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Modernidades negras: a formação racial brasileira (1930-1970) | Antonio Sérgio Alfredo Guimarães

De acordo com Ítalo Calvino, “Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura”.1 O livro Modernidades negras, de Antonio Sérgio Guimarães, já nasceu um clássico. Primeiro, porque o autor tem a capacidade de poucos para sintetizar teorias raciais, de desigualdades, o racismo e agora a modernidade negra no Brasil, temas presentes em vários artigos dele que se tornaram clássicos. Em segundo lugar, dentro do contexto atual, em que a memória está cada vez mais relacionada aos relatos curtos sobre períodos recentes, o autor faz um recuo histórico e recupera um debate importante relacionado à raça, cor, etnia, racialização, identidade nacional, formação racial, cultura negra e racismo, no contexto nacional, e a partir dessa perspectiva é capaz de informar muito rapidamente às novas gerações sobre quando vigorava a crença na democracia racial no país.

A obra é organizada em nove artigos, escritos entre 2003 e 2020, que tratam de um período bastante amplo (1870-1960). Eles refletem sobre a modernidade negra no Brasil e a mudança, articulação e transformação de práticas e discursos políticos a respeito de raça no país, protagonizados por atores negros, ainda que não exclusivamente por estes. De acordo com Guimarães, “A modernidade negra começa com uma revolução estética na música, na literatura e nas artes plásticas, mas também, concomitantemente, na representação de si e na construção de um ideal político” (p. 15). Do ponto de vista metodológico, o livro é “formado por ensaios de sociologia histórica que enfatizam o modo como homens e mulheres brasileiros passaram a se definir enquanto negros” (p. 15).

No primeiro capítulo, “O estudo da raça e sua formação histórica”, o autor faz uma distinção entre as categorias nativas (emic) e as categorias analíticas (etic), destacando que qualquer conceito, nativo ou analítico, “só faz sentido no contexto ou de uma teoria específica ou de um momento histórico específico” (p. 16). Assim, raça tem um sentido associado à biologia e à genética e outro associado à construção social. Além disso, ele apresenta os conceitos de etnia, comunidade, nação, classe social, cultura e cor, sendo que esse último é aquele que o autor considera que tem havido muito esforço para transformá-lo de um conceito nativo em um analítico.

Sumarizando, usamos raça como conceito analítico para demonstrar a existência das noções raciais que dão sentido à operação da classificação por cor, usamos ‘raça’ como conceito nativo quando queremos evidenciar o modo como os próprios sujeitos a utilizam abertamente, seja para justificar a opressão de outros, seja para denunciar a sua própria opressão (p. 44).

Luíza Bairros indagava sobre até quando o conceito de raça seria utilizado entre aspas, pois essa foi a forma que encontramos para distinguir entre o conceito de raça da biologia do daquele de uma construção social. Durante a minha formação, fizemos muito uso de tal estratégia até que, finalmente, optamos por utilizar raça/ cor para destacar como a raça no Brasil tem um sentido social, que é baseada no fenótipo, na aparência, e é um critério de organização da vida social. Muitas mudanças ocorreram nos últimos anos. Destaco aqui o ano de 2002, ocasião da implementação da política de cotas, devido ao aumento do número de pesquisas realizadas por jovens negros, o que acabou por retirar tanto as aspas do termo raça quanto por utilizar raça/ cor como sinônimos, mantendo raça ao mesmo tempo como categoria nativa e analítica.

Historicamente, a sociedade brasileira considera o critério não biológico da raça, visto que ela é discursivamente construída, não polarizada, pois, afinal de contas, existia e ainda existe, em menor medida, uma escala classificatória da cor no Brasil, hoje chamada de “colorismo”, cujos polos extremos são brancos e negros. O conceito de raça no país há muito foi constituído para destacar a sua dimensão discursiva, uma construção social.2 De modo muito breve, poderíamos dizer que, historicamente, a formulação do conceito de raça no Brasil visava exatamente responder a um processo de “mistura” racial, de miscigenação entre negros, indígenas e brancos, o que dificultava que o país visse a si mesmo como moderno e civilizado no século XIX, período em que vigorava a crença dos efeitos maléficos da mistura racial. Nesse sentido, é evidente o discurso normativo do Estado, que constrói sujeitos supostamente não racializados – os mestiços e mulatos brasileiros –, ainda que a noção de mestiçagem seja, ela mesma, oriunda da crença na existência de pelo menos duas raças.

