o modernismo mineiro (Guimarães Filho, 1972, pp. 127-134). Deve-se também salientar a diferença com outra revista, Cultura, publicada pelo Conselho entre 1967 e 1970, e que, a partir de 1971, passou a chamar-se Boletim do Conselho Federal de Cultura. Na edição do segundo trimestre consta somente uma página de Cassiano Ricardo, intitulada “Semana de Arte Moderna” (Ricardo, 1972, p. 27).
Em agosto, o Correio da Manhã recomenda o n. 5 da mesma revista, dedicado ao cinquentenário, em que Luís Delgado, egresso do meio literário pernambucano dos anos 1920, teria escrito sobre as origens do modernismo em Pernambuco. Ao que parece, a despeito dos esforços do Estado em oficializar e nacionalizar a Semana, entre os leitores havia ainda certa resistência e desinformação, como indica a carta de um leitor para o Jornal do Brasil (21 out. 1972, p. 8): “Em seu último número, a revista Cultura, editada pelo ministério da educação, reproduz na capa pintura exposta em 1922, durante a Semana de Arte Moderna. A publicação é luxuosa, bem impressa e deve ter custado bom dinheiro ao Governo. Mas se o objeto é apurar o gosto artístico dos leitores, vai ser difícil, de vez que o trabalho reproduzido não passa de um monstrengo”. O quadro em questão é A negra, que Tarsila, pintora que não participara da Semana, mas que viria a apresentar a tela no ano seguinte, em 1923.
Na edição de 5 de fevereiro, o Jornal do Brasil publica um número especial do influente “Caderno B” com uma série de artigos que tentam dar conta das ramificações do evento e do movimento. A série publica escritos de autores dos mais variados matizes, alguns deles remanescentes da Semana ou de seus desdobramentos, tais como Cândido Mota Filho, Guiomar Novais, Sérgio Buarque de Holanda, Raul Bopp, Prudente de Morais Neto, Joaquim Inojosa, Antônio Carlos Villaça, Menotti Del Picchia e Plínio Salgado.
O registro jornalístico não deixa de incluir depoimentos de opositores, como do escritor Leo Vaz, para quem “a Semana nunca existiu” e “nunca poucos lograram enganar muito a tantos bobos”; ou o artista Antônio Paim Vieira, que diz ter improvisado três desenhos para serem exibidos no Teatro Municipal. Para o ilustrador, a tal Semana “não teve a menor preocupação social” e os “futuristas todos eram burgueses confortáveis, que gostavam de se reunir em ambiente de luxo, gozando, fazendo blague, mas sempre em harmonia com os Governos”.
Quem de forma mais contundente tentou relativizar, se não detonar, a importância do evento foi o historiador Yan de Almeida Prado, que participara da Semana com dois desenhos e colaborara em seguida na revista Klaxon. Em artigo publicado no Diário da Noite, de São Paulo, a 10 de fevereiro de 1972 (Prado, 1972, p. 11), seu título já dizia ao que viera: “A ‘Semana’ foi criada por um grupo de sócios do Automóvel Clube que se aborreciam em 1922”. Segundo Prado, seus participantes de maior mérito – Villa Lobos, Di Cavalcanti e Anita Malfatti – nada deveram ao evento, já que nenhum deles foi divulgado pela Semana. Comenta o empenho de Oswald de demolir o pintor Vicente do Rego Monteiro quando o grupo vivia em Paris, acrescentando que “ninguém podia manter relações com ele sem um belo dia receber coices”. Yan menciona a pintora mineira Zina Aita, autora de numerosos trabalhos para a exposição no Municipal, tendo morrido “olvidada pelos aproveitadores da Semana”. Faz, por fim, uma única ressalva em relação a Mário de Andrade, a seu juízo, o “único lídimo produto da Semana”.
Yan de Almeida Prado atribui a fama da Semana à falta de críticos e historiadores sérios, “reflexo de doloroso subdesenvolvimento intelectual”, e diz que Oswald e Mário não tiveram discípulos e não fizeram escola, com o desmerecimento da adaptação tropicalista de Macunaíma, por Joaquim Pedro de Andrade, e com o menoscabo pela montagem de O rei da vela, de José Celso, chamada de “monstrengo oswaldiano”. Óbices acadêmicos e pessoais à parte, a Semana começava a se tornar mainstream e revistas de grande circulação, como a Realidade, da poderosa Editora Abril, dedica-lhe uma longa reportagem de capa (“Arte Moderna: uma semana faz 50 anos”), em janeiro de 1972. O Cruzeiro, a 9 de fevereiro, inclui matérias de Menotti Del Picchia e Tarsila do Amaral, Mário da Silva Brito e Plínio Salgado, Renato de Almeida e Di Cavalcanti. Por sua vez, a revista Veja, no dia 23 daquele mês, entrevista Tarsila do Amaral em suas prestigiadas páginas amarelas, além de produzir uma matéria especial, não assinada, que procurava já minorar a relevância da Semana.
Para fechar essa descrição remissiva ao contexto dos anos 1970, que vai de encontro à opinião do jornalista Gilberto Ortiz, conforme mencionado acima, a observar a tímida repercussão da Semana à época do seu cinquentenário, elenque-se o documentário produzido pelo cineasta Geraldo Sarno e veiculado, na Rede Globo de Televisão, como episódio do programa Globo Shell Especial (cf. Semana da Arte Moderna, 1972).
A emissora, já posicionada entre os principais canais televisivos do país, leva ao ar o tema, o que denota a importância atribuída, mediante a filmagem de um cineasta, formado no Cinema Novo e que se profissionalizava na televisão, com abordagens audiovisuais da realidade social e artística brasileira. Junto a entrevistados mais conhecidos do período, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, a reportagem de cinquenta minutos tem texto de Zuenir Ventura e narração de Cid Moreira. A matéria começa com uma enquete nas ruas de São Paulo e interroga transeuntes anônimos. Em momento seguinte à abertura, a gravação estende-se até mesmo a espectadores em estádios de futebol, perguntando-lhes de modo inusitado acerca da familiaridade dos torcedores com a Semana de 1922, com respostas o mais das vezes insólitas.
