Moçambique em perspectiva. Histórias conectadas, interdisciplinaridade e novos sujeitos históricos | Revista de História | 2019

Uma possível perspectiva analítica para o devir dos estudos africanos no Brasil é pensá-los a partir de suas inflexões, uma vez que o desenvolvimento do campo parece ter dado saltos qualitativos nos últimos anos. Nessa direção, a configuração e a própria concepção do dossiê Moçambique em perspectiva: histórias conectadas, interdisciplinaridade e novos sujeitos históricos, desde o diálogo estabelecido entre as organizadoras até a publicação dos artigos, estão relacionadas à trajetória de implantação e consolidação da área cujos marcos políticos, legais e institucionais são retomados no escopo desta apresentação.

Um marco relevante para os estudos africanos no Brasil foi a aprovação da Lei 10.639/2003 que reformou a Lei de Diretrizes e Bases, introduzindo a obrigatoriedade do ensino da história e cultura da África e afro-brasileira nos currículos escolares.1 Fruto da intensa luta dos movimentos negros de nosso país, e contando com a liderança de figuras expressivas do meio intelectual negro brasileiro, a começar por sua relatora,2 a lei significou um momento de inflexão na maneira pela qual se contava nas instituições de ensino brasileiras a história social, política e econômica do Brasil.

No campo educacional, ao qual se destinou em sua essência, a lei representou não só um movimento de democratização do ensino e da cultura, mas principalmente a recuperação de uma história significativa para estudantes, crianças e jovens negros, além de professores, marcados pelas dores profundas do racismo e da discriminação. Integrá-los à História do Brasil de onde foram apartados desde sempre na educação formal e demonstrar a historicidade das populações negras a partir de um passado africano, sublinhando suas dinâmicas e singularidades, bem como a inventividade histórica do imenso continente vizinho, são importantes aspectos da lei cujos sentidos mais imediatos já são perceptíveis.

Antirracista por excelência, a efetivação da lei traz à tona o orgulho de um passado e de civilizações de onde milhões de antepassados foram arrancados, evidenciando também a reconstituição de culturas, religiosidades, modos de pensar, ser, estar e sentir que imprimiram traços vigorosos e fundadores na sociedade brasileira. Quando o poeta e africanista Alberto da Costa e Silva afirmou que era preciso que conhecêssemos os modos pelos quais a África civilizou o Brasil ele se referia a esse cerne, nossas bases honradamente históricas da ascendência negra.3

A lei promoveu a obrigatoriedade e a necessidade de formação, trazendo consigo novos compromissos para a academia. Inteirar-se rapidamente dos conteúdos de uma história de certa forma ausente até então, acalmar ansiedades de professores que não sem razão se sentiam despreparados, formar em pouco tempo especialistas e pesquisadores que cumprissem o papel de dinamizar a relação indissociável entre pesquisa e docência foram alguns dos desafios que se impuseram a um campo de estudos e de pesquisa relativamente novo.4

Nos primeiros encontros das associações acadêmicas com a criação de grupos de trabalho relacionados à história da África ouviu-se constantemente a máxima dita por Mia Couto, no prefácio de um dos primeiros livros didáticos sobre o tema publicado no Brasil: “De que África estamos falando?”.5 A pergunta não foi somente referida aos impactos da novidade – uma reflexão coletivamente elaborada entre poucos na época –, mas incluiu a indagação sobre nosso papel como produtores de conhecimento e a relação com outras áreas e centros de pesquisa envolvidos com os estudos africanos. A respeito disso, considerou-se que o conhecimento da história da África tem a ver com as marcas históricas da sociedade brasileira, uma forma de conhecer melhor um passado recente, sublinhando nesse sentido o foco diaspórico nesses estudos.

Isso decorreu também das concepções de História Social que informaram muitas das pesquisas; aprendendo com a História Social da Escravidão dos anos de 1980 e 1990, seguiu-se a perspectiva que colocou os africanos e os afrodescendentes no centro das atenções, como agentes históricos, buscando identificar homens, mulheres e crianças vindos compulsória e violentamente nos interstícios das redes atlânticas do tráfico. As relações com o Benin e com a costa atlântica da África, o universo Congo-Angola, as identidades fon, iorubá e de matriz bantu, as religiosidades e as correspondências linguísticas, entre tantos outros temas impossíveis de serem mencionados em seu conjunto, transformaram aos poucos o que se pensava como diálogos e correspondências em interações. Começou-se, a partir disso, a dar substância à ideia de um mesmo mundo, a sexta região da África,6 a África da diáspora que acabou se concretizando, por exemplo, na necessidade de novos volumes para a coleção História geral da África (Unesco), entre eles África global e suas diásporas, tendo como coeditora a historiadora Vanicléia Silva Santos. Esta iniciativa foi coadunada com a tradução para o português de toda a coleção e disponibilização online a partir de 2010, fruto de parceria da Unesco com o Ministério da Educação e a Universidade Federal de São Carlos. 7

