Mocambos e Quilombos: uma história do campesinato negro no Brasil | Flávio Gomes dos Santos
Flávio dos Santos Gomes é doutor em história, professor dos programas de pós-graduação em arqueologia (Museu Nacional/UFRJ) e em história comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Publicou livros, coletâneas e artigos em revistas nacionais e internacionais com os temas Brasil colonial e pós-colonial, escravidão, Amazônia, fronteiras e campesinato.
A obra está organizada em 13 capítulos, sendo eles: Um fenômeno hemisférico; Formação; Ataque e defesa; Família, mulheres e culturas; Aquilombados, negociações e conflitos; Misturas étnicas; Nas fronteiras com as Guianas; Formas camponesas coloniais e pós-coloniais; Em torno de Palmares; Outros quilombos coloniais; Histórias de quilombolas e mocambeiros e Remanescentes e simbologias dos vários quilombos do Brasil.
O autor faz uma discussão sobre os Mocambos e Quilombos, reconstruindo de forma única a história do campesinato negro no Brasil. Contém uma sessão de anexos com dois quadros, onde encontra-se a relação de comunidades quilombolas reconhecidas e certificadas pela Fundação Cultural Palmares, o primeiro quadro relaciona as comunidades certificadas por unidade da federação enquanto que o segundo quadro elenca as comunidades remanescentes de quilombos por estados e municípios.
No primeiro capítulo – Um fenômeno hemisférico – Gomes chama a atenção para a homogeneização dos quilombos na visão dos europeus. Aponta que os negros escravizados não aceitaram passivamente a vida a que foram forçados e aos maus tratos por parte dos seus senhores, “as sociedades escravistas conheceram várias formas de protestos, insurreições, rebeliões, assassinatos, fugas e morosidade na execução das tarefas se misturavam com a intolerância dos senhores e a brutalidade dos feitores” (p. 09).
Na sequência – Formação – ele vai tratar da formação dos quilombos e mocambos. As primeiras comunidades vão se formar a partir de escravos fugitivos dos canaviais e engenhos do Nordeste. O autor salienta que nem toda fuga configurava a formação de um quilombo, pois os fugitivos tinham a tendência de seguirem para os já existentes, um outro fator que contribuiu para a formação de quilombos e fugas em massa, foram os conflitos travados pela colônia como a invasão holandesa em Pernambuco e as revoltas que ocorreram no período colonial.
Em seguida – Organização – Gomes aponta que a reprodução interna foi fator essencial para o crescimento populacional dos quilombos, tendo em vista que esses desenvolveram um sistema econômico de produção sofisticado, que muito pelo contrário não se fortaleceu pelo isolamento como prega algumas correntes da História, mas sim mediante conexões articuladas que envolvia inúmeros atores.
Em – Ataque e defesa – aponta o fator geográfico como de fundamental importância para a resistência dos quilombos em face aos ataques repressivos empreendidos pela administração colonial. Os quilombos eram móveis, e essa mobilidade era utilizada como mecanismo de proteção, o objetivo sempre foi evitar ataques surpresas, já que, percebendo alguma movimentação, optavam por abandonar os mocambos.
No capítulo seguinte – Família, mulheres e culturas – O autor faz duas criticas, a primeira acerca da invisibilidade das mulheres nos quilombos e a segunda é em relação a concepção transgressora dos quilombos nos registros públicos, pois essa visão foi construída pelos atores que queriam a sua destruição. A presença da mulher nos quilombos torna-se notória nos quilombos de longa duração, onde tem-se o desenvolvimento da segunda e terceira geração salienta Gomes.
Flávio dos Santos Gomes faz uma crítica as abordagens que concebem uma visão romantizada dos quilombos como isolados, como uma reprodução da África, ele chama a atenção para o fato de que nos mocambos/quilombos brasileiros foram adaptados as condições específicas no caso do Brasil.
Dentro desse contexto aborda as múltiplas influências culturais que os quilombos estavam sujeitados, pois dentro de um mesmo mocambo existiam vários grupos de origens étnicas diferentes e que desta forma a cultura nas comunidades poderia ser formada tanto de influências africanas quanto de reinvenções da diáspora.
