Mochileiros da fé | R. Bitun
Na busca por uma melhor compreensão sobre o cenário religioso brasileiro, Ricardo Bitun, sociólogo da religião e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), privilegia-nos com um assunto pertinente de uma maior reflexão, o fenômeno nominado por ele “mochileiros da fé”. Nessa obra, Bitun aborda tal movimento a partir do dinamismo e da fluidez com que os adeptos da fé protestante se deslocam de uma Igreja para outra sem qualquer restrição. Usando essa figura de linguagem, o autor compara esses indivíduos aos backpakers, ou seja, “aquele[s] que carrega[m] uma mochila nas costas”, turistas ou peregrinos que agem por conta própria sem dar satisfação a nenhum grupo coletivo de viajantes. Assim, Bitun divide o trânsito religioso em duas etapas: interorganizacional e intraorganizacional. A primeira ocorre de adeptos do catolicismo, espiritismo ou religiões de origem africana para o pentecostalismo; a segunda refere-se àqueles indivíduos que se encontram no pentecostalismo, porém se movimentam entre as igrejas pentecostais e neopentecostais. O livro, além da introdução e das considerações finais, apresenta quatro capítulos: “Em que mundo transitam os mochileiros”, “Os espaços sagrados da peregrinação”, “Por onde vagueiam os mochileiros” e “Eles… os mochileiros”.
De início, o autor nos apresenta os conceitos de sociedade tradicional e sociedade moderna, e o momento em que se deu a transição entre as duas. A sociedade tradicional se designa em um sistema social de culturas mais avançado em relação às formas mais primitivas, em que três pontos basicamente a caracterizam: a existência de um poder central de dominação (organização estatal do poder, em oposição à organização tribal); separação da sociedade em classes socioeconômicas (distribuição dos ônus e das compensações sociais pelos indivíduos); de acordo com as classes a que pertencem; e pelo fato de estar em vigor uma imagem central do mundo (mito, religião avançada), para fins de legitimação e eficaz poder (HABERMAS, 1975, p. 323).
Nesses tipos de sociedade, as relações acontecem por meio de vínculos familiares dominados por padrões de autoridade patriarcal, em que a família constitui a sua base. Algumas transformações ocorridas no interior da sociedade tradicional que caracterizaram a sociedade moderna são: mudança na natureza da economia de tal forma que um setor primário muito pequeno pode alimentar uma população envolvida nos setores secundário e terciário; preponderância da produção mecânica nas fábricas; urbanização da sociedade; crescimento da alfabetização de massa; aplicação do conhecimento científico à produção; e recrudescimento da regulamentação burocrática de todos os aspectos da vida social.
No segundo capítulo, o autor recorre a Bourdieu (1974, p. 72) para afirmar que um campo pode ser definido como uma rede ou configuração de “relações objetivas entre posições definidas objetivamente em sua existência e nas determinações que elas impõem aos seus ocupantes ou instituições”. Em outras palavras, o campo pode ser considerado um mercado em que os agentes se comportam como jogadores. No caso do campo religioso brasileiro, o surgimento constante de novos atores sociais na disputa com o clero, institucionalizado na manipulação dos bens simbólicos, tem tornado esse campo “um campo de manipulação simbólica mais ampla do que as fronteiras da religião institucionalizada” (BOURDIEU, 1974, p. 121-123).
Já o moderno movimento pentecostal surgiu nos Estados Unidos, no início do século XX, em Topeka (Kansas), no ano de 1900, com Charles Parhan em uma escola bíblica denominada Betel, porém o maior expoente desse movimento foi Willian Seymour. Daniel Berg, fundador da Assembleia de Deus no Brasil, é um dos precursores da mensagem bíblica pentecostal em solo brasileiro. No Brasil, a militância pentecostal foi composta basicamente por pregadores urbanos, que atuavam em praças, ruas e calçadas. Conforme Bitun, a partir da década de 1940, o protestantismo no Brasil experimentou um aceleramento, e, dentre os protestantes, os pentecostais foram os que mais cresceram. Devido a esse rápido crescimento, o movimento pentecostal não só atraiu os olhares da mídia, mas também dos cientistas da religião com discussões cada vez mais acirradas.