Feita a contextualização do cinquentenário, pode-se dizer que preparação para a efeméride do centenário em 2022 vem sendo construída há pelo menos uma década, com as celebrações dos 90 anos, com obras tais como os nove volumes incluídos na coleção Modernismo +90, editados pela Casa da Palavra e organizados pelo filósofo Eduardo Jardim de Moraes. Trata-se de uma miríade de assuntos, que vão da filosofia à música, do cinema às artes plásticas, com destaque para o livro Modernismo em revista: estética e ideologia nos periódicos dos anos 1920 (2013), de Ivan Marques, dedicado à trajetória dos sete principais periódicos modernistas, de Klaxon (1923) à Revista de Antropofagia (1928). Inclua-se o já citado livro de Frederico Coelho, imprescindível para se compreender a recepção crítica e fundamental para sopesar no gradiente cronológico a consagração decenal da Semana (Coelho, 2012).
Ao lado desses trabalhos, algumas obras de jornalistas têm servido de fonte importante para os estudos sobre o modernismo, de forma panorâmica e com investigações originais. Lançado em fevereiro de 2012, também na esteira dos noventa anos da efeméride, o livro 1922: A Semana que não terminou, do jornalista Marcos Augusto Gonçalves, é talvez o melhor exemplo desse tipo de publicação voltada à divulgação científica e ao público leigo interessado, destinada a circular para além dos circuitos teórico-acadêmicos.
De leitura agradável, acessível e bem documentado, o livro não deixa de ser crítico, antecipando alguns dos debates que ainda agora se publicam nos jornais como se fossem novidades e que ecoam nas redes sociais, com o apontamento prévio para as contradições do movimento, assim como seu ímpeto conciliatório. Gonçalves reavalia a hegemonia paulista na consagração da modernidade e do modernismo brasileiros; o artificialismo do seu status de divisor de águas na cultura brasileira; a noção de que tudo que viera antes, sobretudo nas artes plásticas, era acadêmico e conservador; o papel da elite cafeeira de São Paulo – que patrocinou a Semana de Arte Moderna – e o contexto em que se insere, de “promoção do mito dos bandeirantes, transformados em homens idealistas, a desbravar os sertões, escavar riquezas e expandir fronteiras” (Gonçalves, 2012, p. 177).
Sempre de forma equilibrada, Gonçalves traça um perfil dos participantes, descreve os antecedentes do evento e conta em narrativa jornalística os detalhes da programação. Outrossim, também comenta as incongruências do cenário paulistano em 1922, no que ele chama de “modernismo plantation”. Este ajuizava que o “velho tardava em se retirar e o novo ainda não reunia energias para se impor” em obras que, “em muitos aspectos, se conectavam à tradição que pretendiam confrontar” (Gonçalves, 2012, p. 270). De forma sintética, o jornalista afirma:
O sugestivo paralelo entre o tremor de terra que chacoalhou a madrugada dos paulistanos e o “terremoto estético” da Semana – imagem que foi usada por Oswald de Andrade e Menotti del Picchia – dever ser visto com uma dose de cautela. Se, em algumas versões, tenta-se negar reconhecimento e importância às apresentações de 1922, em outras tem-se a impressão de que teria ocorrido no Municipal uma espécie de insurreição bolchevique contra o status quo cultural, liderada pela vanguarda revolucionária nas artes paulistas (Gonçalves, 2012, p. 31).
Mais recentemente, outra obra de jornalista que reúne de forma palatável informações anteriormente dispersas em textos acadêmicos, além de alguma investigação em materiais inéditos, tem autoria de Jason Tércio, intitulada Em busca da alma brasileira: biografia de Mário de Andrade (2019). A despeito do título altissonante, que tende a limitar a trajetória de Mário ao projeto nacional e nacionalista de sua obra, a biografia situa o autor não só na Semana, ao lado dos principais integrantes do Modernismo, como também na história sociopolítica do país.
O primeiro capítulo em especial traz informações inéditas e retificações oportunas. O livro se situa também no contexto da então recente revelação da famosa carta de Mário a Manuel Bandeira, propondo-se tratar do tema-tabu, qual seja, a homossexualidade do autor de Paulicéia desvairada. Segundo matéria da Folha de S. Paulo, o livro “tira esse assunto do caminho de uma vez”, ao revelar H., rapaz com quem Mário teria tido um caso, que uma vez lhe escrevera sugestivamente: “Não se esqueça de mim, Mário, sou infeliz e feliz por te possuir”.
Em realidade, o autor acaba por se alinhar à narrativa um tanto tradicional de testemunhos anteriores, tal qual Moacir Werneck de Castro, autor de Mário de Andrade: exílio no Rio, reeditado pela segunda vez, em fevereiro passado, pela editora Autêntica (2016; 2022). De acordo com tal tradição, relativiza-se e dilui-se qualquer experiência homossexual, ao situá-la em relação aos diversos supostos relacionamentos que o escritor teria tido com mulheres, como o amor platônico com Maria da Glória Capote Valente. Afirma-se, ao final, que a sexualidade é um aspecto irrelevante na história da literatura e frustra o enfrentamento de questões contemporâneas importantes (Meireles, 2019).
De modo a se antecipar à inflação de mesas e debates sobre o Centenário, a Pinacoteca e o Instituto Moreira Salles organizaram, ao longo de 2021, uma série de seis seminários online com a abordagem de temas emergentes e transversais à Semana – “O que é preciso rever”, “Identidade como problema” e “Culturas urbanas” -, mediante convite à participação de pesquisadores de diferentes áreas e regiões do país, muitos dos quais se destacam nas publicações mais recentes. Entre os participantes, Fred Coelho, cuja apresentação foi publicada na sequência na Revista ARS, da USP (2021), fez um apanhado dos principais momentos em que a relevância do movimento foi questionada. Coelho sugere que as comemorações do Centenário, à luz da problemática contemporânea, podem constituir uma armadilha e, na condição de historiador de formação, alerta para prováveis anacronismos incorridos em questionamentos desse tipo (Coelho, 2021, p. 28).
