Moda e indumentária: entre imagens e artefatos/Acervo/2018

A elaboração de um dossiê permite uma reflexão importante acerca da área, da atuação profissional, da pesquisa. Da chamada para submissões à publicação dos trabalhos aprovados, há uma série de eventos que vão se sobrepondo à ideia inicial do dossiê e dão vida própria ao formato que os leitores têm em mãos. Nesse sentido, a experiência de editar esse material para publicação numa revista como a Acervo foi muito enriquecedora, apresentando também alguns desafios que nos transformaram pessoal e profissionalmente.

Os estudos sobre moda e indumentária no Brasil remontam aos primeiros cinquenta anos do século XX no âmbito da sociologia da cultura e mais tarde, dos estudos culturais; contudo, foi a partir da década de 1990, com a expansão dos cursos superiores na área de moda, que a pesquisa acadêmica, direcionada a estes temas, ganhou fôlego. Soma-se a isso o expressivo número de grupos de pesquisa em universidades de todas as regiões do país, a organização de seminários e a ampla divulgação de trabalhos em periódicos científicos que vêm contribuindo para a difusão do conhecimento e para a formação de novos profissionais. Merece destaque, também, a densidade das teses e dissertações desenvolvidas em diferentes programas de pós-graduação, especialmente nas áreas de história, ciências sociais, comunicação, design e artes visuais.

Examinar a natureza interdisciplinar dessa temática, promovendo uma ampla difusão das fontes atinentes à moda e à indumentária custodiadas por arquivos, museus, bibliotecas e centros de documentação foi o objetivo principal desta edição da Acervo. Com isso, buscamos apresentar a produção acadêmica de diferentes áreas, seus temas e abordagens, desde as experiências no campo da metodologia para a análise de coleções de indumentária até artigos de perfil mais ensaístico. Longe de nós acreditarmos que temos aqui um balanço acabado ou o “estado da arte” da pesquisa em moda, mas consideramos que estes artigos e textos constituem uma pequena porém vigorosa amostra do potencial da roupa e da moda, para nos fazer refletir sobre as diferentes narrativas das nações e dos sujeitos, as relações de poder e as distinções sociais, as questões de gênero, dentre muitas outras.

Para abrir a revista, entrevistamos Regina Root, pesquisadora que se tornou referência internacional por se dedicar aos estudos sobre moda na América Latina. Ela nos conta sobre o progresso de um campo de investigação a partir de sua experiência pessoal quando, há vinte anos, fora a única autora a submeter trabalho para uma chamada da revista Fashion Theory sobre a moda latino-americana. Ter percebido o pouco interesse pelo tema levou-a a aprofundar sua pesquisa até liderar um encontro de estudos de moda latino-americana em um congresso da Latin American Studies Association (Lasa), em 2003, que culminou com a publicação do livro Latin America Fashion Reader (Root, 2005).

O primeiro artigo do dossiê, de autoria de Isabel Alvarado e Verónica Guajardo, traz uma relevante contribuição ao campo da metodologia aplicada aos estudos das coleções de têxteis e de indumentária. Pesquisadoras experientes, atuando no Museu Histórico Nacional do Chile, as autoras apresentam três estudos de caso, inspirados pelo método de análise de estruturas têxteis desenvolvido pelo Centro Internacional de Estudo de Têxteis Antigos. Em todas essas pesquisas elas centraram, particularmente, na materialidade do objeto, na tecnologia da manufatura e no desenho como fonte de conhecimento. É interessante observar como da metodologia aplicada nesses projetos podem emergir novas perspectivas na abordagem de coleções de indumentária, não apenas do museu em questão, mas de diferentes instituições.