Num período de oito anos, grosso modo entre 2011 e 2019, os estudos africanistas feitos a partir do Brasil se consolidaram institucionalmente. Para além da criação de associações e grupos de trabalho, como na Anpuh, na ABA e na Abralic,8 destacam-se a formação, em 2015, da ABE-África (Associação Brasileira dos Estudos Africanos), em sua feição interdisciplinar, como não poderia deixar de ser, bem como a criação da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) em 2010 e uma série de programas e projetos de mobilidade e de pesquisas conjuntas entre as universidades brasileiras e africanas.9 Além disso, assistiu-se à realização de diversos eventos como palestras, conferências, seminários etc. O crescente número de intelectuais africanos que visitam o país para participar de tais eventos e/ ou ministrar cursos nas universidades brasileiras aprofundou reflexões e sinergias compartilhadas, fundamentais para o avanço dos estudos africanos produzidos a partir do Brasil. Iniciativas estas que abriram um horizonte de possibilidades de pesquisas muito mais amplas. Contribuíram de modo significativo para isso as políticas de ações afirmativas implantadas a partir do início deste século e cujos principais efeitos foram ampliar o ingresso de jovens negro(a)s no ensino superior e, mais recentemente, nos cursos de pós-graduação, bem como diversificar e enriquecer agendas temáticas e, assim, o panorama da ciência produzida nos principais centros de pesquisa do país.

As profundas transformações políticas vividas no Brasil nos últimos anos tiveram impactos negativos em campos diversos. Destacamos aqui o esfriamento das relações diplomáticas com países africanos, os cortes de financiamento público em cultura, educação e pesquisa científica e, no âmbito societário, o aumento da intolerância religiosa, da xenofobia e do já conhecido “racismo à brasileira”. Por outro lado, a criação de grupos de estudos, coletivos e associações, dentro e fora da academia, demonstram a permanência e o vigor dos estudos africanos e diaspóricos em nosso país. Neste sentido, é possível dizer que o campo se encontra numa fase de inegável consolidação e resistente à conjuntura atual.

Assim, a contar dos dez anos da aprovação da Lei 10.639/2003, as questões parecem se complexificar ainda mais, adquirindo outras dimensões e direcionamentos. Nosso lugar, ou melhor, o lugar da produção brasileira nas várias áreas relacionadas aos estudos africanos é visto a partir de outros enfoques: ressurge em sua feição interdisciplinar, diaspórica, buscando romper com os paradigmas do eurocentrismo, enfatizando as epistemologias e diálogos Sul-Sul, enfrentando desafios que se colocam não só à disciplina da História, mas nas maneiras de se pensar as várias áreas das Ciências Sociais. Entre elas, os desafios colocados pela interdisciplinaridade e em como vencer as fronteiras tacanhas entre as disciplinas, no sentido da construção de uma narrativa mais profunda e ampla.10 Considera-se aqui, concretamente, a pesquisa acadêmica e os novos centros de produção surgidos neste período: um número crescente de teses e dissertações, de diferentes temas, abrangendo períodos e espaços diferenciados da História da África e investigações feitas em acervos africanos e em estreito diálogo com a produção acadêmica e não acadêmica feita nos países da África.

Entre as várias inflexões, sublinha-se também a guinada índica, com uma atenção especial à história de Moçambique, em diferentes períodos.11 Surgem a partir desse espectro outras globalidades que abrem caminho para histórias conectadas, nos termos indicados por Sanjay Subrahmanyam,12 tais como as relações entre Brasil e Moçambique, incrementadas no século XIX por meio da diáspora dos chamados moçambiques; as dinâmicas de Moçambique na África Austral; a interação milenar de Moçambique no Índico, revigorada com a formação das sociedades swahilis da costa, cosmopolitas, diaspóricas, universo do qual provém uma parte de nossos ascendentes africanos, sobretudo no século XIX.