No pentecostalismo, surgem dois grupos:
- Pentecostalismo clássico: Assembleia de Deus, Congregação Cristã e Evangelho Quadrangular.
- Pentecostalismo de cura divina: Deus é Amor, O Brasil para Cristo, Casa da Bênção e numerosas outras.
O pentecostalismo de cura divina tem caráter empresarial, pois presta serviços ou oferta bens de religião mediante recompensa pecuniária, com modernos sistemas de administração e marketing. Algumas igrejas desse segmento já são multinacionais. Nesse tipo de pentecostalismo, verificam-se outros aspectos:
- Distanciamento da Bíblia, usada esporadicamente sem nenhum rigor hermenêutico ou exegético, mas sem perder o seu poder mágico.
- Inexistência de comunidade: os frequentadores são clientes, e a relação entre a “empresa” e o “cliente” é na base do do ut des.
- Como não há comunidade de adoração e louvor, o culto tem características de ajuntamento de interessados na obtenção imediata de favores do sagrado.
- Intenso ambiente de magia: os mágicos de plantão estão a serviço da “empresa mágica” que traça normas gerais de prática, mas outorga certa margem de liberdade às características de cada uma.
Ainda nesse segundo capítulo, o autor cita as três ondas do pentecostalismo. A primeira, já mencionada, inclui as igrejas Congregação Cristã no Brasil (1910) e Assembleia de Deus (1911); a segunda onda, que tem início a partir dos anos 1950, inclui a Igreja do Evangelho Quadrangular (1953), O Brasil para Cristo (1955), Deus é Amor (1962) e outras; e a terceira onda, na década de 1970, inclui a Igreja Universal do Reino de Deus (1977), Comunidade Sara Nossa Terra (1976), Igreja Internacional da Graça de Deus (1980), Igreja Apostólica Renascer em Cristo (1986), Igreja Mundial do Poder de Deus (1998), entre outras.
Por apresentarem diversidade teológica e fragmentação organizacional, as duas últimas ondas acarretam dificuldades na tentativa de poder caracterizá-las. Já a terceira onda é também chamada de neopentecostalismo, e um intenso trânsito religioso ocorre entre os adeptos dessas igrejas. Essas instituições religiosas também se adaptaram facilmente às mudanças ocorridas no Brasil, como a industrialização, o inchamento urbano causado pela expulsão de mão de obra do campo, a estrutura moderna de comunicação de massa, a crise católica, o crescimento da umbanda e a estagnação econômica dos anos 1980 etc. Duas igrejas destacam-se no grupo da terceira onda, a saber, a Igreja Universal do Reino de Deus e a Igreja Mundial do Poder de Deus.
No terceiro capítulo, “Por onde vagueiam os mochileiros”, o autor mostra que a Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd) foi fundada há pouco mais de 30 anos por Edir Bezerra Macedo, que se converteu ao pentecostalismo aos 18 anos de idade na Igreja Nova Vida, de onde, anos mais tarde, sairia para fundar a então Iurd. Seus cultos são repletos de simbolismo, como as muralhas de papelão (representam as muralhas de Jericó que o crente deve derrubar pela fé para resolver problemas financeiros, amorosos, entre outros). Outros símbolos que se destacam são: biscoito do amor, sangue do cordeiro (suco de uva para passar nos umbrais da porta como fizeram os israelitas no Egito, para representar a salvação do povo), além de orações, exorcismos, músicas, ofertas etc. Prega abertamente a prosperidade material, a felicidade e a saúde de seus fiéis.