Um olhar singular sobre a indumentária vem do trabalho de duas pesquisadoras da Universidade de Évora, Portugal. A antropóloga Ema Ribeiro Pires e sua colaboradora, a doutoranda em história Mariana Galera Soler, discutem a circulação social do indumento a partir de diferentes noções epistemológicas originadas na biologia e na antropologia. As autoras consideram os termos discutidos como categorias científicas de classificação de objetos que estão associadas a seres vivos, não apenas humanos. Está nessa inusitada abordagem, vista a partir de uma ecologia das coisas, a maior contribuição desse artigo. Nele, a dimensão disciplinar dos objetos de vestir, que os separa da categoria dos viventes, é expandida. O indumento veste o corpo das pessoas e das árvores, por exemplo. Nessa excursão pela coincidência de vestir os corpos, as categorias inicialmente separadas da biologia e da antropologia são interligadas, ou, como preferem as autoras, acontece uma intersticialidade (in-betweeness). De modo que, a ordenação e compreensão da vida tornam-se, a partir da observação dos indumentos, algo a se pensar para transcender hábitos coloniais ou colonialistas de uma expressão tanto natural quanto subjetiva.

Os três artigos que se seguem possuem, em comum, o fato de trabalharem numa perspectiva histórica. Também os une o fato de potencializarem fontes que hoje merecem maior atenção por parte dos historiadores da indumentária e da moda. Referimo-nos às imagens, nos artigos de Patricia March e Maria Claudia Bonadio, e ao objeto mesmo, uma ventarola, no estudo apresentado por Maria Cristina Volpi, ao qual se somam os textos publicados numa importante revista brasileira do Oitocentos.

Patricia March discute como a roupa tem sido abordada quando se trata de examinar o cotidiano dos escravos no Rio de Janeiro no século XIX. Seu objetivo é analisar os modos como foram construídas as narrativas acerca da experiência do cativeiro, aos olhos do observador estrangeiro, e como as imagens contribuíram para cimentar uma série de estereótipos acerca dos escravos. A autora, fugindo de qualquer tentação hegemônica ao falar da indumentária e de seus usos por diferentes grupos de escravos, centra seu trabalho na análise da obra Viagem ao Brasil: 1865-1866, de Louis e Elizabeth Agassiz. Cotejando textos e imagens, chama a atenção para o fato de que, embora sejam poucas as referências e descrições sobre hábitos e modos de vestir dos negros – libertos ou cativos –, quando elas aparecem no livro estão permeadas de associações valorativas de atributos físicos e comportamentos. As imagens, especialmente, conforme March, estão a serviço da conformação de identidades generalizantes.

Em seu estudo sobre ventarolas de penas, Maria Cristina Volpi apresenta uma visão renovada acerca dos trânsitos transatlânticos da moda. O artigo traz um recorte bastante específico da pesquisa que é mais ampla (Volpi, 2016): a presença de flores de penas e ventarolas na revista A Estação que circulou no Brasil a partir do Rio de Janeiro, entre 1879 e 1904. A autora fornece o contexto histórico especificamente no que diz respeito à divulgação daqueles objetos pela imprensa de moda em diferentes países, com o objetivo de localizar o Brasil nesse panorama internacional liderado pelas modas europeias. Sua pesquisa demonstra que houve uma inversão em termos de trocas culturais, em que o Brasil originou e exportou para a Europa técnicas tradicionais de produção de ventarolas, um objeto que esteve em moda no século XIX. A partir de um exemplar de ventarola e de sua caixa, itens que pertencem à Coleção Ferreira das Neves no Museu D. João VI da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a autora investigou a circulação desses saberes especializados e de sua influência na produção de objetos similares que hoje podem ser encontrados em museus europeus.

Maria Claudia Bonadio examina a trajetória e o consumo de uma imagem icônica dos anos 1970: a dos pés vestindo meias de lurex e sandálias vermelhas, que, da abertura da novela Dancin’ Days, ganhou as capas dos LPs das suas trilhas sonoras e acabou ressignificada, em diferentes usos. Em sua análise, apoiada em ampla bibliografia sobre visualidade e cultura visual, a autora buscou investigar como e por que esta imagem se tornou representativa de uma época, como conformou uma ideia de “felicidade” num período em que o país vivia sob uma ditadura militar e como foi consumida então e nos anos posteriores. Na trilha de Ulpiano Bezerra de Meneses, podemos afirmar que, em seu artigo, Bonadio nos ajuda a pensar como a fotografia dos pés calçando meias de lurex passou a integrar a nossa iconosfera dos anos de 1970, como se tornou parte daquele conjunto de imagens guia de um grupo social ou de uma sociedade num dado momento e como, ainda hoje, é uma imagem de referência, recorrente, catalisadora e identitária (Meneses, 2005).