No sexto capítulo – Aquilombados, negociações e conflitos – o aquilombamento segundo o autor era a fuga de negros, porém diferente dos outros tipos de fuga os fugitivos ficavam escondidos na própria fazenda e os objetivos em sua maioria não era a liberdade, mas sim a garantias de direitos, como negociação pelo uso da terra, muitas vezes para não serem ou serem vendidos, para não serem transferidos de propriedades dos seus senhores ou mesmo adquirir o direito de comercializar seus excedentes com outros atores que não fossem os seus donos ou mesmo para diminuir a jornada de trabalho bem como a minimização dos castigos aplicados, esses movimentos aconteciam na sua maioria de forma organizada e articulada.
Em – Misturas étnicas – inicia tecendo uma crítica a visão de uma população indígena cativa, preguiçosa e indolente substituída compulsoriamente pela população africana adaptada e obediente que até hoje os livros didáticos fazem questão de reproduzir. Salienta para as relações entre índios e negros, segundo ele as relações entre os dois grupos nem sempre foram amistosas, conflitos foram travados em alguns momentos.
O oitavo capítulo – Nas fronteiras com as Guianas – o autor aborda as configurações das relações estabelecidas entre os negros e índios nas regiões de fronteiras, e descreve situações de interações econômicas estabelecidas com a região da Guina. Conforme descreve “mocambos e fugitivos produziram – entre rios, e muitas cachoeiras e escarpadas florestas – itinerários, rotas e cooperação para cenários transnacionais, redefinindo territórios e fronteiras étnicas” (p.69).
No capítulo seguinte – Formas camponesas coloniais e pós-coloniais – Flávio Gomes constrói uma crítica as visões de quilombos produzidas no século XX, culturalista e materialista, enquanto a visão culturalista (1930 a 1950), pensava os quilombos apenas como resistência cultural a visão materialista (1960 e 1970), concebia as comunidades como principal característica da resistência escrava aos maus tratos a opressão senhorial, essa visão formulou intensas críticas as teses de Gilberto Freire acerca da benevolência da escravidão brasileira.
No décimo capítulo – Em torno de Palmares – o autor faz uma abordagem acerca do quilombo de Palmares e acrescenta uma descrição histórica que envolve a organização socioeconômica desse conjunto de quilombos, traz o registro na íntegra de uma carta que descreve uma expedição enviada a Palmares no intuito de destruí-lo, com riqueza de detalhes o percurso foi feito pela expedição até chegar aos quilombos, esses registros revelam importantes fatos sobre a organização interna de Palmares.
Nessa perspectiva o autor faz um histórico do quilombo de Palmares, descrevendo as investidas dos portugueses e holandeses no intuito de destruí-lo. Fica latente a organização e as estratégias mantidas pelos quilombolas na resistência às investidas das autoridades coloniais de repressão.
No capítulo seguinte – Outros quilombos coloniais – o autor ressalta que assim como Palmares, existiram outros quilombos coloniais, assim como na cidade do Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e Minas Gerais, porém nesse ponto do seu livro as informações de tais comunidades são focadas nas províncias, do Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e Minas Gerais.
Através de um quadro o autor elenca os quilombos existentes nessas províncias com denominação e data. Aponta ainda que foi na Bahia e Minas Gerais as regiões com maior números de mocambos/quilombos devidos as características como áreas de plantation açucareira e a economia mineradora promovida pela entrada massiva de milhares de africanos escravizados.
Gomes aponta que desde o surgimento e notório desenvolvimento de Palmares no que tange a organização a administração colonial se preocupou com a formação de quilombos que atingissem a mesma articulação e sucesso com que foi o quilombo de Zumbi.
No penúltimo capítulo – Histórias de quilombolas e mocambeiros – Flávio Gomes dá relevância as histórias de alguns quilombolas e em especial aos da divisa entre o Maranhão e o do Grão-Pará na região do Turiaçu- Gurupi e ressalta a resistência dos negros fugidos aos constantes ataques da administração colonial.
