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Moça educada, mulher civilizada, esposa feliz: Relações de Gênero e História em José de Alencar | Ana Caroline Eiras Coelho Soares

Publicada originalmente no Brasil em 2012, a obra expõe, em seus 4 capítulos, as representações femininas presentes nas obras literárias do século XIX, mais especificamente, da autoria de José de Alencar, lançadas no Rio de Janeiro. Os romances Lucíola, Diva e Senhora demonstram os elementos que Soares pretende analisar, dos quais se ressalta o papel do amor e da felicidade conjugal como atribuições da mulher necessárias para a solidez do casamento. A autora analisa também o papel que a mulher desempenhava na sociedade no período em que a obra foi escrita e o caráter pedagógico dessas obras. Cumprindo esses objetivos, a autora relaciona a literatura com o “espírito da época” e a transformação do conceito “civilização” desde aquele momento histórico.

O momento histórico Brasil Império, especificamente a partir de 1860, data da primeira publicação de José Alencar analisada nesse trabalho, é marcado por homens da “elite dominante” que absorveram, refletindo no país, hábitos e costumes europeus. Deste modo, a elite imperial acabou por criar uma série de pontos de semelhança que ficarão marcados na literatura: educação, vida profissional, indumentária, regras de etiqueta e bens. Essa homogeneização será relacionada com a construção e modificação do conceito de “civilização”, e será cobrada da mulher que pretender ser civilizada como pré-requisito para tornar-se uma mulher feliz através do casamento.

Antes de entrar no primeiro capítulo encontramos os referenciais teóricos para esse trabalho. Para pensar a história da escrita, da leitura e dos livros, Roger Chartier e Michel de Certeau; para pensar o processo civilizador e a trajetória do conceito de civilização, Norbert Elias; para utilizar a categoria de análise de gênero, Joan Scott. Os autores Humberto Fernandes Machado e Lúcia Maria Bastos das Neves serviram como referência para a análise dos aspectos sociais e culturais do Brasil no século XIX, bem como Adolfo Morales de Los Rios Filho, que sinalizou as características geográficas e Capistrano de Abreu, as políticas. Embora considere os aspectos políticos do período, a autora esclarece que

não é intuito desse trabalho analisar […] viés nacionalista dos romances propostos como objeto de estudo, mas as relações de poder e força que se estabelecem nas tramas, apresentadas como naturais entre os gêneros e que reforçam a lógica dos espaços sociais definidos como “lugar de homem” e “lugar de mulher” na sociedade.[1]

No primeiro capítulo, intitulado “Falando um pouco de Alencar…” encontramos a trajetória da vida profissional, intelectual e privada de José de Alencar e a demonstração de como as sociabilidades estabelecidas na época tinham reflexo na sua obra.

Tema central desse trabalho, as relações de gênero e naturalização das características nas obras literárias se evidenciam até mesmo na personalidade de Alencar e em como ele descrevia seus dons. Dizia que herdara a sensibilidade feminina da literatura de sua mãe e a virilidade masculina do pai para a política. Essas questões transpassam sua obra através da relação de civilidade com boas maneiras e do tom educador e moralizador de seus textos:

Em Lucíola encontrava-se a maioria das citações de lugares e bairros da Corte, o que ocorreu também, em termos de referências, no romance Diva. É em Senhora que se encontra uma peculiaridade interessante: a Corte aparece principalmente ao se fazerem referências à localização dos logradouros, mas Aurélia não circula por ela. O lugar da esposa ideal é dentro de casa, não distante dos divertimentos, uma vez que pode e deve oferecer jantares e bailes, mas seu espaço de circulação se restringe ao âmbito privado, onde se passa a maior parte do desenrolar da obra centrada nas questões psicológicas e comportamentais do casal.[2]

No segundo e no terceiro capítulo, Soares irá analisar o enredo e construção das personagens principais das obras Lucíola, Diva e Senhora, respectivamente, Lúcia/Maria – pois a personagem possuía pseudônimos -, Emília e Aurélia e, como Alencar fazia de suas obras uma pedagogia do casamento, pretendendo direcionar os leitores e leitoras a um estilo de vida louvável pela inspiração das protagonistas exemplares. “Ou seja, na elaboração de suas obras, a intencionalidade do discurso fazia parte de […] disseminar um padrão de comportamento e de atitudes considerados ‘civilizados’, criando nos próprios indivíduos a noção de bons costumes”.[3]

A história de Lúcia foi primeiramente pensada para o teatro na peça “As asas de um anjo”, onde uma jovem, Carolina, que foi induzida a prostituição, encontra a redenção para sua vida imoral apenas na maternidade. Esse primeiro enredo evidencia como Alencar percebia o evento do casamento na vida da mulher e o instigou a manter e aprofundar a história num semelhante desfecho na literatura publicada em 1962, Lucíola. O subtítulo de Lucíola, “As brancas asas de Lúcifer” fazia referência ao nome, Lúcia – o feminino de Lúcifer – e a condição de pureza das asas brancas em um anjo corrompido pela prostituição, deixando clara sua ligação com a peça teatral vetada anos antes. A personagem principal, com apenas 19 anos de idade, é uma das cortesãs mais ricas do Rio de Janeiro. É bela e refinada, sendo cobiçada pelos homens e invejada pelas mulheres. Conhece o protagonista, Paulo, um jovem ingênuo e virtuoso de 25 anos, recém-chegado ao Rio de Janeiro, através do amigo Sá, que os apresenta. Mesmo na condição de prostituta, Alencar faz questão de ressaltar a pureza de alma de Luciola, que apenas no final da sua vida conta para Paulo que ingressou na vida de meretriz por um mais nobre objetivo: ajudar a família pobre e enferma, desvendando também seu verdadeiro e sugestivo noma: Maria.

