O dossiê intitulado Moçambique na globalização: oportunidades, riscos e desafios, publicado neste número da Revista da Associação Brasileira de Estudos Africanos, é fruto de uma cooperação internacional e interinstitucional que vem sendo construída entre o Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Escola Doutoral em Geografia da Universidade Pedagógica (UP) de Maputo no âmbito do Grupo de Estudos Espaços e Sociedades na África Subsaariana – GeoÁfrica.
Propomos aos leitores da revista uma série de artigos assinados por pesquisadores moçambicanos e brasileiros que analisam mutações experimentadas pela sociedade, pela economia e pelo território de Moçambique nas últimas três décadas. O recorte espacial corresponde grosso modo ao período iniciando-se com o fim da guerra civil (1992) que deu o pontapé à reconstrução do país e a reinserção da economia nacional nos circuitos da globalização. Se, por um lado, a “emergência” moçambicana, definida com base num crescimento sustentado do P.I.B., significou novas oportunidades para alguns setores econômicos, grupos sociais e regiões do país, a natureza do modelo de desenvolvimento arquitetado pelas autoridades em colaboração com agências internacionais, assistimos, por outro lado, a um acirramento das contradições estruturais próprias aos regimes rentistas e a um aumento do grau de vulnerabilidade frente à crises conjunturais. Essas dinâmicas conflitantes levantam, portanto, desafios econômicos, sociais, ambientais e políticos extremamente complexos para a sociedade moçambicana.
Abrindo o dossiê, o artigo A inserção de Moçambique na globalização: riscos, desafios e dinâmicas territoriais, assinado por Frédéric Monié, propõe uma análise sintética das dinâmicas econômicas e espaciais em curso no país de África austral. A reconstrução gradual da base produtiva e territorial a partir da década de 1990 é frequentemente apresentada como um caso de sucesso pelas autoridades e por agências internacionais convencidas que o giro neoliberal da década de 1980 e a crescente inserção do país nas redes da globalização constituem os vetores da emergência econômica e do desenvolvimento nacional. Se os ganhos em termos de estabilidade macroeconômica, expansão econômica, equipamento do território e redução da taxa de pobreza são manifestos, o modelo de “desenvolvimento” moçambicano é, também, associado a riscos crescentes nos campos produtivo, social e ambiental. As novas fronteiras do extrativismo (carvão mineral, gás natural, rubis etc.) ilustram a vulnerabilidade de um regime de acumulação que pode impactar negativamente as sociedades e os territórios locais. “Maldição dos recursos naturais”, regime sociopolítico de tipo rentista, conflitos de uso, impactos ambientais, desigualdades socioespaciais impõem desafios de grande complexidade em termos de diversificação do tecido produtivo, crescimento inclusivo, desenvolvimento social e gestão do território.
As duas contribuições sobre o desenvolvimento do turismo em Moçambique apontam, também, potencialidades e riscos exigindo políticas setoriais que garantem uma inserção sustentável da atividade nos ambientes e nas sociedades locais. A natureza desenvolvimentista ou, ao contrário, predatória da atividade turística levanta questionamentos relevantes num período caracterizado pelo aumento, ainda modesta, porém relevante, dos fluxos dos turistas estrangeiros na África subsaariana. No seu artigo Turismo em Moçambique: oportunidades, desafios e riscos, José Julião da Silva analisa o potencial do setor turístico em termos de vantagens comparativas, destacando as amenidades naturais e a proximidade geográfica com os investidores e clientes da África do sul como fatores críticos da expansão do turismo. Após uma fase de desenvolvimento não planejado sob o efeito de investimentos de cidadãos sul-africanos, políticas estatais começaram a serem promulgadas a partir da década de 2000 para orientar o crescimento do setor num ambiente mais regulado. O autor ressalta o potencial dos efeitos em cadeia do turismo e seus impactos sobre a dinâmica da urbanização, a transformação da paisagem ou a emergência de novas formas de mobilidades. Ele nos lembra, também, que a vulnerabilidade do litoral moçambicano aos desastres climáticos ordena políticas de gestão costeira a altura deste desafio.