Outro participante do ciclo de palestras do IMS, Rafael Cardoso, deu ali uma amostra do livro que publicaria, ainda no ano passado, em inglês, e desde fevereiro deste ano disponível também em português. Obra de intenção polêmica, Modernidade em preto e branco (2022) salta por sobre abordagens mais estreitas da Semana e amplia o visor, aquém e além de 1922, para reconstituir aspectos das relações entre modernidade e cultura popular, retraçando as múltiplas correntes da modernização cultural, não apenas em São Paulo, mas também no Rio de Janeiro.
Também sob o propósito de antecipação à enxurrada de notícias midiáticas vinculadas à efeméride convém mencionar a publicação de Estudos brasileiros em 3 tempos: 1822-1922-2022: ensaios sobre o modernismo, obra organizada por Fernando Paixão e Flávia Camargo (2021), conquanto nem todos os textos sejam inéditos, e nem todos discutam propriamente o modernismo ou a Semana. Assim, vale destacar a contribuição de Ana Paula Cavalcanti Simioni, de texto traduzido do francês, em que a socióloga divide o processo de canonização do modernismo no Brasil em três períodos: construção (1917-1940), institucionalização (1940-1980) e revisão (1980-).
Outro especialista do modernismo, Marcos Antônio de Moraes, vinculado à equipe do pujante projeto de epistolografia marioandradina do IEB, contribui com “Pauliceia desvairada (1922) e o memorialismo de Mário de Andrade”, em que se propõe a “lançar luz sobre o processo de criação e a história editorial de uma das obras centrais do modernismo brasileiro” (Moraes, 2021, p. 176). Por seu turno, a professora emérita da USP Walnice Nogueira Galvão discute obras de Mário e Oswald, em particular a rapsódia Macunaíma e o Manifesto do Antropófago, com o sugestionamento de sua condição de duas réplicas à tese de Paulo Prado, acerca da tristeza formativa, ou mal de origem, e da inviabilidade moral legada durante o processo de colonização, tal como defendida em Retrato do Brasil, sendo as três publicações lançadas em outro icônico ano modernista: 1928.
O estado da arte do que emergiu no mercado editorial brasileiro, absorvendo, por sua vez, o aggiornamento da Academia na comemoração dos cem anos da Semana de 22, não pode omitir o lançamento do monumental Modernismos: 1922-2022, em fevereiro deste ano, de ambições enciclopédicas e com encontros virtuais a coincidir com as datas do evento, quando os encartes de jornais cariocas e paulistanos trouxeram o evento estampado em suas capas. Parte de um projeto portentoso da editora Companhia das Letras, a obra parece ter sido programada para marcar o início das comemorações, junto à pauta jornalística prevista no eixo Rio-São Paulo. Com quase três dezenas de ensaios de acadêmicos de renome, a exemplo de José Miguel Wisnik e Lilia Schwartz, assim como estudiosos mais jovens ou menos conhecidos, o volume propõe contemplar os debates contemporâneos, como o pensamento feminista ou a representatividade negra na produção artística do período, para lograr atualizar a agenda da Semana de 22 e seus desdobramentos na realidade do século XXI.
Em âmbito mais estrito dos periódicos científicos, mais recentemente, Ivan Marques, o já citado autor do estudo sobre revistas modernistas, organizou um número especial da revista Santa Barbara Portuguese Studies (n. 9). Nela, aporta-se um elenco internacional de contribuintes, o que atesta os reflexos fora do país da comemoração entre brasilianistas e latino-americanistas: dos EUA participam Paulo Moreira e Luís Madureira, César Braga-Pinto e María Pape; de Portugal, Clara Rowland; da Itália, Vera Lúcia de Oliveira; da Argentina, Bruno Zeni e Luz Horne. O Brasil também comparece, com Marcos Napolitano e Leandro Pasini, Patrícia Annete e Gabriel Provinzano.
Os temas dos artigos são variados, com destaque para a antropofagia e suas apropriações posteriores, para o legado modernista e sua recepção, para as obras de Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade, bem como Manuel Bandeira, Raul Bopp e Patrícia Galvão. Coube a Ivan Marques ainda organizar o dossiê Diversos 22, para a Revista do Centro de Pesquisa e Formação, a reunir as apresentações realizadas durante um seminário do SESC São Paulo, em 2020. Esta instituição, a propósito, abraçou de corpo e alma a efeméride, não apenas com palestras e eventos, mas também por meio de bens culturais que articulam a produção literária da Semana de 22 a repertórios musicais hauridos da sua programação original, mediante leituras atualizadas por intérpretes do porte de Monica Salmaso.
Não cabe descrever um a um os dossiês que os periódicos científicos consagraram em 2022 para os cem anos da Semana de 1922 e para a análise da história do modernismo brasileiro, juntamente com este da RBH, mas pode-se ao menos mencionar a existência de alguns deles para uma visada de conjunto: 1. A revista de estudos literários da Universidade Estadual de Londrina (UEL) Terra Roxa e Outras Terras, com chamada para “Outras modernidades: releituras literárias (1922-2022)”; 2. A Revista Manuscrítica, da Universidade de São Paulo (USP), com o dossiê “O instante e o processo: Semana de Arte Moderna pelo olhar da Crítica Genética”; 3. A Revista Dissonância, da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com a chamada “Modernismos brasileiros e teoria crítica”; 4. Revista Projeto História, da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), com o dossiê “Outros 1922: modernismos e modernidades no Brasil”.