Ainda nesse capítulo, Bitun destaca a Igreja Mundial do Poder de Deus, fundada pelo apóstolo Valdemiro Santiago, que, vindo de uma família muito pobre, católica não praticante de Juiz de Fora (Minas Gerais), diz ter encontrado sua restauração ainda na adolescência, aos 16 anos de idade, na Iurd. Em 1998, na cidade de Sorocaba, após regressar da África, onde trabalhou como missionário, Valdemiro, com a esposa e as duas filhas, funda a Igreja Mundial do Poder de Deus (IMPD). De acordo com Santiago, a primeira reunião contava com apenas 16 pessoas, fruto de muita evangelização. Os cultos na IMPD não diferem muito da Iurd, pois ambas utilizam objetos que intermedeiam as manifestações do sagrado, como a “Rosa de Saron”, a “água abençoada”, “óleo ungido”, entre outros. No final das campanhas, esses mesmos objetos são esquecidos, e, em seguida, outro entra em seu lugar, tudo para que o fiel alcance o seu milagre. Nos cultos de cura divina, acontecem os testemunhos dos fiéis em relação ao poder que há na vida do apóstolo Valdemiro e de seus bispos e pastores.
No quarto capítulo, o autor, ao tratar dos mochileiros, afirma que o fenômeno dá-se em face de esses indivíduos estarem em busca de algo que ponha um fim às suas angústias:
A imagem é semelhante a um grupo de mochileiros, sem lugar definido para acampar e que se instala por um breve período em algum “acampamento da fé”, buscando algo para consumir e satisfazer o apetite por consumo e sede de novidade (p. 95-96).
Passada a “temporada de verão” ou a “temporada de inverno”, o grupo se levanta, recolhe as barracas e sai em busca de um “novo acampamento” que lhe proporcione a satisfação necessária para mais uma “aventura” rumo ao consumo e à satisfação de “novos bens religiosos de consumo”. Na ânsia de obter respostas, o autor recorre ao “processo de secularização” elaborado pelo sociólogo Max Weber, que assevera que o sagrado, com o advento da modernidade, caminha em direção às esferas privadas da sociedade, sendo paulatinamente substituído, na estruturação e explicação do mundo, pela racionalidade técnica. Estudiosos dos fenômenos religiosos, até meados de 1960, afirmavam que a urbanização seria um processo irreversível e secular que culminaria em um mundo desencantado e eliminaria a explicação religiosa do contexto social. Porém, ainda com base nesse paradigma weberiano de secularização, pode-se comprovar o crescimento do pentecostalismo como um suspiro tímido das periferias marginais que, mais tarde, manifestariam os traços modernos sonhados pela sociedade científica, o que levaria os estudiosos a reavaliar as análises feitas sobre o pentecostalismo.
Para Bitun, “os mochileiros” pertencem a uma igreja não evangélica, mantêm com ela uma relação de distância e vivenciam sua primeira experiência com uma ou mais igrejas evangélicas, geralmente Assembleia de Deus, Iurd, Igreja Internacional da Graça de Deus, IMPD ou Congregação Cristã. Depois de algum tempo, determinada igreja já não supre as necessidades imediatas dos mochileiros: prosperidade, emprego, curas, entre outras. O candidato à peregrinação, que ouve o testemunho dos mochileiros que receberam algum milagre, identifica-se com eles, seja pelo mesmo tipo de problema, classe social ou sofrimento.
Em suma, no Brasil, o campo religioso vem sofrendo, ao longo dos anos, intensas modificações. Como mostra os estudos e as pesquisas realizados por Ricardo Bitun, a disputa pelo espaço no cenário brasileiro se assemelha à conquista de uma mina de ouro, em que acontecem as frenéticas peregrinações de fiéis consumidores em busca do seu milagre, do bem de consumo que lhes possa agradar. Na compreensão desse anseio, líderes, pastores e bispos armam suas redes a fim de pescar o maior número de fiéis por meio de uma vitrine, ou seja, uma prateleira repleta de produtos.
Referências
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974.
HABERMAS, J. Técnicas e ciência como “ideologia”. In: BENJAMIN, W. et al. Textos escolhidos. São Paulo: Abril, 1975.
Resenhista
Flávio Correa – Mestrando em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). E-mail: pr.flaviocorrea@gmail.com
Referências desta Resenha
BITUN, R. Mochileiros da fé. São Paulo: Reflexão, 2011. Resenha de: CORREA, Flávio. Ciências da Religião – História e Sociedade. São Paulo, v. 12, n. 2, p. 268-274, dez. 2014. Acessar publicação original [DR]