O dossiê Moçambique em perspectiva almejou tais recortes e dimensões e reúne um conjunto de estudos fundamentados em pesquisas empíricas e debates teórico-metodológicos centrados entre os séculos XV e XXI. O dossiê cumpre a proposta de divulgar uma produção acadêmica atual sobre temas relacionados à História Social de Moçambique, numa perspectiva interdisciplinar e apoiada em fontes de pesquisa bastante variadas. O conjunto de artigos publicados também expressa a importância das investigações em acervos africanos e do diálogo crescente entre estudiosos brasileiros e africanos, presentes em grande parte dos artigos publicados. Em resposta à chamada do presente dossiê, entre os autores que nos brindaram com seus textos, se encontram estudiosos do Brasil, Moçambique e Estados Unidos. Acadêmicos de diferentes origens institucionais e em fases distintas da carreira, revelando ainda uma interessante mirada geracional.

Em linhas gerais, é possível afirmar que se configuram no dossiê universos temáticos analisados a partir de vários enfoques e utilizando fontes diferenciadas, cada uma delas exigindo um criticismo particular, tais como a produção audiovisual, fotográfica, os relatos de viajantes, a documentação colonial, os livros de memória, as manifestações culturais, os relatos orais, dentre outras. No conjunto dos artigos encontramos diversas confluências temáticas e nas abordagens teórico-metodológicas. Em relação às escolhas metodológicas, destaca-se ainda a contraposição entre produção visual e publicações de jornais; ou entre memórias e a documentação localizada nos arquivos e as narrativas da história oficial; e ainda entre as observações de campo e literatura, e entrevistas.

As aproximações temáticas marcam também o dossiê, podendo-se neste sentido equacionar algumas simetrias e grupos de artigos. Os textos que têm como pano de fundo a independência de Moçambique, por exemplo, privilegiam reflexões sobre a construção de diferentes narrativas, retomando-as numa perspectiva crítica. Também são apresentados artigos que tratam dos usos das cidades e das expressões culturais locais, além da exploração do trabalho africano no período colonial. Outros autores, a partir de uma perspectiva da micro-história, abordam trajetórias individuais que servem de janela para acessar a história de sociedades da África Austral. Por fim, o dossiê também apresenta estudos realizados em diferentes temporalidades, indo da longa duração às dimensões do cotidiano e das práticas sociais contemporâneas.

Assim, é com muita satisfação que apresentamos o dossiê Moçambique em perspectiva. Histórias conectadas, interdisciplinaridade e novos sujeitos históricos.

A primeira parte do dossiê reúne artigos que têm como objeto a construção narrativa sobre o processo de independência em Moçambique, tema dos mais relevantes da historiografia moçambicana. Estes trabalhos refletem de forma contundente sobre a maneira pela qual está sendo formulada a história da luta de libertação. Trata-se de pensar o script da libertação, nas palavras de João Paulo Borges Pereira, professor titular da Universidade Eduardo Mondlane, em seu artigo “Política e história contemporânea em Moçambique: Dez notas epistemológicas”, versão de um texto publicado em 2013 na revista Kronos (Universidade de Western Cape, África do Sul), no qual o historiador apresenta e discute apontamentos teóricos e metodológicos necessários para se repensar as lutas de independência e a construção da nação em Moçambique. Esse script seria exatamente aquilo que molda e pauta as narrativas sobre esse grande tema da historiografia moçambicana e dos estudos africanos de maneira geral.

O artigo da professora do Departamento de Letras da Universidade de São Paulo, Rita Chaves, intitulado “Autobiografias em Moçambique: a escrita como monumento”, se debruça sobre temática aproximada à de Borges Coelho, tomando como foco a produção de biografias, autobiografias e coletâneas de depoimentos de mulheres e homens que participaram da luta pela independência do país. Atenta às relações entre memória e poder, a autora analisa a elaboração e a divulgação de narrativas com cariz testemunhal, sem a necessidade de rigor histórico. Em sua maioria são textos de antigos combatentes e guerrilheiros da Frelimo, comprometidos com as tarefas impostas pela constituição da nação nas mãos do partido, material que leva a autora a refletir sobre a escrita de memórias da luta de libertação como monumento.