Quanto aos livros, as Ciências Sociais comparecem no rol de publicações da efeméride, com Lira mensageira: Drummond e o grupo modernista mineiro, do sociólogo Sérgio Miceli, professor titular da USP. Estudioso do assunto desde os idos dos anos 1970, quando lançou a acerba tese Intelectuais e classes dirigentes no Brasil (1920-1945), o autor tornou-se conhecido na sociologia da cultura por seu approach bourdieusiano e por seu conceito matricial de cooptação, abordagem que causa espécie nos estudos literários tradicionais, porquanto seu enquadramento sociológico acaba por redimensionar a imagem decantada dos próceres do modernismo, o que incide sobre os vultos Mário e Oswald, mas também sobre autores menos prestigiados pelo cânon universitário, como os verde-amarelistas (Campos, 2007; Lafetá, 2000).
Ainda que não ligado à linhagem da proposta de Miceli, mas em contrapartida sob orientação de Roberto Schwartz, tal sorte de criticismo de viés sociologizante é encorpado em meados da década 1990, com a defesa da tese de doutorado de Carlos Eduardo Berriel, no programa de pós-graduação em teoria e história literária da Unicamp, intitulado Tietê, Tejo e Sena: a obra de Paulo Prado. A tese é publicada em livro e ganharia mais de uma edição (2000, 2013), com o mecenas da Semana a tornar-se uma espécie de pivô, ou de bode expiatório, da articulação entre escritores e aristocratas cafeeiros, entre artistas e o poder político paulistano dos anos 1920, o que viabilizou a realização do evento, mas, em certa medida, também maculou a autenticidade da arte então preconizada e a imagem de ruptura que se tencionava então construir.
De volta à perspectiva sociológica de Miceli, sua história do modernismo teria continuidade nos anos 1990 e 2000, quando foca nas artes plásticas modernistas, por meio de dois livros seminais: Imagens negociadas – retratos da elite brasileira (1920-1940) e Nacional estrangeiro – história social e cultural do modernismo artístico em São Paulo. No último decênio, a abordagem se dilata para o esquadro comparativo, com o cotejo de gerações modernistas na América Latina, em especial o Brasil vis-à-vis a Argentina. A publicação de Vanguardas em retrocesso: ensaios de história social e cultural do modernismo latino-americano resulta de anos de pesquisa com bibliotecas e arquivos no Brasil, nos Estados Unidos e na Argentina.
Com provável intenção de se jungir às publicações do Centenário, o painel miceliano é atualizado em 2022, por meio do tratamento regionalizado da história do modernismo no Brasil, ao focar no caso mineiro dos literatos do Café Estrela. Replicando sua metodologia de análise da posição do intelectual na arena concorrencial e conflitiva da cultura, bem como no modo diferenciado de leitura do texto literário em tensão com os jogos de força externo-contextuais, o estudo analítico dessa geração confere especial atenção à trajetória político-poética de Carlos Drummond de Andrade e, na mesma medida, acentua seus nexos com a figura de Gustavo Capanema, seu amigo de infância e ministro de Getúlio Vargas entre 1934 e 1945, que o levaria ao epicentro do poder na capital da República, quando o poeta se torna seu chefe de gabinete.
A contrapelo do argumento segundo o qual Drummond era um burocrata supostamente desinteressado da política, o autor inscreve o poeta na complexa teia de interesses palacianos do poder varguista, apontando para as condições-contradições de sua atuação e para os benefícios pessoais-profissionais auferidos em tal inscrição, com vistas a uma melhor compreensão da lógica de seus posicionamentos no interior do Ministério da Educação e Saúde (MES) em mais de uma década de serviços públicos prestados.
Enfim, assim como no Cinquentenário, ao se comemorar os cem anos da Semana, observa-se que algum clima, por assim dizer, de “Fla-Flu”, ainda permanece, tanto nas publicações acadêmicas como na grande imprensa. Na maioria das vezes vinda de escritores cariocas, as críticas ao “paulistocentrismo” na historiografia da Semana, sutis e sofisticadas no caso das intervenções de Rafael Cardoso, ou de intenções provocadoras como nos artigos e entrevistas de Ruy Castro publicadas na Folha de S. Paulo e na revista Isto é entre dezembro de 2021 e fevereiro de 2022, foram revidadas com veemência por paulistas como José Miguel Wisnik (Wisnik, 2022, Ilustrada, p. 1) e Sérgio Miceli, em entrevista ao podcast da Ilustríssima cujo teor está explícito no título “Modernismo fora de São Paulo é invenção” (5 fev. 2022).
Esse debate inicial, com pitadas acaloradas, talvez demonstre que, apesar de tudo, o ambiente intelectual não superou de todo o provincianismo que os participantes da Semana visavam combater e ultrapassar. Ao mesmo tempo, a importância do movimento foi exponenciada e atingiu tal dimensão que, mesmo com as vogas, aliás salutares, de reavaliação, retificação e relativização, sua presença na vida cultural, não só na Academia, mas também na opinião pública, não poderá ser facilmente destronada, como mostram as exposições, as mesas e os lançamentos que têm inundado o mercado editorial por ocasião do presente Centenário.
Por fim, se é verdade que comemorações sempre correm o risco de incorrer em exclusões, também é igualmente verdadeiro que as efemérides têm possibilitado redefinições e recontextualizações dos conceitos de modernização, modernidade e modernismo. Em tais conceituações, as questões interseccionais de classe, gênero, raça, sexualidade, região e periodização são levadas em conta, além da ampliação do debate para a música, a arquitetura, a moda, a cultura popular, o futebol, entre outras esferas inusitadas de abrangência. Para citar apenas um exemplo, veja-se a programação da FLUP (Festa Literárias das Periferias) em torno dos “100 Anos de Modernismo Negro”.
ESTE NÚMERO
É nesse contexto de heterogeneidades e diversificação que o presente número da Revista Brasileira de História pretende se inserir. Estabelecido o contraponto entre os debates ocorridos em 1972 (cinquentenário) e em 2022 (centenário), encetamos, a seguir, a multiplicidade contributiva deste número especial da RBH, que nos honramos de ter organizado. O dossiê ora oferecido à comunidade de historiadores, cientistas sociais e estudiosos das letras e humanidades em geral tenciona apresentar a diversidade de temas e de perspectivas das Ciências Sociais e da História, em suas conexões com a discussão artístico-literária mais ampla. As propostas abrangem desde uma história social das artes, ou bem de uma sociologia da cultura e da literatura, até os chamados estudos culturais e estudos literários, que acumulam os avanços coletivos nas áreas e os paradigmas em voga na atual conjuntura.