No segundo capítulo, intitulado “A liberdade é negra; a igualdade, branca e a fraternidade mestiça”, o autor busca entender

as raízes de uma identidade nacional que tem seu núcleo na mistura inter-racial ou na recriação de identidades pós-africanas, opondo-se ao modo como o colonizador pensou o Brasil (p. 45).

Defende a tese de que

a formação nacional acabou por reduzir o ideal de liberdade ao fim do cativeiro, circunscreveu a igualdade aos limites de classes sociais, e fez da fraternidade entre as raças o solo único da solidariedade social (p. 46).

Guimarães considera que o abolicionismo e o republicanismo (de 1870 à crise da Primeira República, em 1930) disputaram o sentido atribuído aos conceitos de “liberdade, igualdade racial e cultura mestiça que marcarão a modernidade e a contemporaneidade brasileira” (p. 46). Na busca por explicações sobre os motivos da adesão/ manutenção do apoio de intelectuais negro-mestiços à Monarquia, o autor considera os argumentos dos historiadores sobre as dificuldades deles em se manterem próximos ao poder durante a Monarquia. Guimarães estabelece uma distinção entre a República, enquanto regime político, dos governos republicanos reais, considerando que para a massa de homens e mulheres recém-libertos havia o receio e, talvez, o perigo de serem reescravizados. Por fim, ele considera neste capítulo que se consolida, nos primeiros anos da República,

o ideal de liberdade, enquanto autonomia pessoal, e o ideal de igualdade não enquanto simples estatuto legal, mas de pertença a um grupo nacional no qual a cor não restringia direitos, tratamento e oportunidades. Ou seja, igualdade e fraternidade estavam fundidos numa só aspiração (p. 65).

“A Modernidade negra” é o título do terceiro capítulo. Nele, o autor apresenta diversos significados para essa expressão/experiência/conceito. De acordo com sua perspectiva, a modernidade é fruto de um sentimento generalizado de decadência da civilização clássica, motivado pelos horrores das guerras ocorridas na Europa em 1914-18 e 1939-45. De outro modo, a modernidade negra é “o processo de inclusão cultural e simbólica dos negros à sociedade ocidental” (p. 69). Nas Américas, a modernidade negra se inicia com a abolição da escravidão no século XIX e a incorporação como cidadãos de pessoas negras à cultura ocidental, através de transformações das representações sobre os negros pelos europeus nas artes e pela representação positiva dos negros sobre si mesmos.

O autor destaca os contextos históricos e sociais em que emergiram a modernidade negra na França – simbolizada pela aceitação de Josephine Baker, em Paris, em 1925, que “não significou o fim da visão racista do negro como animal, mas significou que tal animal, longe de ser ameaçador, passou a ser visto como rítmico, musical e divertido” (p. 76) – e nos Estados Unidos, e recusa a ideia de uma modernidade negra no Brasil no mesmo período. Embora nos anos de 1920 se deu, com o Modernismo, a incorporação de valores culturais negros por artistas brancos, uma modernidade negra só emergiria a partir de 1944, com o Teatro Experimental do Negro (TEN), sendo desenvolvida posteriormente. Pois o autor considera que tais manifestações respondem a contextos sociais e históricos específicos, que tornam tais expressões possíveis, argumento anunciado já no primeiro capítulo (p. 16).

Do mesmo modo, Guimarães destaca como a busca pela assimilação era a tônica dos movimentos sociais negros do período. Tendência que vai se alterando, principalmente na análise do contexto político em que emergem os discursos e as transformações deles em Abdias do Nascimento e Guerreiro Ramos, por exemplo, que serão analisados nos capítulos 4, 5 e 6: “A democracia racial negra dos anos 1940”, “Resistência, revolta, quilombo” e “Os negros em busca de cidadania”.