Milton Correia, professor da Universidade Pedagógica (Moçambique), no artigo “História e textualização: a historiografia da Frente do Niassa (Moçambique), 1964-1974”, coloca o processo de libertação em perspectiva, não só a partir das memórias pessoais, mas também das fontes coloniais localizadas em Lisboa e da documentação produzida pela Frelimo. Em seu artigo, atento ao script de libertação (Borges Coelho), Correia desloca seu olhar interpretativo das zonas e relatos anteriormente privilegiados pela história oficial para as experiências da Frente do Niassa, nas fronteiras com o Malawi e a Tanzânia. O autor recupera a atuação desta “outra” frente a partir dos ofícios dos administradores coloniais, militares e da PIDE, além dos documentos da Frelimo que noticiam as lutas e a perda de controle das tropas portuguesas. A relação entre história e textualização adquire aqui outra complexidade abrindo espaços para a compreensão e a crítica da historiografia sobre os processos de independência em Moçambique.

Além dos textos e documentos históricos, memórias e biografias, o artigo de Alexsandro de Souza e Silva, da Universidade de São Paulo, “Imagens cromáticas e sonoridades conflitantes em Maputo, meridiano novo (1976), de Santiago Álvarez” traz como referência central uma produção cinematográfica. O texto reflete sobre as relações políticas e de cooperação entre Cuba e Moçambique a partir de um filme realizado no primeiro país em 1976. Por meio da análise da narrativa fílmica, o autor identifica as tensões destas relações à época da independência, analisa as imagens, os discursos e a trilha sonora exibidos no curta metragem, assim como os desafios enfrentados pelo país recém liberto do jugo colonial. O artigo aponta para a importância da fonte audiovisual como recurso testemunhal para estudos de histórias recentes e suas diferentes versões.

Os artigos sobre Moçambique colonial formam outro bloco, em grande parte inspirado por uma perspectiva que repensa a história do domínio colonial português na sociedade moçambicana, tanto nas zonas urbanas quanto nas áreas rurais, a partir de novos olhares da História Social. Se, num primeiro momento, o foco foi compreender de modo panorâmico a paisagem social do colonialismo português, particularmente em Moçambique, as pesquisas atualmente em curso verticalizam as análises sobre diferentes grupos e temáticas, a partir das lentes da micro-história, da história do cotidiano e da história cultural.

Neste conjunto, três dos artigos se referem às principais cidades de Moçambique colonial: Lourenço Marques (atual Maputo) e a Ilha de Moçambique, antiga capital.

O primeiro deles, “Heterotopia e vilegiatura em Lourenço Marques”, de autoria do professor Sílvio Marcus Corrêa, da Universidade Federal de Santa Catarina, diz respeito à construção de um espaço utópico, ordenado e higiênico, imbricado à cultura balneária de Lourenço Marques e registrado nos cartões postais e nos Álbuns fotográficos descritivos da colónia de Moçambique, de José dos Santos Rufino. Enquanto as imagens da vilegiatura balnear projetavam a cidade pretendida e imaginada, publicações de jornais, também analisadas no artigo, denunciavam o racismo praticado nas praias pelos colonos brancos.

No caso de Matheus Serva Pereira, da Universidade de Campinas, no artigo “Entre o subsídio e a subversão – negociações e disputas ao redor dos ‘batuques’ e danças no sul de Moçambique (1900-1950)”, o autor apresenta aspectos da espetacularização de expressões culturais, envolvendo danças e músicas de povos do sul de Moçambique, em especial, dos chopi. Homogeneizadas a partir do rótulo colonialista de “batuques”, os espetáculos, normalmente organizados pela administração colonial, foram usados pelos participantes das performances também como espaço para manifestação de críticas ao regime numa forma alternativa de apropriação dos locais de visibilidade destinados às apresentações.

Já Regiane Augusto de Mattos, professora da PUC-Rio, desloca seu olhar ao norte de Moçambique e investiga a cidade suaíli e muçulmana da Ilha de Moçambique e adjacências, com suas confrarias e expressões culturais. Em “Batuques da terra, ritmos do mar: expressões musicais e conexões culturais no norte de Moçambique (séculos XIX-XX)”, apresenta uma sociedade multiétnica e com intensas relações com o universo do Índico. Temos, portanto, uma vez mais neste dossiê, o tema dos batuques e das danças rituais (especialmente o tufo) como eixo para investigar as relações de gênero, de parentesco e de poder nas diversas linhagens macuas do interior e suaílis do litoral. A autora esmiúça como os sons e as danças se particularizavam nas cerimônias das confrarias sunitas do mundo suaíli nos chamados “batuques das facas” ou “batuques de réua” e continuam a existir na Ilha de Moçambique onde realizou sua pesquisa de campo, com entrevistas e recolha de tradições orais.