O resultado aqui alcançado derivou de um processo padrão dos periódicos científicos, qual seja: a chamada pública de artigos, seguida da abertura para submissões. A este sucedeu-se o escrutínio de avaliação do mérito acadêmico dos manuscritos, feito por pareceristas, cujo trabalho voluntário é decisivo para a aferição da qualidade e para a triagem dos artigos ao fim e ao cabo publicados. A propósito, agradecemos às dezenas de autores dos pareceres pela preciosa e inestimável colaboração, agradecimento extensível à editoria e à equipe de produção da RBH/Anpuh – especial ao trabalho diuturno de apoio e ao sempre atencioso acompanhamento de Andréa Slemian e Marcos Vinícius. Recolhem-se e dispõem-se, pois, no presente dossiê, artigos originários de pesquisas desenvolvidas, ou em desenvolvimento, no âmbito da pós-graduação, no Brasil e alhures, que apresentaremos de forma breve e pontual doravante.
O número é composto por um total de oito artigos. Visto em conjunto, os dois primeiros textos revisitam aspectos específicos do ícone Semana de Arte Moderna, com a volta ao palco do Theatro Municipal paulistano e ao ano emblemático de 1922. Postula-se a inscrição do modernismo e peregrina-se por suas rotas alternativas dentro do eixo Rio-São Paulo, quer seja em uma abordagem que tematiza a cultura popular, quer seja em uma análise inédita das articulações diacrônicas entre raça, música e política no bojo modernista. O terceiro artigo, por seu turno, também articulado aos dois primeiros, coteja a propalada alegria oswaldiana que emerge na esteira da Semana de 1922 com a sua reapropriação pelas gerações de artistas atuantes no contexto ditatorial dos idos de 1970, notadamente a chamada poesia marginal.
Já os cinco artigos seguintes enfeixam um segundo bloco no escopo do dossiê. Eles exploram os alcances regionais/estaduais que as derivadas ternárias do moderno – modernidade, modernização e modernismo – adquiriram com base nas experiências locais. Tal alcance se espraia de Curitiba a João Pessoa, de Cataguases a Natal, e desta capital nordestina aos lindes amazônicos. A ênfase nessas facetas das regiões e dos estados da federação – especialmente importantes na Primeira República – para apreciação dos movimentos modernistas em Minas Gerais, no Nordeste e na Amazônia não significa aqui um olhar confinado.
Ao contrário, o artigo do historiador Giuseppe Oliveira (Dr. História/USP e Prof. UFRPE), por exemplo, tematiza a correspondência inter-regional e internacional de Luís da Câmara Cascudo. Graças ao uso da epistolografia, o autor mapeia a interlocução do folclorista potiguar com escritores argentinos, tanto na divulgação do modernismo nacional no país vizinho quanto no acolhimento da produção literária portenha em revistas brasileiras. Desse modo, é lícito dizer que os textos recolocam a “dialética do localismo e do cosmopolitismo”, consagrada por Antônio Candido, em sua díade pendular, que aqui se dilata, ao se manifestar em paragens e grupos não vislumbrados pelo crítico mineiro-paulista à época de sua formulação.
Ainda no cômputo geral, se nos atemos às temáticas costuradas pelo dossiê, observamos a prevalência da literatura no quadro geral das artes. Ela aparece sob a forma múltipla da prosopografia de literatos, do instável ciclo de nascimento e morte de revistas literárias, do rol de manifestos poéticos mais ou menos badalados – há inclusive um provocativo “manifesto para não ser lido” -, dos autores esquecidos, das obras redescobertas, das redes literárias, dos laços de sociabilidade intelectual, dos respectivos campos de força, para ficar com as abordagens mais recorrentes.
O predomínio da cultura letrada e do registro impresso dão-se em comparação às demais linguagens e expressões artísticas, ou ao “baile das quatro artes”, para empregar termo de Mário de Andrade em referência à pintura, à música, à escultura e à poesia. De fato, das contribuições recebidas reconhece-se a relativa pouca atenção dada às vanguardas nas artes plásticas e nas artes visuais, cuja importância no legado da Semana só vem se acentuando com o tempo, a exemplo do protagonismo adquirido pelas pintoras mulheres na construção da memória modernista.
No tocante às questões de gênero, tão bem enfocadas pela socióloga supracitada, Ana Paula Simioni, se pouco espaço se encontra aqui para as canônicas Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, tampouco para a mineira Zina Aita, partícipe pouco aventada da Semana, em contrapartida o dossiê dá relevo, no artigo do historiador Heraldo Galvão (Dr. História/UFPA e Prof. UNIFESSPA), a uma personagem extraordinária. Trata-se da cronista paraense Eneida de Moraes, perfilada no texto de fechamento do presente número, na condição inopinada de uma nortista a fazer as vezes de “miss Antropofagia”.
Isso permite passar a fazer um corpo a corpo com os textos, começando pelo oitavo e último. A trajetória e a produção da escritora paraense são recuperadas no artigo em meio a um contexto de transações dos modernistas paulistanos com os círculos literários de Belém, em fins dos anos 1920, quando da criação da Revista de Antropofagia, em uma espécie de seção Pará, e do “Club Antropofagista”. A circulação de textos caminha pari passu com o deslocamento dos autores, desde a conhecida viagem de Mário de Andrade à região Norte até a estada do poeta gaúcho vinculado à antropofagia, Raul Bopp, passando por personagens cariocas inauditos, contemporâneos que estiveram ao largo do modernismo. Esse é o caso de Paschoal Carlos Magno, em sua missão de edificar a Casa do Estudante do Brasil na capital da República, a divulgar o projeto e a angariar fundos para tal junto a literatos, artistas e instituições nortistas.