A resenha de Rosane Feijão de Toledo Camargo sobre Sociabilidades coloniais: entre o ver e o ser visto, trabalho de Mara Rúbia Sant’Anna (2017), demonstra que é possível lançar um olhar sobre a história do Brasil a partir dos interesses pela moda e pela aparência. O livro é o primeiro volume da coleção “O Brasil por suas aparências” da editora Estação das Letras e Cores e estabelece, conforme observou Toledo, uma importante e incomum associação entre a composição das aparências e as relações de poder no período colonial brasileiro entre 1500 e 1808. Entre outros destaques mencionados pela autora da resenha, somos convidados a notar a narrativa sensível oferecida por Sant’Anna que vai descrevendo as aparências sem, contudo, reduzi-las às formas de vestir que compuseram a clássica tríade negro-indígenabranco da formação social brasileira. Para muito além disso, como bem apresenta Camargo, somos levados a uma deriva pela história e uma visualização imaginária das relações pessoais e sociais que foram se estabelecendo no período. Essa resenha é uma bela e perspicaz introdução ao livro de Mara Rúbia Sant’Anna.

Fechando a revista, na seção Documento, Camila Borges apresenta as possibilidades que os inventários oferecem para os estudos no campo da indumentária e da moda, explorando especificamente três itens do período da corte joanina no Brasil, pertencentes ao Arquivo Nacional. Em seu denso texto, a historiadora nos lembra que a indumentária é um objeto material que permite compreender os sujeitos e suas relações em diferentes grupos e sociedades, posições e distinções sociais, hierarquias, hábitos de consumo, além, é claro, da moda mesma de uma determinada época. Isso faz dos inventários uma fonte excepcional, posto que contemplam roupas e adornos efetivamente usados. Contudo, como adverte a autora, há uma série de precauções exigidas quando se trata de trabalhar com este tipo de fonte, entre elas, o fato de que os inventários referem-se a diferentes temporalidades e bens, que possuem variados usos e durabilidades.

Esperamos que a leitura seja agradável e surpreendente como foi editar esse material compilado em forma de dossiê. Convidamos os leitores e leitoras a explorar a seção de artigos livres que estão alinhados ao escopo desse compêndio. Como dissemos antes, longe de dar conta das atualizações da área, cada vez mais pulverizada e diversificada em temas de pesquisa, procuramos reunir trabalhos que encontraram nas imagens e objetos seus pontos de partida para investigar esses assuntos que tanto nos apaixonam: a moda, a indumentária e nelas toda uma vida social.


Referências

MENESES, Ulpiano Bezerra de. Rumo a uma história visual. In: MARTINS, José de Souza; ECKERT, Cornélia; NOVAES, Sylvia Caiuby (orgs.). O imaginário e o poético nas ciências sociais. Bauru: Edusc, 2005. p. 35.

ROOT, Regina A. (ed.). The Latin American Fashion Reader: Dress, Body, Culture. Oxford; New York: Berg, 2005.

VOLPI, Maria Cristina. The Exotic West: the Circuit of Carioca Featherwork in the Nineteenth Century. In: ANDRADE, Rita M.; ROOT, Regina A. (eds.). Fashion Theory (The Jornal of Dress, Body and Culture). Special Issue: Brazilian Fashion, v. 20, issue 2, p. 127-152, April 2016.


Organizadores

Maria do Carmo Teixeira Rainho – Doutora em História, pesquisadora do Arquivo Nacional e do Museu Histórico Nacional.

Rita Morais de Andrade – Doutora em História e professora associada da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás.


Referências desta apresentação

RAINHO, Maria do Carmo Teixeira; ANDRADE, Rita Morais de. Apresentação. Acervo. Rio de Janeiro, v. 31, n. 2, p. 8-11, maio/ago. 2018. Acessar publicação original [DR/JF]

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