Também relacionado ao universo do domínio colonial, o artigo de Eléusio Viegas Felipe, da Universidade Eduardo Mondlane, intitulado “Colonato do Sabié, 1956-1975: a questão da terra, mão de obra e crédito agrário”, muda de foco em direção às condições de trabalho existentes nas plantações e nas machambas dos colonos. Sob a capa de trabalhadores contratados, revela-se um dos aspectos mais violentos do colonialismo português. Na sequência da análise sobre os conflitos agrários entre colonos e populações africanas locais, as estratégias de recrutamento da mão de obra para o trabalho nas machambas, a produção do algodão e, por fim, os abalos sofridos pela economia camponesa antes e depois da independência de Moçambique, o artigo nos coloca em contato com o clima tenso da zona rural e as formas brutais de exploração do trabalho do “indigenato” de Moçambique, especialmente de crianças e adolescentes. A dramaticidade do enredo torna-se ainda mais intensa “ouvindo-se” os depoimentos pessoais mantidos nos acervos locais, nos quais se mesclam testemunhos da violência praticada com atos de resistência, sobretudo direcionados às machambas de cultivo de algodão.

No mesmo sentido de renovação de metodologias e de temas referidos aos estudos da África Austral, colocam-se duas biografias históricas sobre trajetórias de homens de ascendência europeia que viveram entre vários espaços africanos, coloniais e não coloniais.

O artigo de Gilberto da Silva Guizelin, da Universidade de São Paulo, “Uma luz sobre as relações Brasil-Moçambique nos Oitocentos: a missão consular de João Luiz Airoza”, focaliza as primeiras décadas do século XIX e introduz o tema das relações diplomáticas estabelecidas entre os dois países, mediadas pelas questões do tráfico de escravos. A partir de uma pesquisa realizada nos acervos brasileiros do Itamaraty sobre as trajetórias do cônsul do Brasil em Moçambique, entre 1827 e 1828, aborda a questão delicada da defesa do circuito negreiro na África índica. Em razão dessa documentação, de fato pouco explorada pela historiografia brasileira, surgem outros aspectos das relações Brasil-Moçambique: a intensidade do tráfico, a proteção diplomática brasileira aos negreiros e o desagrado da Coroa portuguesa, cindida em dois lados: o lado do rendoso e infame negócio e as rivalidades crescentes entre franceses e brasileiros.

O texto de Gabriela Aparecida dos Santos, da Universidade de São Paulo, “Corpos doentes, curas extraordinárias: a prática médica de Georges-Louis Liengme nos caminhos para Gaza (sul de Moçambique, 1891-1895)”, traz à tona a temática do deslocamento nas tensões e contraposições de saberes e práticas entre africanos e não africanos. Contempla a viagem de um médico suíço que viveu em uma colônia missionária de Moçambique e que se estabeleceu na corte de Gungunhana, entre os anos de 1893 a 1895, até ser expulso pelos portugueses, acusado de aliança com o inkosi de Gaza. Em seu relato, as descrições de “casos médicos” são acompanhadas por observações desqualificadoras e não muito lisonjeiras sobre as percepções africanas, e nelas se misturam tons de sarcasmo, de ironia e de arrogância. No entanto, em algumas circunstâncias, especialmente à época das guerras, a dualidade médico-feiticeiro ou feiticeiro-médico parece se dissipar, sobretudo no tratamento da doença advinda da morte de outrem no campo de luta.

Temos também um texto sobre a experiência de um grupo de mulheres em torno do xitique na sociedade contemporânea. Em “‘Uma maneira de passarmos a conviver’: descrição de um xitique familiar na cidade de Maputo, Moçambique”, Catarina Casimiro, da Unicamp, focaliza os xitiques — prática de poupança e crédito rotativo existente em diversas sociedades, tanto dentro como fora do continente africano. A partir de uma perspectiva interdisciplinar, Casimiro realizou uma etnografia atenta às concretudes históricas, esmiuçando as sociabilidades entre mulheres no contexto da prática. Ao longo do artigo, a autora nos apresenta as múltiplas dimensões do xitique: como locus de trocas e celebrações de diferentes naturezas (comerciais, de saberes, sentimentos etc.) e apoio mútuo entre mulheres. Além disso, são descritas as estratégias de organização e o funcionamento da prática. Com efeito, a leitura de seu artigo adensa e torna mais complexo nosso entendimento sobre a condição feminina em Moçambique justamente pela sinergia que consegue criar a partir do diálogo entre História e Antropologia.