Quanto à Eneida, mencionam-se crônicas sobre política e feminismo, flanco praticamente inexplorado de seus escritos. Heraldo Galvão arrola também os livros da autora que versam sobre a identidade amazônica e a valorização das tradições indígenas, a exemplo da crença nos Matuyús. Este consiste em bichos de pegadas às avessas, a que poderíamos considerar uma espécie de Abaporu da Amazônia ou, de acordo com o autor, uma Pindorama oswaldiana, instalada no “repositório mítico da nação”. Tais aspectos aproximam-na diretamente do modernismo antropofágico, de que se torna defensora nos jornais da capital do Pará, junto a outros colegas, como o poeta Abguar Bastos.
A temática antropofágica engata-se a outro artigo do dossiê, o terceiro na ordem de aparição, de autoria de Beatriz de Moraes Vieira (Dra. História/UFF e Profa. UERJ). Enquanto a abordagem de Heraldo Galvão é sincrônica, a de Beatriz constitui-se, por assim dizer, na chave da diacronia. O primeiro texto dispõe a antropofagia originalmente nucleada na hegemônica São Paulo do final dos anos 1920 vis-à-vis à relativamente periférica capital paraense do mesmo período, ao passo que a segunda autora trata da triste “prova dos nove” de Oswald, num cotejo entre as décadas de 1920 e de 1970.
Como aquilatar historicamente um sentimento? No caso em questão, o sentimento da alegria? É possível prescrutá-lo de modo coletivo? E com que instrumentos o historiador “das mentalidades” – aspas nossas -, pode fazê-lo, sem incorrer em subjetivismos ou na generalização de gostos próprios das frações de classe? Pode-se proceder a tal empreitada descurando o seu par antitético, isto é, a tristeza? Eis algumas das perguntas suscitadas pela leitura do ensaio “Tristes alegrias”, oxímoro que ressoa tão plausível quanto a vivência do tempo presente nos permite aquiescer, ao se voltar para a compreensão das agitações culturais e dos manifestos poéticos dos dois períodos comparados.
De todo modo, volvendo a um ponto anterior, percebido em uma apreensão mais geral, a supremacia da escrita sobre o campo visual e sonoro não impede a atenção do dossiê a componentes importantes da música na produção da Semana, esfera pouco considerada até os anos de 1970, quando José Miguel Wisnik publica sua tese, orientada por A. Cândido – O coro dos contrários: a música em torno da Semana de 1922 (1983). Do mesmo modo, são naqueles idos que os estudos marioandradinos de musicologia, de música popular e de danças dramáticas adquirem projeção na Universidade de São Paulo, em particular no recém-criado IEB/USP, e suscitam uma série de publicações póstumas no aprofundamento da crítica genética, epistolográfica, auditiva e mesmo imagética do autor de Ensaio sobre a música brasileira (1928).
Nesse número, o tema da música é contemplado de modo magistral pela latino-americanista Sarah J. Townsend (PhD. New York University e Profa. Pennsylvania University), com um instigante artigo que articula a esfera musical às questões políticas e às raciais, em diapasão diacrônico que dialoga com a publicação recente de Rafael Cardoso, Modernidade em preto e branco (2022), acima citado. Para tanto, o texto parte do decantado e provocativo show do rapper Emicida em 2019 – transformado no filme AmarElo -, que avoca, entre outros, o legado afrodescendente de Mário de Andrade, para prospectar as inter-relações entre música, raça e política no Brasil modernista de 1922 e depois…
Sem se limitar a abordar Villa-Lobos e Guiomar Novaes, entre outros músicos e pianistas participantes da Semana, a proposta dessa conexão nada evidente se estende às correntes reacionárias ligadas ao modernismo, passando pelo integralismo da década de 1930 – a AIB do semanista Plínio Salgado organiza uma “noite cultural” no Theatro, com um recital promovido naquele espaço, em 1935, presenciado por Gustavo Barroso e um naipe de milicianos integralistas -, o que se mostra prenhe de sentido à luz das atuais “guerras culturais” de narrativa e à conjuntura neoconservadora por que atravessa o país dos últimos anos, em pleno século XXI.
O Theatro Municipal, que a partir daquele mesmo ano de 1935 estará sob a administração de Mário de Andrade, secretário do inédito Departamento de Cultura, tão bem analisado por Carlos Augusto Calil em período recente, será locus igualmente de mobilização e de atos da Frente Negra Brasileira, ainda no final dos anos 1930, em meio às comemorações do cinquentenário da Abolição. Donde se conclui que, em sendo campo em disputa, o Theatro mostra-se, no decorrer do artigo, o epicentro de uma arena de conflitos, não apenas o palco e suas dependências, como toda a extensão do seu sítio e arredores, espaço para shows, mas também para manifestações, protestos e grandes aglomerações das massas urbanas do século passado.
Em contraponto à gravitação aurática do referido Theatro, temos a contribuição das brasilianistas Maite Conde (PhD. University of California e Profa. University of Cambridge) e Lisa Shaw (University of Liverpool), artigo publicado em inglês, que abre o presente dossiê. “Towards an alternative 1922” centra-se na estratégia de observar a capital da República e a produção cultural na música, no teatro e na literatura de extração popular daquela cidade e daquele ano, em contraste à vizinha São Paulo, decantada pela Semana de Arte Moderna e pela sua suposta proclamação da “nossa” independência artística. Se esse mote serviu de leitmotiv para as imprecações polemistas de Ruy Castro contra a hegemonia paulistana, o presente artigo procura fazê-lo de modo bem mais elegante e substantivo, recorrendo ao conceito de “modernismo vernacular”, tomado de empréstimo a Miriam Hansen, e a um referencial estadunidense, bem como a um repertório latino-americanista capaz de observar o caso nacional.
A reivindicação da heterogeneidade artístico-cultural do modernismo brasileiro ressalta não apenas a contraposição à cultura europeia dominante e à variável histórica do passado que se almeja ultrapassar, como acentua a dimensão geográfica, ou seja, a variável espacial constitutiva da diversidade e da diferença interna nos quadros da nação. Assim, as autoras invocam tanto um antes e um depois de 1922 quanto um aquém e um além de São Paulo para enfatizar tal multiplicidade. Propõe-se, pois, passar do uno nacional ao múltiplo territorial, no afã por encontrar as tais “modernidades alternativas”.