Examinados conjuntamente, esses três capítulos cobrem um longo período e expressam as mudanças nas pautas dos movimentos negros, que se articulam inicialmente em busca da assimilação e da visibilização da raça, no entendimento da configuração das desigualdades, através de uma linguagem que destacava mais a cor e a mestiçagem, até as considerações posteriores de Abdias do Nascimento, que ressaltam a violência sexual que deu origem aos mestiços que povoaram a nação, a violência do Estado expressa no conceito de genocídio, e a resistência negra através do que ele denominou Quilombismo, “elemento basilar da identidade afro-brasileira, que é a ideia de que o Brasil foi construído pelo trabalho dos africanos, negros e mulatos” (p. 148). Guimarães destaca as transformações nos discursos de Abdias, principalmente após a leitura de Albert Camus, O homem revoltado. Em menor medida, aborda também a contribuição de Guerreiro Ramos.

Inicialmente, a articulação do movimento negro oscilava entre o reconhecimento da exclusão e da ausência de cidadania para as pessoas negras, sendo influenciado por um discurso que negava o racismo, optando pela noção de preconceito de cor. Na maioria das vezes, a explicação girava em torno das desigualdades de classe e da coincidência entre cor/ raça e classe, o que aparece muito bem sintetizado na expressão utilizada por Thales de Azevedo (1955), de que “a cor é um simples acidente”.3 Analisando uma coluna do Diário Trabalhista, o autor destaca um trecho que diz que no Brasil

não existe um problema negro, mas um problema nacional de pobreza e de falta de educação, que atinge brancos e negros igualmente. Aqui, o preto seria ainda mais preconceituoso do que o branco (p. 100).

Guimarães considera que a Frente Negra Brasileira (FNB) é o primeiro movimento político negro de caráter nacional. Surgido em São Paulo, de certo modo nela prevalecia a ênfase na origem mestiça do brasileiro, a recusa aos costumes africanos e a negação do preconceito racial, ainda que reconhecesse o preconceito de cor.

No capítulo 7 o autor apresenta as razões para a baixa adesão às contribuições críticas de Frantz Fanon, seja pela esquerda brasileira ou mesmo pelo movimento negro à época.4 Ele informa que Fanon será recuperado pelo movimento negro dos anos de 1970, inicialmente através da leitura do livro Os condenados da terra, publicado originalmente em 1961, e depois do livro Pele negra, máscaras brancas, de 1952, somente traduzido para o português em 1980. Mas sobre a recepção de Fanon, é preciso destacar o entusiasmo com que os jovens leem e citam Fanon hoje em seus trabalhos acadêmicos e em seus discursos políticos. Nesse sentido, é relevante a contribuição da teoria decolonial no Brasil e da recuperação de Frantz Fanon feita por tal perspectiva teórica, sem retirar em hipótese alguma a contribuição do movimento negro para a popularidade do pensador. O fato é que ele é atualmente bibliografia obrigatória na maioria dos estudos desta área, algo que Guimarães não aborda.

No capítulo 8, intitulado “Ação afirmativa, um balão de ensaio em 1968”, Antonio Sérgio trata de algumas denúncias nos jornais de discriminação racial contra pessoas negras, principalmente norte-americanas, em hotéis do Rio de Janeiro e de São Paulo da época. Nesse caso, a “Lei 1.390, sancionada por Getúlio Vargas no dia 3 de julho de 1951, conhecida como Lei Afonso Arinos, parece ter sido a resposta a esses episódios” (p. 201). O autor também aborda os primórdios, nos anos de 1960, de uma iniciativa de adoção das ações afirmativas para fazer frente à discriminação no mercado de trabalho.

Segundo técnicos do ministério do trabalho […] uma lei semelhante à dos 2/3 poderia solucionar o problema […]. Essa lei poderia estabelecer, por exemplo, que certas empresas seriam obrigadas a manter em seus quadros 20% de empregados de cor, algumas 15% e outras 10%, conforme o ramo de suas atividades e respectivo percentual da demanda (pp. 196-197).5

Destaca, ainda, que no dia seguinte, 10 de novembro, o Jornal do Brasil respondeu negativamente à proposta, em uma coluna intitulada “Democracia racial”; em outro jornal, a colunista Raquel de Queiroz também atacou a iniciativa. Lembramos que isso aconteceu em plena ditadura militar.