Por fim, encerrando o dossiê temos o artigo “Moçambique marítimo” de autoria de Edward Alpers, professor da UCLA. Trata-se de tradução de um texto publicado originalmente em 2015 na revista Tsingy, da Universidade da Ilha de Reunião. Um estudo pensado na longa duração, grosso modo, do século XV à atualidade, que investiga as relações de Moçambique com o mar e com as sociedades que gravitam em torno do Índico. Nele é possível vislumbrar a pertinência de ampliar as barreiras das histórias locais em prol de histórias conectadas, atingindo outras interações e nelas as circulações e os movimentos que dinamizam o universo índico há muitos séculos. Alpers nos apresenta a história marítima de Moçambique em seus múltiplos contextos, desde a pesca artesanal até aquela feita em escala industrial, sem deixar de mencionar as políticas de proteção ambiental. Também estão contemplados os temas referentes à tecnologia da construção naval, a mobilidade populacional em direção ao litoral, chegando às dinâmicas das trocas de culturas, de bens – o comércio do ouro, do marfim e de escravizados, tecidos e outras mercadorias, realizado entre as sociedades que integram a grande unidade histórica que é o mundo índico.

***

O desenvolvimento dos estudos africanistas e a consolidação da área de História da África em nosso país trouxeram consigo novas reflexões atinentes à ciência histórica. A par de sua imbricação às questões sociais do país, às políticas públicas necessárias às mudanças no ensino e na aprendizagem, acirrou a discussão sobre a necessidade de fazer emergir e amplificar uma História até então oficialmente obliterada em suas dinâmicas e conexões, bem como aprofundar a atenção a novos temas e sujeitos históricos. Conforme nos lembra Trouillot,13 a história é uma síntese tensa entre menções e silêncios, entendendo o silenciamento como uma operação ativa e intencional. Assim, a ideia deste dossiê partiu da percepção de que os estudos africanos informam uma inflexão no campo das Ciências Humanas capaz de tornar mais complexos os conhecimentos acerca do continente e incrementar um estudo que rompa com pressupostos do colonialismo imperialista que marcaram sua gênese. Além disso, reconhece-se sua interferência direta na construção de um conhecimento de natureza interdisciplinar e a incorporação de novas tecnologias na produção do conhecimento a partir de uma interdisciplinaridade radical.

A chamada do dossiê resultou na recepção de textos de pesquisadores de diferentes disciplinas e centros de conhecimento do Brasil, de Moçambique e dos Estados Unidos que dialogam entre si a partir de suas áreas e temáticas de especialização: a História Social, a Antropologia e os Estudos Literários. Os artigos colocam em cena temas e perspectivas distintas de análise que fornecem um quadro multifacetado da história de Moçambique e da África Austral e introduzem clivagens pertinentes às nossas reflexões. Além de familiarizar os leitores com processos e práticas culturais pouco conhecidos, destrincham as relações entre história, memória e poder na construção das narrativas históricas; revelam a importância da cultura visual e da pesquisa empírica feita nos arquivos e em campo. Numa dimensão teórico-metodológica, a importância do cotidiano, da concretude das experiências históricas, da micro-história, das trajetórias de vida e biografias históricas para a percepção do não normativo, das formas não institucionais de resistência e de oposição, daquilo que se encontra subjacente.

Assim, convidamos a toda(o)s para a leitura do dossiê! Que o conjunto de artigos sirva como caminho inspirador para a pesquisa e a docência dos temas relativos à história de Moçambique, da África Austral e do continente africano

Notas

1 A Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, altera a LDB para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” e foi modificada pela Lei 11.645/2008 que incluiu a “História e Cultura Indígena”.

2 Parecer homologado. Relatora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva. Despacho do ministro, publicado no Diário Oficial da União de 19/5/2004. Resolução nº 1, de 17 de junho de 2004. Disponível em: htpps://portal.mec.gov.br>dmdocumets>cnecp_003. Acesso em 22/03/2018.