A guinada do olhar ao Rio de Janeiro passa, necessariamente, de início pelo exame das comemorações do Centenário da Independência de 1922, no contexto das exposições internacionais e do caráter especular e espetacular das afirmações do nacionalismo moderno. Tal projeto encontra na arquitetura, em particular no estilo neocolonial, um meio para materializar o discurso nacionalista-modernista carioca de então, nesse acerto de contas com a herança portuguesa e nesse aceno ao concerto das nações modernas. Em correspondência com tal tradição, a busca por outra herança, a afro-brasileira, também era intentada na capital da República, sendo o grupo musical Os oito batutas um exemplo vivo em 1922 do que almejavam encontrar no terreno da música popular.
Entre janeiro e agosto daquele ano, o grupo composto por Pixinguinha e Donga, sob os auspícios do mecenas Arnaldo Guinle, circula em turnê pela Europa e projeta sua música instrumental, o choro, em âmbito internacional. Tal projeção fora do país tem efeitos sobre o próprio grupo e se mostra perceptível em seu retorno, após oito meses de temporada europeia. O regresso acentua uma imagem transnacional e cosmopolita ao grupo – a exemplo do jazz afro-americano -, mas também enraíza o mesmo no folclore e na cultura popular brasileira de cariz negra, pontuada por maxixe e samba. A recepção do grupo e as mudanças produzidas no imaginário do samba repercutem nesse retorno, com o prestígio alcançado repercutindo na presença dos Oito batutas na exposição comemorativa do Centenário da Independência, ainda em curso no segundo semestre de 1922, com seu ápice no mês de setembro.
Junto a esse caso, o artigo também explora o gênero do teatro de revista na capital da República, em meio a uma espécie de idade do ouro no teatro popular carioca. Em sentido inverso à ida dos 8 Batutas à França, as autoras abordam a vinda da companhia teatral francesa Ba-ta-clan ao Rio de Janeiro no ano de 1922. Esta é responsável por introduzir mudanças em suas práticas cênicas, com impacto das performances de suas atrizes nessa passagem sobre os palcos da cidade. A presença do grupo francês, com suas encenações eivadas de apelo erótico, em que o tema da nudez e do sexo vêm à ribalta, também contribui para discutir o papel da mulher no teatro, questão que o feminismo na década de 1920 aguçará e tensionará em diferentes esferas da sociedade.
Por fim, o texto examina a produção literária acontecida naquele ano, deslocando o olhar da “alta” à “baixa” literatura. Fica-se novamente com o foco nas mulheres, em particular a narrativa do romance Enervadas, da escritora Maria Cecília Vasconcelos. Por meio da protagonista principal, Lúcia, o livro revisa o modelo francês oitocentista de romance e expõe o problema da desigualdade dos gêneros ao Brasil. Com isso, avança em tal problemática contemporânea no país e destaca as significativas transformações da mulher brasileira processadas no espaço público durante esse decênio. De modo perspicaz, o artigo intercruza a dimensão literária da personagem feminina com o imaginário das revistas ilustradas que caricaturizam a mulher, a exemplo da jovem Melindrosa, perfilada por J. Carlos.
Resumido o argumento do texto de Maite Conde e Lisa Shaw, voltemos ao mote do “baile das quatro artes”. Em que pese a mencionada hegemonia da literatura face às demais, assiste-se aqui também à incorporação do cinema, fora do horizonte dos semanistas de 1922, conforme acentuam em outra oportunidade os percucientes estudos dos professores Eduardo Morettin (ECA/ USP) e Denílson Lopes (ECO/UFRJ), mas que figura aqui graças ao reavivamento do espaço de Cataguases (MG) nos quadros do modernismo. Longe da mera dimensão provinciana, como se poderia supor à primeira vista, a cidade mineira projeta-se nos anos 1920 com o cineasta Humberto Mauro, objeto do artigo do sociólogo Inácio Cruz (Dr. Ciências Sociais/UFJF e Prof. UEMG), tema que tem suscitado o interesse também do escritor Luiz Rufatto, natural da cidade. Não apenas o cinema humbertiano desponta naquele cenário do interior de Minas, mas igualmente as revistas modernistas locais, como Verde, alvo do livro de Ruffato (2022), e um conjunto de prédios públicos construídos na cidade por Oscar Niemayer.
Nesse arrazoado panorâmico, que se alterna à apresentação de cada texto, cabe finalmente aludir aos cativantes artigos quatro e sete do dossiê em tela. O quarto artigo é de autoria de Fabricio Souza (Dr. História/USP e Prof. UEA) e incursiona por uma revista curitibana do segundo lustro dos anos 1940, intitulada Joaquim. Por intermédio desse periódico, desponta o jovem escritor Dalton Trevisan, proprietário e principal divulgador da revista fora das fronteiras paranaenses, cujo sucesso se ampliaria nos decênios subsequentes. O texto, não obstante, remonta à figura menos conhecida do educador Erasmo Pilotto, prócer do periódico “mais ou menos irreverente”, redator do manifesto de lançamento e cuja autobiografia serve de fonte para o embasamento do artigo.
Qual modernismo teria sido experienciado na capital paranaense? Poder-se-ia chamar a rigor de modernista a revista Joaquim? Como conciliá-la com a busca do simbolismo fin-de-siècle, de Emiliano Pernetta, e sua crítica à modernização? Até que ponto cabe ser vanguardista propondo mais continuidades que rupturas? Que manifesto era aquele que não se alinhava à primeira vista aos princípios da vanguarda, haja vista seu teor insípido, inodoro e incolor, ou seja, sem os recursos linguístico-visuais próprios e caros às grafias e diagramações do vanguardismo estético?
