Mocambo em HQ – Resenha de Vanessa Spinosa (UFRN) sobre “Angola Janga, um convite à liberdade”, de Marcelo d’Salete
Marcelo D’Salete em entrevista na sala de oficinas do Sesc Pompeia | Foto: Malu Mões
Resumo: Angola Janga, um convite à liberdade é uma obra em quadrinhos, escrita por Marcelo d’Salete, que relata a luta de Palmares, um importante símbolo de liberdade e resistência negra na história do Brasil. Apesar de outras histórias sobre o assunto já terem sido contadas, este livro apresenta o conflito de maneira visualmente impactante, em formato de quadrinhos. Composto por onze capítulos e com 432 páginas, o livro já está circulando em vários países e tornou-se uma referência para o ensino de história, especialmente por entender o Quilombo dos Palmares como evento relevante da história nacional.
Palavras-chave: Mocambo, Ensino de História e Angola Janga.
Abstract: Angola Janga, an invitation to freedom tells the story of the struggle of Palmares, an important symbol of freedom and black resistance in the history of Brazil. While other stories have been told about this event, this book presents the conflict in a visually impactful form, in comics. Consisting of eleven chapters and with 432 pages, the book is already circulating in several countries and has become a reference for the teaching of history, especially for understanding the Quilombo dos Palmares as a significant event in national history.
Keywords: Mocambo, Teaching History, Angola Janga.
Mocambo in Comics – Vanessa Spinosa’s review of Angola Janga, an Invitation to Freedom by Marcelo d’Salete
Angola Janga, um convite à liberdade foi escrito por Marcelo d’Salete, intelectual envolvido com o Museu Afro-Brasil. Essa experiência se explicita nas escolhas de planos, na construção das imagens. O autor é um designer, com mestrado em história da arte pela Universidade de São Paulo (USP) e Angola Janga não é sua primeira publicação. Ele ficou bastante conhecido após publicar Cumbe (2008). Mas, Angola e Janga foi premiada no exterior e, no Brasil, foi agraciada com um “Jabuti”, em 20008, na categoria quadrinhos.
Você vê os frutos dessa aproximação com o museu também em outras vertentes, quando convidado a apreciar ilustrações de peças relacionadas, inclusive, com os personagens de Angola Janga, ao visitar o Instagram @marcelodsalete, percebendo a viva herança dos trabalhos nessa perspectiva. O sentido contrário é recíproco, pois a obra de quadrinhos se torna uma peça positiva dentro de uma narrativa de Museu.
D’Salete pesquisou durante 11 anos para gerar 432 páginas de textos e imagens. A construção imagética é marcada pelo preto e branco e os contrastes para fazer uma sublime história de Palmares. Quem ensina História, Português, Literatura ou Sociologia, pode associar essa obra e o conteúdo das suas disciplinas para entender a história da exploração do homem pelo homem.
No caso da escravização das Áfricas (não relacionada à uma visão derrotista), a história de Angola Janga parte da perspectiva de quem estava nos mocambos. Estabelece, desse modo, um contraponto entre a escritura do protagonismo negro e a escritura oficial da interpretação do homem branco colonizador, depondo sobre vestígios desse passado dos escravizados. É a narrativa da resistência da população de matriz banto, que constituiu comunidade com mais 20 mil pessoas.
O narrador se fixa na povoação do Macaco, onde, por uma centena de anos, atuaram cerca de 6 mil pessoas, em pleno século XVII. A história é contada sob a perspectiva de mulheres, homens e crianças, anciãos, brancos, negros e mestiços, livres, escravizados, libertos e resistentes, com destaque, por exemplo, às experiências de vida de Francisco e Soares.
A violência impera e não poderia ser diferente. É uma história de traições, assassinatos, espancamento, estupro, divergências internas entre negros, entre indígenas, entre colonizadores (padres, caçadores de recompensas, senhores de terra, mandatários da coroa). A disputa é física e é também psicológica. O autor mostra a diferentes cosmogonias em campo, de corte cristão e de corte africano.
As narrativas são entrecortadas por sonhos e lembranças de diálogos e flashbacks. Logo no início uma conversa entre o padre e Francisco revela visões cristocêntricas e catequistas, de um lado, e discursos sobre o lugar da organização e da união dos resistentes em mocambos, em cenário que à época situava-se na Capitania de Pernambuco e hoje faz parte do estado de Alagoas. Tratava-se de um complexo que, à semelhança de pequenos pequenas cidades, constituía-se em um estado autônomo dentro da colônia ou uma capitania dentro da capitania.
Angola Janga, contudo, não se resume aos quadrinhos. Além das sequências e micro-sequências de imagens, plenas de metáforas, somente aquilatadas, pelo leitor, mediante a apreciação direta, D’Salete apresenta um glossário, uma cronologia da “Guerra de Palmares”, um quadro sinóptico, mapas de época e atual, situando o cenário da “guerra”, quilombos no Brasil e o tráfico escravista entre os séculos XVI e XIX.
Cena de Angola Janga (D’Salete, 2022, p.50).