3 SILVA, Alberto da Costa e. Os estudos de História da África e sua importância para o Brasil. In: CEA/USP; CECHCA/IICT. A dimensão atlântica da África. São Paulo: Capes, 1997, p. 13-20.

4 Vale observar, nas relações entre academia, entidades civis e professores de ensino fundamental e médio, a preocupação sobre a formação em História da África e a multiplicação de cursos de extensão. No plano da pesquisa e da formação universitária, a proliferação de programas de pós-graduação com ênfase em estudos afro-americanos e africanos. Também sobre o “estado da arte” ver GUERRA, Márcia. História da África: uma disciplina em construção. Tese de doutorado, PUC/SP, 2012; SANTOS, Vanicléia S. A redescoberta da África no Brasil: as pesquisas em História da África o Brasil (1992-2012). In: Ensino superior e investigação científica no espaço da CPLP. Lisboa: AULP, 2012, p. 243-254. SILVA, Moisés Corrêa Fonseca da. Os estudos de África na historiografia brasileira (2003-2016). Dissertação de mestrado, UFF/Niterói, 2018.

5 COUTO, Mia. Prefácio. In: HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula – visita à História Contemporânea. São Paulo: Selo Negro, 2005, p. 11.

6 II CONFERÊNCIA DE INTELECTUAIS DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA. “A Diáspora e o Renascimento Africano”. Salvador, 12 a 14 de julho de 2006. Relatório final. Brasília: Ministério das Relações Exteriores, Fundação Alexandre de Gusmão, 2009.

7 Desde sua publicação na década de 1990, somente tivemos disponíveis, como volumes traduzidos para o português, os volumes 1 (introdutório) e o volume sobre o colonialismo (VII); a tradução e disponibilização de toda a coleção aconteceu a partir de 2010.

8 Associação Nacional dos Pesquisadores e Professores de História, Associação Brasileira de Antropologia, Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística.

9 Entre outros programas de intercâmbio, vale notar aquele que de certa forma deu origem a esse dossiê e do qual participaram as suas organizadoras: “Entre o Índico e o Atlântico: conexões históricas, circulações e desafios epistemológicos (Brasil e Moçambique, séculos XVIII e XIX)”, projeto integrante do Programa de Mobilidade Internacional Capes / AULP, Universidade de São Paulo, Universidade Eduardo Mondlane, 2013-2017, coordenação de Maria Cristina C. Wissenbach e Luisa Mutisse Chicamisse.

10 KI-ZERBO, Joseph. Os métodos interdisciplinares utilizados nesta obra. In: Idem (ed.). História geral da África, 1a e 2ª edição revista. Brasília: Unesco, 2010.

11 Vale lembrar alguns importantes professores-pesquisadores que orientaram diversos trabalhos relacionados a Moçambique, sobretudo a partir dos anos 1990: FRY, Peter (org.). Moçambique. Ensaios. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001.; FRY, Peter. A persistência da raça: ensaios antropológicos sobre o Brasil e a África Austral. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005; THOMAZ, Omar Ribeiro. O tempo e o medo: ensaios de Antropologia Política em Moçambique. Livre-docência. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – IFCH, Unicamp, Campinas, 2019. ZAMPARONI, Valdemir. De escravo a cozinheiro. Colonialismo e racismo em Moçambique. Salvador: EDUFBA; Ceao, 2007.

12 SUBRAHMANYAM, Sanjay. Connected histories: notes towards a reconfiguration of early modern Eurasia. Modern Asian Studies, vol. 31, n. 3, Cambridge: University Press, 1997, p. 735-762.

13 TROUILLOT, Michel-Rolph. Silenciando o passado: poder e a produção da História. Curitiba: Huya, 2016.


Organizadores

Juliana Paiva Magalhães – Pesquisadora Associada do Núcleo de Apoio à Pesquisa Brasil-África, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – FFLCH/USP. E-mail: jupaivamagalhaes@gmail.com

Lia Dias Laranjeira – Professora do Instituto de Humanidades e Letras da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab). E-mail: lialaranjeira@gmail.com

Maria Cristina C. Wissenbach – Professora do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – FFLCH/USP. E-mail: criswis@usp.br


Referências desta apresentação

MAGALHÃES, Juliana Paiva; LARANJEIRA, Lia Dias; WISSENBACH, Maria Cristina C. Apresentação. Revista de História. São Paulo, n. 178, 2019. Acessar publicação original [DR]

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