Ao mencionar texto de jornal, em que Antônio Candido inscreve Joaquim nas “tendências da nova geração”, Fabricio Souza recupera estudiosos do periódico e refaz o estado da arte dos estudos sobre a revista. Seu objetivo é inquirir o significado do tal manifesto em específico, e da literatura em sentido mais lato, que emerge no contexto posterior à Segunda Guerra mundial, na capital sulina. Outrossim, o manifesto convoca uma gama eclética de referências literárias internacionais – sete ao todo -, em arcos que vão de Rainer Maria Rilke a John Dewey, de Maiakovski a André Gide, de Otto Maria Carpeaux a Paul Verlaine. Apenas um brasileiro, e pouco esperável, diga-se de passagem, participa com uma citação no manifesto – o crítico de arte e tradutor erudito Sérgio Milliet – ainda que no corpo do primeiro número pontifiquem os nomes de Oswald de Andrade, de Drummond e de Waldo Frank, entre outros.
O artigo argumenta, pois, que a forma e o conteúdo das passagens aforísticas dos sete autores mobilizados no manifesto são estratégicos para a compreensão do propósito do documento publicado pelo grupo curitibano, tendo em vista a ausência de um programa estético mais coeso e estruturado. Além disso, o texto debruça-se sobre outras publicações de Pilotto, a exemplo de um estudo sobre o conceito de arte em Tolstoi, de uma leitura da obra Emiliano (1945) e de uma conexão de Joaquim com a história da cultura e das tradições paranaenses, posicionando-se, afinal, a meio caminho entre um incipiente modernismo e a decantação do “vigoroso movimento simbolista”.
Last but not least, o artigo de Luiz Burity (Dr. História/UNIRIO e pesquisador-colaborador da Fundação Casa de José Américo) aciona uma revista literária paraibana – a Era Nova – de princípios dos anos 1920 e debruça-se sobre um pivô da literatura daquele estado, José Américo de Almeida. Com o sugestivo título de “A vocação das grandes velocidades”, o texto concentra-se na produção do literato, com foco nas crônicas de sua coluna na revista ilustrada e em uma novela menos conhecida de sua lavra, lançada justamente em 1922. Saliente-se, ademais, que tais publicações dão-se num contexto oligárquico, em que o Brasil é presidido por um paraibano, Epitácio Pessoa, o que mobilizava ainda mais as atenções ao meio político-literário de José Américo e às missões modernizadoras contra a seca na região.
Burity inspira-se em diferentes autores da história social intelectual – Raymond Williams, Carl Schorske e Peter Gay, entre os estrangeiros, Ângela de Castro Gomes e Monica Pimenta Veloso, entre os brasileiros – para reiterar o enraizamento prévio e a singularidade do debate sobre a renovação cultural na capital da Paraíba. Com efeito, contorna o argumento usual de que teria sido apenas a mediação do jornalista pernambucano Joaquim Inojosa junto aos modernistas paulistanos a responsável pela difusão de ideias renovadoras nas principais capitais nordestinas. Surgida em 1921, Era Nova serve de base para tal argumentação, por meio de uma leitura inicial da proposta gráfica do periódico, com o laytout e suas letras dispostas em art nouveau. A consideração da forma é seguida dos temas emergentes, a exemplo da velocidade própria dos inventos mecânicos, em que pontificavam os automóveis no espaço urbano.
A apreciação estético-temática da revista vem de par com os condicionantes da atuação do grupo de jovens jornalistas e artistas. Numa pegada, pode-se dizer, à la Miceli, estes dependiam dos círculos elitistas de poder político-econômico, como mostram sua veiculação editorial pela Imprensa Oficial e as propagandas das figuras proeminentes das posições de mando de então, da presidência da República ao presidente do estado. Junto à caracterização formal e conteudista da revista, o autor concentra-se nos escritos de José Américo de Almeida, cuja coluna tinha destaque na primeira página do periódico, no decurso de dois anos, entre 1921 e 1923. Para tanto, aborda os assuntos mais recorrentes da sua crônica (literatura, história, política, modernização) e remete às referências intelectuais de sua geração – o jovem José Lins do Rego também é colaborador -, que iam de Euclides da Cunha a Rui Barbosa.
O fecho do artigo desagua na ficção Reflexões de uma cabra, saído em 1922 em outro periódico, A Novela, em que Luiz Burity mostra como valores tradicionais da história local, marcada pelo signo do rural e pelo emblema do personagem sertanejo, acomodam-se às questões modernas vivenciadas na capital do estado. O autor postula as crônicas de Almeida em Era Nova como uma espécie de experimento preparatório para o lançamento do enredo ficcional. Em seguida, faz referência à recepção da novela no campo literário local e nacional. Conquanto não explicite o ponto, Burity mostra, assim, os anos de formação de um escritor que despontaria com mais força em fins dos anos 1920, com a floração de A bagaceira (1928) – no mesmo ano, a propósito, observamos nós o advento de Macunaíma, do Manifesto Antropofágico e do melancólico Retrato do Brasil.
Isso posto, esperamos, com esse texto introdutório e com a organização desse dossiê, ter contribuído para que a efeméride modernista seja menos uma data para forçosamente lembrar/esquecer de personagens, ideias e situações e mais um momento propício para pensar e prospectar os novos cenários das artes e da cultura que se avizinham no conturbado e indecifrado Brasil do século XXI.
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Organizadores
Bernardo Buarque de Hollanda – Fundação Getúlio Vargas CPDOC (FGV), Rio de Janeiro. E-mail: bernardo.hollanda@fgv.br https://orcid.org/0000-0001-7781-4684
César Braga-Pinto – Northwestern University, Evanston, Illinois, Estados Unidos. E-mail: c-braga-pinto@northwestern.edu https://orcid.org/0000-0002-3143-8481
Referências desta apresentação
HOLLANDA, Bernardo Buarque de; BRAGA-PINTO César. Uma efeméride “Boa para pensar”? do cinquentenário aos cem anos da Semana de Arte Moderna de 1922. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 42, n. 90, maio/ago. 2022. Acessar publicação original [DR]