Angola Janga é termo usado entre os próprios moradores para definir o conjunto de mocambos de Palmares. Em quibundo, significa ‘pequena Angola’ (Clóvis Moura, Dicionário de escravidão). Para Nei Lopes, em seu Dicionário Banto do Brasil, o termo tem origem em outras línguas banto e significa ‘minha Angola’. Havia diversos mocambos grandes e pequenos no local. Os maiores chegavam a ter mais de 6.000 pessoas. Os mais conhecidos mocambos de Palmares foram Macaco, Zumbi, Subupira, Andalaquitiche, Alto Magno, Aquatune, Acotirene, Amaro, Tabocas, Osenga, Dambraganga e Curiva. (D’Salete, 2022, p.415).
D’Salete também desenvolve texto sobre a história do seu interesse pelo tema e faz um breve relato sobre a transformação de Palmares em objeto da Historiografia. Na apresentação e, mais detidamente, no ensaio intitulado “Picadas e sonhos”, ele comenta sobre o processo de elaboração que envolveu pesquisa bibliográfica e documental. O livro resulta de em típico trabalho de historiador, afeito aos domínios da história social e política, à problematização da experiência dos excluídos, observados sob os filtros da documentação oficial.
Destaco que a passagem de D’Salete pelo Museu Afro Brasil foi determinante para as suas escolhas. Ali, ele aproximou-se das marcas da ancestralidade. Ali, reforçou ligações com Angola e Moçambique, observando os fluxos mais intensos de escravizados, reconhecendo as formas de comunicação, nomes que a própria comunidade designava, chamava para si e entre si os seus movimentos e os seus espaços.
Cada capítulo de Angola Janga é uma oportunidade para acessar trechos de documentos produzidos pelo Conselho Ultramarino, do final do século XVII, mas também de cartas oficiais que depõem sobre a resistência negra e a religiosidade dos seus atores. É também um momento para perceber diálogos com especialistas, como Dércio Freitas, Alberto da Costa e Silva, Robert Slenes e Flávio Gomes.
Você, que se interessa pelo tema, não será a mesma pessoa após a leitura Angola Janga, a experimentação da poética das imagens que estimulam a nossa imaginação (inclusive para planejar aulas). Angola e Janga reitera a pertinência e a relevância de que a história/memória de Palmares permaneça em todas nós e todos nós.
Não é o autor que está falando e não sou eu, a resenhista quem o declara. O capitalismo está na base dessa relação, na matriz da escravização dessa força de trabalho. Tanto patriarcado como a racialização e o racismo estruturam até hoje as nossas formas de ver e de interpretar a história atual do Brasil e Angola Janga é um convite à resistência a esses elementos. Ela demonstra que a liberdade, no sentido mais vibrante da palavra, pode ser realmente praticada se nós agirmos unidos e organizadamente.
Sumário de Angola Janga: uma história de Palmares
- Mocambos e engenhos
- O caminho de Angola Janga
- Nascimento
- Aqualtune
- Cicatrizes
- Cucaú
- Encontros
- Selvagens
- Guerra do mato
- Doce inferno
- O abraço
- Passos da noite
- Glossário
- Picadas e sonhos
- Cronologia da Guerra de Palmares
- Súmula da Guerra dos Palmares
- Mapas
- Referências
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Resenhista
Vanessa Spinosa – Doutora em História pela Universidade de Salamanca (USAL), professora do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Publicou, entre outros trabalhos, “Formação do futuro-presente: a docência em História no contexto da experiência digital no ensino espectro remoto”, coautoria com Marcella Albaine Farias da Costa, em Formação docente e currículo: Conhecimentos, sujeitos e territórios, organizado por Carmen Teresa Gabriel e Marco Leonardo Bomfim (Mauad X, 2021), “Ciberespaço, letramento e docência: experiência com TDICs no Ensino de História”, em História em jogo: as questões do tempo presente e os desafios do ensino de história, organizado por Airan dos Santos Borges de Oliveira e Maria da Conceição da Silva, Costa (Desalinho, 2020) e, em coautoria com Danilo Nogueira de Medeiros, “Ensino de História no ensino superior: práticas educativas para a emancipação discente no ciberespaço”, nos Anais do XI Encontro Nacional Perspectivas do Ensino de História (ABEH, 2021). ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/1087304600335538; ID ORCID: 0000-0003-1736-4110; Facebook:vanessa.spinosa; Instagran:@vanessaspinosa.ufrn. E-mail:vanessa.spinosa@ufrn.br.
Para citar esta resenha
D’SALETE, Marcelo. Angola Janga: uma história de Palmares. São Paulo: Veneta, 2017. 432p. Resenha de: SPINOSA, Vanessa. Quilombo em HQ. Crítica Historiográfica, v.3, n.9, jan./fev. 2023. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/quilombo-em-hq-resenha-de-angola-janga-um-convite-a-liberdade-de-marcelo-dsalete/>. DOI: 10.29327/254374.3.9-6
Consulte também a versão em podcast autoral de Vanessa Spinosa, que gerou esta resenha: Resenha Relâmpago | Coletivo Podcasts Clio, agosto de 2022.