Neste momento da sua obra o autor elenca em um quadro os mocambos/quilombos na região do Turiaçu-Gurupi no século XIX organizando-os por nomes e datas. Ele aponta que os conflitos entre as províncias pela demarcação das fronteiras territorial em certos momentos favoreceram a formação e desenvolvimento dos mocambos naquela região. Salienta ainda que mesmo depois da abolição negros e índios ainda lutavam por seus direitos territoriais.
Gomes chama a atenção no capítulo final da obra – Remanescentes e simbologias dos vários quilombos do Brasil – para a invisibilidade e a consequente estigmatização das comunidades quilombolas no período pós-emancipação, e que essa invisibilidade em grande parte foi construída pelas políticas públicas ou a falta destas.
Alicerçado em um discurso de isolamento os remanescentes dos quilombos foram excluídos do direito a cidadania e de outros direitos básicos, sendo vítimas de estigmatizações sucessivas, que os levaram a negar em muitos casos, seu passado de luta e resistência contra o sistema que os tornaram seres humanos escravizados.
Finaliza ressaltando a situação contemporânea das comunidades tradicionais no Brasil em sua luta pelo acesso à terra e pelo reconhecimento e demarcação dos territórios.
Os movimentos sociais, como o Movimento Negro e a militância, articulando discussões com os setores políticos, conseguiram na constituinte de 1988, assegurar no artigo Nº 68 dos Atos das Disposições Constitucionais e Transitórias (ADCP) o reconhecimento e a posse das terras historicamente ocupadas pelos remanescentes dos quilombos, através da certificação da Fundação Cultural Palmares (FCP) e a titulação e demarcação pelo INCRA.
O autor ainda assinala que a quantidade de processos que encontram-se em tramitação, são no total mais de 5 mil comunidades que lutam por reconhecimento, cidadania, terras e políticas públicas de educação e saúde.
A obra de Flávio dos Santos Gomes, traz na sua essência a formação e o desenvolvimento do campesinato negro no Brasil, refazendo um percurso histórico desde o início da colonização portuguesa do Brasil, reconstruindo a História dos Mocambos – Quilombos, dando relevo a luta e a resistência por parte dos negros em relação as relações de maus tratos e condições de trabalhos, bem como insurreições contra seus senhores para terem o direito de acesso à terra.
Mostrou-nos com maestria em relatos e fundamentado em registros da época que se estabeleceu uma intensa rede comercial entre os quilombos e vários atores do período colonial, como taberneiros, índios, pretos livres, a senzala e até senhores de engenho. Todo esse processo de fuga e formação dos quilombos envolvia uma articulação intensa, que foi o fator essencial para a manutenção da resistência dos negros escravizados em relação à condição as quais eram submetidos nas fazendas.
A obra de Gomes avança, pois atualiza os dados de comunidades que foram certificadas e tiveram suas terras tituladas até o ano de 2015, bem como menciona a quantidade de comunidades que estão esperando o reconhecimento por parte da Fundação Cultural Palmares.
A obra em análise é relevante não só para os estudiosos sobre os remanescentes de comunidades tradicionais, pois contribui para entender como se construiu as relações entre os atores sociais que formaram a sociedade colonial, e entender que somos herdeiros em parte, da estrutura que foi construída nesse período, que escravizou e no pós-emancipação invisibilizou os afrodescendentes, impossibilitando esse grupo de acessar os direitos essenciais, direitos esses que constituem objeto, ainda hoje, de muita luta e reivindicações por parte da população negra do Brasil
Resenhistas
Wesley Santos de Matos – Mestre em Relações Étnicas e Contemporaneidade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) e professor da Rede Estadual da Bahia.
Bendito Gonçalves Eugenio – Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor Titular da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, e Coordenador do Programa de Mestrado em Ensino (PPGEn/UESB).
Referências desta Resenha
GOMES, Flávio dos Santos. Mocambos e Quilombos: uma história do campesinato negro no Brasil. São Paulo: Editora Claro Enigma, 2015. Resenha de: MATOS, Wesley Santos de; EUGENIO, Bendito Gonçalves. Fronteira: Revista de História. Dourados, v.20, n.35, p.232-237, jan./jun. 2018. Acessar publicação original [DR]