Como dito anteriormente, o livro trata de um período bastante amplo. Contudo, devido às mudanças significativas ocorridas no contexto brasileiro nos últimos anos após a redemocratização do país e, principalmente, com a implementação da política de cotas, os capítulos 7, 8 e 9, este último intitulado “A democracia racial revisitada”, poderiam ser atualizados, estabelecendo uma conexão mais efetiva entre o passado e o presente.

Nesse sentido, é importante considerar a ausência de uma abordagem do protagonismo feminino negro nos últimos anos, ausência reconhecida pelo autor logo no início do texto, quando diz que há “um vazio enorme: o silêncio ensurdecedor sobre o feminismo negro” (p. 17). É reconhecido o esforço feito por alguns pesquisadores e, principalmente, pesquisadoras para destacar a contribuição feminina nos movimentos negros, independentemente da existência de uma agenda política feminista, pois sabemos que para o feminismo negro essa agenda visa beneficiar a comunidade e não apenas as mulheres negras.

No que diz respeito à política de cotas, é de se notar as semelhanças entre os diferentes contextos, pois quando o debate sobre cotas foi incrementado no Brasil, no início do século XXI, também ocorreram muitas manifestações contrárias, inclusive com a publicação de um manifesto (2006) assinado por grandes intelectuais, professores e artistas brasileiros, alguns dos quais posteriormente se arrependeram.6 Mesmo passados muitos anos, a crença na democracia racial ainda predominava no imaginário social, em que pese a explicitação das desigualdades no acesso ao mercado de trabalho e ao ensino universitário.

Já em relação à democracia racial, por exemplo, é preciso ressaltar as mudanças significativas na configuração das identidades. Se a luta do Movimento Negro Unificado (MNU) no final dos anos de 1970 era mostrar o fosso constituído pelas desigualdades raciais e fazer ruir o mito da democracia racial no Brasil, mostrando que em termos de indicadores objetivos de renda e escolaridade o país estava dividido entre negros e brancos, portanto, se opondo às inúmeras categorias de cor utilizadas no cotidiano e mesmo pelo IBGE, as gerações atuais introduziram importantes mudanças fazendo a intersecção das categorias de gênero, raça e sexualidade, que configuram ― ou na linguagem que elas preferem, que “atravessam” as identidades. Em resumo, se a luta dos anos 1970 era para demonstrar que a democracia racial era um mito, vista a manutenção das desigualdades raciais, agora os esforços são direcionados à crítica da democracia representativa para demonstrar que uma verdadeira democracia só se efetiva com a paridade racial e de gênero.


Notas

1 Ítalo Calvino, Por que ler os clássicos, São Paulo: Companhia das letras, 1993, p. 11.

2 Charles Wagley, Races et classes dans le Brésil rural, Paris: Unesco, 1952; Antonio Sérgio Guimarães, Racismo e Anti-racismo no Brasil, 2ª ed., São Paulo: Editora 34, 2005.

3 Thales de Azevedo, As elites de cor: um estudo sobre a ascensão social, São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1955.

4 Angela Figueiredo, “Epistemologia insubmissa negra decolonial”, Revista Tempo e Argumento, v. 12, n. 29 (2020), pp. 1-24, 2020, onde argumento que é necessário colocar em negrito os sobrenomes dos autores negros quando citados pela primeira vez.

5 A legislação getulista obrigava as fábricas a ter dois terços de brasileiros na composição de sua mão de obra, em um contexto de grande oferta da mão de obra imigrante.

6 “A íntegra do manifesto contra as cotas raciais”, Congresso em foco.


Resenhista

Angela Figueiredo – Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. https://orcid.org/0000-0003-3803-0355


Referências desta Resenha

GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Modernidades negras: a formação racial brasileira (1930-1970). São Paulo: Editora 34, 2021. Resenha de: FIGUEIREDO, Angela. Ativismo e modernidade negra. Afro-Ásia, 66, p. 637-644, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

Itamar Freitas

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