A contribuição de José Guambe, intitulada Efeitos da Pandemia de Covid-19 sobre o turismo na África subsaariana e em Moçambique, ressalta a exposição do turismo às oscilações de uma demanda estruturalmente dependente de fenômenos como sazonalidade meteorológica, conjuntura econômica e social nos países de origem, estabilidade geopolítica e ambiente de segurança nos países de destino etc. A pandemia de Coronavírus/COVID-19 que afeta o Mundo em 2020 traz uma nova variável determinando os rumos do setor, cujos efeitos são e serão sentidos a curto e médio prazo. O autor assevera que turistas internacionais e nacionais portadores do vírus contribuíram para sua difusão socioespacial em diversas escalas e que o transporte aéreo foi um dos principais instrumentos técnicos do contágio. Guambe destaca, ainda, de que maneira a intensidade e a velocidade da contaminação levaram a adoção de medidas de contenção territorial que no Mundo e em Moçambique afetaram drasticamente a mobilidade humana e o turismo.
Num continente ainda rural, mas onde o ritmo da urbanização é um dos mais rápidos do Mundo, o crescimento urbano levanta também desafios de uma grande complexidade. O desenvolvimento dos circuitos superiores da economia (Milton Santos) revela-se insuficiente para absorver anualmente milhões de indivíduos postulando ao ingresso no mercado de trabalho formal. A problemática “do informal” aplica-se também ao desenvolvimento urbano. No artigo Dinâmicas de produção do espaço urbano na perspectiva da informalidade e pobreza urbana, Luis Guevane apresenta uma reflexão comparada sobre a articulação entre pobreza, informalidade e produção do espaço urbano em diversas cidades africanas marcadas por fenômenos como desigualdades socioespaciais acirradas, expansão não planejada das periferias, carências em redes e equipamentos técnicos ou degradação ambiental. A baixa capacidade de resposta das autoridades em termos de investimento estatal e ordenamento do território constituem, portanto, um desafio maior para a sociedade moçambicana.
Em Globalização e transformação dos espaços urbanos periféricos em Moçambique, Joaquim Miranda Maloa analisa a emergência de um mercado imobiliário moderno na cidade de Maputo “pós-socialista” onde a desnacionalização do parque habitacional e o afluxo de capital e profissionais estrangeiros marcaram profundamente a produção do espaço urbano. A inflação do preço do solo urbano estimulou estratégias residenciais de migração para a periferia, possibilitada pela venda ou aluguel de imóveis localizados na área central da capital. A paisagem da periferia foi transformada pelo surgimento de casas de alto padrão e condomínios coabitando com formas tradicionais do habitat em áreas periféricas (casas de caniços etc.). Pode-se observar um fenômeno de expulsão dos habitantes mais carentes para lugares distantes, interpretado pelo como um processo de gentrificação que pode ser observado nas demais capitais do país.
Outro desafio maior enfrentado pelas cidades moçambicanas reside nos “riscos naturais” associados as mudanças climáticas globais, como o ilustraram dramaticamente os ciclones Idai e Kenneth em 2019. O processo de globalização contemporâneo se traduz por uma crescente ocupação dos litorais que são, através de suas cidades portuárias, os principais nós de conexão dos territórios ao espaço global dos fluxos. Em Moçambique, o litoral funciona também como porta de saída do comércio externo de regiões ou países vizinhos sem fachada marítima (Gauteng sulafricano, Zimbábue, Malaui etc.). Por sua parte, aceleração do ritmo da urbanização e novas fronteiras de acumulação (gás natural) aumentam as pressões sobre o faixa costeira moçambicana. O texto Avaliação da vulnerabilidade costeira na costa Moçambicana: Índice de Vulnerabilidade Costeira Simplificado assinado por Teodosio Nzualo monstra, com base em exercícios de modelagem, que os distritos costeiros das províncias de Sofala e Zambézia são particularmente vulneráveis aos impactos causados pela incidência de ciclones e inundações. A multiplicação e a crescente magnitude dos eventos climáticos extremos significam, portanto, desafios em ternos de ordenamento territorial e gestão de espaços litorâneos em via de adensamento populacional.
Em Novos sentidos da circulação em Moçambique. A produção para exportação nos anos 2010, Antônio Gomes contextualiza historicamente os atuais desafios da inserção de Moçambique nas redes da globalização, destacando mais especificamente a relevância estratégica dos sistemas e das infraestruturas de circulação que desempenharam um papel central na construção da base territorial e de uma economia de trânsito. O autor aponta que desde a década de 2000, a descoberta de novas reservas de recursos naturais (carvão mineral, gás natural) consolida o regime de acumulação extrativista marcado pela presença de corporações globais que alugam o território moçambicano mediante estratégias funcionais e territoriais de conexão fluida e competitiva aos mercados regionais e mundiais de commodities.
