Moçambique, o Brasil é aqui: uma investigação sobre os negócios brasileiros na África | Amanda Rossi
Dividido em 21 sessões e um apêndice de peso, com entrevistas do escritor moçambicano Mia Couto e do ex-presidente brasileiro Lula, o livro Moçambique, o Brasil é aqui: Uma investigação sobre os negócios brasileiros na África extrapola a ideia de reportagem e propõe um deslocamento histórico e espacial pelo território moçambicano no qual, Amanda Rossi, a julgar por seus agradecimentos, parece ter construído visíveis laços de afeto.
Instigada pela presença cultural, religiosa e pelo crescente interesse econômico do Brasil em Moçambique, a obra contextualiza as relações históricas entre os dois países até chegar ao tempo presente. Para tanto, a jovem jornalista percorreu de trem, machimbombo, chapa e tchopela grande parte do território moçambicano onde o Brasil, de alguma forma, se faz presente nos chamados projetos de cooperação (Fiocruz, Embrapa, SENAI, Caixa Econômica e Ministérios da Educação, Desenvolvimento Agrário, Desenvolvimento Social, Esporte) ou fazendo negócio: Vale, OAS, Odebrecht, Camargo Correa, Andrade Gutierrez, Embraer, Rede Record, Petrobrás, Eletrobrás, Grupo Pinesso ( produção de soja) e BRF ( venda de frango congelado).
Entre tais projetos destaca-se sua visita a região norte, precisamente em Lichinga, capital do Niassa, onde constatou o paradoxo entre o entusiasmo dos estudantes da Universidade Aberta do Brasil (UAB) – que capitaneia um dos maiores projetos de cooperação entre o Brasil e Moçambique – e as dificuldades lá enfrentadas devido à falta de luz e internet, essencial para um curso a distância. Em Moatize, na província central de Tete, Rossi acompanhou de perto as manifestações dos reassentados da mineradora Vale e percorreu a ferrovia do Projeto Corredor de Nacala (PCN), vasta região em que o modelo de agronegócio pretende se instalar com apoio da Embrapa, até chegar a própria cidade de Nacala Porto com seu grandioso (e questionável) aeroporto construído pela Odebrecht.
Seus múltiplos trajetos, suas conversas com analistas moçambicanos, muitos deles críticos a atuação do Brasil e também com camponeses desconfiados com o Pro-SAVANA (Programa de Cooperação Tripartida para o Desenvolvimento Agrícola da Savana Tropical em Moçambique) somado a um conjunto de dados e documentos embasaram Rossi a construir uma contundente análise sobre os interesses brasileiros na chamada Dzpérola do Índicodz que, segundo a autora, são pautados por um visível interesse econômico. Tal situação é identificado, por exemplo, no grande volume monetário destinado aos financiamentos do Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) e Banco do Brasil em favor das principais construtoras brasileiras que fazem negócios em Moçambique, em contraponto a parca soma destinada a Agência Brasileira de Cooperação (ABC) que desenvolve projetos no âmbito científico, social ou cultural.
Um dos capítulos mais instigantes do livro foi elaborado a partir de telegramas secretos (que a jornalista não precisa como teve acesso) trocados entre a embaixadora Leda Lúcia Camargo e o Itamaraty, no período em que a mineradora Vale venceu a licitação em Moatize (2004). O documento evidencia o lobby feito entre o estado brasileiro e o governo moçambicano para tornar o Dzcarvão é verde amarelodz, título da seção. O texto ganha contornos ainda mais polêmicos quando a jornalista divulga as relações entre Leda Lúcia e Sérgio Vieira, alto escalão do partido Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), que teria repassado informações privilegiadas sobre o processo de licitação. Supostamente em troca do auxílio de Vieira, no telegrama de 17/11/2004, Leda solicitou a Ordem Rio Branco que condecorasse Vieira por serviços meritórios “desde que não se toque em sua atuação no projeto Vale, mas tendo como motivo, para aparências, o fato dele ter chefiado a primeira visita diplomática moçambicana no Brasil (1980)”.2
A divulgação de documentos como esse, os inúmeros dados econômicos e, sobretudo, o relato dos deslocamentos feitos pela jornalista aproximam o leitor das realidades moçambicanas e despontam como os grandes méritos do livro. Contudo, por se tratar de capítulos que podem ser lidos separadamente, por vezes, o livro se torna repetitivo o que não compromete sua leitura. A única ressalva empregada pela autora seria o uso de certos termos em descrições como: “Os dezesseis homens que combatiam a Vale eram como leopardos camuflados entre arbustos”.3 A relação entre o continente africano e o reino animal, que povoa o meio midiático parece mais atrapalhar do que permitir uma análise sofisticada sobre a complexidade do continente. Ao menos para grande parte do público brasileiro cujo conhecimento sobre tal complexidade apresenta sérias limitações.
Ao final, a conclusão que fica é que se em um primeiro momento éramos percebidos em Moçambique como “o grande irmão brasileiro” hoje em dia nos sobrou a fama de “primos ricos” cujas práticas exploradoras, lamentavelmente, se assemelham aos antigos colonizadores portugueses, ainda que em diversos de seus discursos o ex-presidente Lula tenha feito apelos aos empresários brasileiros para que não agíssemos como os predadores de outrora.
Notas
2 ROSSI, Amanda. Moçambique, o Brasil é aqui: Uma investigação sobre os negócios brasileiros na África. Rio de Janeiro: Record, 2015, 405 p., fotos, mapas. p. 97.
3 Ibidem. p. 29.
Resenhista
Fernanda Gallo – Universidade Estadual de Campinas. E-mail: fedoca_gallo@hotmail.com
Referências desta Resenha
ROSSI, Amanda. Moçambique, o Brasil é aqui: uma investigação sobre os negócios brasileiros na África. Rio de Janeiro: Record, 2015. Resenha de: GALLO, Fernanda. Revista de História Comparada. Rio de Janeiro, v.11, n.1, p.246-248, 2017. Acessar publicação original [DR]