Limites e contradições do atual “modelo de desenvolvimento” são também analisados por Albino Eusebio que, na sua contribuição Os direitos sobre os territórios: ‘comunidades locais’ e os projetos de desenvolvimento em Moçambique, nos lembra de que maneira o arcabouço institucional, jurídico e regulatório estabelecido pelo governo moçambicano para viabilizar a nova fronteira extrativista de Moatize (Província de Tete) funcionou como instrumento de “subalternização das populações que apresentam práticas outras de apropriação da terra e recursos naturais (camponesas, não empresariais, etc.) e de modo geral das populações das áreas rurais”. O desenvolvimento da extração de carvão mineral foi, pelas suas características funcionais, motivo de expropriações de terra e deslocamento forçado de milhares de famílias. A operação foi legitimada pela necessidade de inserir a nova economia regional no mercado mundial do carvão. O autor destaca de que maneira as atuais remoções de população lembram fenômenos semelhantes ocorridos durante a época colonial.
A contribuição de Frédéric Monié e Maria Daniele Carvalho Mineração e reestruturação espacial em Moatize propõe, por sua parte, uma análise dos efeitos espaciais do extrativismo mineral em Moatize, onde a filial moçambicana da corporação brasileira Vale S.A. firmou-se como ator econômico e sociopolítico hegemônico na região. As estratégias comerciais, operacionais e logísticas da firma requerem a implantação de novos sistemas de objetos e ações que reestruturam o espaço geográfico segundo uma dupla logica de distanciamento do sítio extrativo em relação a hinterlândia local e regional e de inserção competitiva do enclave produtivo no mercado mundial do carvão mineral.
No dia 10 de abril de 2020, movimentos sociais e ambientalistas, ativistas e acadêmicos moçambicanos etc. publicaram o documento Por um Estado de Emergência com Justiça Social, Ambiental, Económica e de Género. O texto objetiva alimentar o debate sobre os possíveis impactos sociais, ambientais e econômicos da pandemia de Coronavírus COVID-19 em Moçambique e os efeitos do estado de emergência decretado pelas autoridades. A AliançaC19 alerta, por exemplo, que violência doméstica e abuso sexual são suscetíveis de alcançar níveis críticos em situação de confinamento da população. A precarização dos trabalhadores informais nas cidades e em espaços rurais, a questão da segurança alimentar, o tratamento do lixo hospitalar, a violência praticada por forças de segurança são outras questões que precisam ser debatidas pela sociedade civil e com as autoridades. Considerando que a atual crise sanitária questiona a natureza do “modelo de desenvolvimento” moçambicano, o documento tem, também, um caráter propositivo. São apresentadas propostas de fortalecimento das redes locais de solidariedade social e dos mecanismos de governança para construir uma resposta cidadã à crise sanitária. O empoderamento dos camponeses através da promoção de uma agricultura social e ambientalmente sustentável é considerado estratégico num país em grande maioria rural e apresentando baixos índices de desenvolvimento humano no campo. Investimentos no sistema de saúde são, também, considerados prioritários no intuito de aumentar a acessibilidade da população à rede de postos e equipamentos hospitalares em todas as regiões do país. Diversas medidas de mitigação dos impactos sociais e econômicos da pandemia são também propostas por um documento que ilustra a reatividade e a capacidade de mobilização da sociedade civil moçambicana em tempo de crise(s).
Desejamos que os artigos que compõem esse dossiê possam esclarecer as dinâmicas em curso em Moçambique desde o início da década de 1990 e alimentar o debate sobre o rumo das políticas de desenvolvimento seguidas desde então pelo país.
Boa leitura!
Organizadores
Frédéric Monié – Universidade Federal do Rio de Janeiro.
José Júlio Junior Guambé – Universidade Pedagógica de Maputo.
Referências desta apresentação
MONIÉ, Frédéric; JUNIOR GUAMBÉ, José Júlio. Apresentação. AbeÁfrica: revista da associação brasileira de estudos africanos, v.3, n.3, p. 4-8, out. 2019. Acessar publicação original [DR]
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