O enredo faz questão de deixar bem definidos os papéis da mulher e do homem dentro da relação. Como prostituta, e sendo tão bela, Lúcia se tornou uma mulher poderosa e com muito dinheiro. Paulo era rapaz pobre e simples e acabou por aceitar uma condição de subordinação inicialmente. Porém, o amor da mulher faz com que aos poucos cada um assuma seu “devido lugar”. Nesse romance, Soares identifica o princípio moralizador da obra: “Apenas as mulheres decentes e civilizadas poderiam amar e ser felizes, por também serem amadas e, principalmente, casadas.”[4] e o papel heroico do homem, pois “foi a superioridade do coração masculino que permitiu a sobrevivência desse anjo decaído”,

Em outros termos, mostra Alencar que a mulher decente e civilizada não deve apenas ser virtuosa, mas também e sobretudo, aparentar toda ou mais virtuosidade que possua, através de um conjunto de regras de conduta que ressaltem suas qualidades. Assim, até Lúcia, o anjo enlameado, poderia almejar os méritos de supremos da fêmea bem comportada, quais seja a pureza feminina que que se realiza pelo matrimônio: ser esposa e mãe. O homem, por sua vez, seria digno demonstrando sua honestidade e retidão. […] Paulo era homem justo, honesto, capaz de redimir Lúcia e emparar-lhe.[5]

Dois anos depois, em 1964, Alencar publica Diva. A personagem principal é a encarnação das virtudes. Mesmo lindíssima e recebendo sempre os galanteios de todos ao redor, era recatada e civilizada. Emília deixa evidente seu completo estado de pureza ao rejeitar Augusto ao mesmo tempo que o amava, por motivo de pudor. O jovem médico havia visto a moça em trajes íntimos quando esta era ainda uma criança, pois foi acometida de uma enfermidade crônica. No desfecho, finalmente casam-se, afinal, é o casamento a glória máxima do amor, principalmente quando celebrado por jovens virtuosos.

Passados mais de dez anos, entre suas últimas publicações, está Senhora, lançada em 1975. Embora distancie-se em outros termos das personagens de Lucíola e Diva, Aurélia Camargo aproxima-se da primeira ao viver na prática a máxima “dinheiro não compra felicidade”. Nesta última trama, Senhora, Aurélia precisa aprender como viver dentro de um casamento já iniciado. O turbilhão de sentimentos que as moças abarcavam não deveria ser vivido sem limites, é preciso o cumprimento dos comportamentos civilizados. No caso dessa terceira obra analisada, “o importante para a leitora era aprender como se portar dentro do matrimônio, espaço este primordialmente íntimo, mesmo que frequentando e oferecendo festas e bailes. A Senhora é uma mulher de casa e não da rua”. [6]

O quarto capítulo dedica-se a analisar dois periódicos que circulavam no período dos romances analisados: o Jornal das Famílias e o Jornal das Senhoras. Nesses periódicos analisados, percebe, mesmo no Jornal das Senhoras, onde a edição é feminina, propaganda que reafirma os papéis naturais dos sexos e a dominação masculina. Identifica o objetivo de tais escritos com a “educação moral” e demonstra isso pelo papel que as leitoras desempenhavam naquela época. Assim como nos romances de José de Alencar, a escrita dos periódicos era repleta de mulheres exemplares, inspiração para a moça educada, mulher civilizada e esposa feliz, confirmando e reafirmando os papéis sociais de cada gênero:

Dessa maneira o leitor era informado de que o homem deveria trabalhar, ler jornais, conhecer livros e obras clássicas, saber sobre política e economia, e a mulher deveria saber organizar uma casa, suas refeições e comemorações, igualmente saber ler e conversar sobre o assunto, tocar piano e dançar. Sobretudo, essa ordem deveria ser mantida pela felicidade sentida por cada um que a exercia e, dessa forma, o amor poderia prevalecer.[7]

As Considerações Finais iniciam a pagina 149, e nela a autora reapresenta sinteticamente suas principais conclusões. Tanto as obras analisadas quando os periódicos homogeneamente demonstram quais eram os aspectos culturais da época e como eles eram reforçados e reproduzidos. Reconhecendo que o mais vulgar dos anseios humanos passa pela felicidade, Alencar aproveita-se disso para aplicar a “pedagogia do casamento”.

Dentro da concepção de felicidade dos romances de José de Alencar, a mulher que desejasse ser feliz e seguisse a trilha ensinada por Lucíola, mulher civilizada; Emília, moça educada e Aurélia, a esposa feliz, não teria certamente dificuldade em ser bem sucedida em seu intuito.[8]

O casamento ideal deveria sempre ser almejado e conquistado, na medida do possível. Nele, o homem exerce sua natural característica de poder viril, e a mulher, sua submissão condescendente. Sem o casamento, glória máximo do amor, e posteriormente a prole, era impossível uma mulher decente ser feliz. “Se Lúcia é o anjo que toda mulher deve ser e Emília é a rainha dos salões, altiva porém humilde e concordata a seu esposo e marido, Aurélia é o exemplo da esposa perfeita.”[9]. Enfim, para Alencar o caminho para se tornar uma esposa feliz passa necessariamente pela educação e civilidade.

Notas

1. SOARES. Moça educada, mulher civilizada, esposa feliz, p.41.

2. ______. Moça educada, mulher civilizada, esposa feliz, p.51.

3. ______. Moça educada, mulher civilizada, esposa feliz, p.43.

4. SOARES. Moça educada, mulher civilizada, esposa feliz, p.66.

5. ______. Moça educada, mulher civilizada, esposa feliz, p.73.

6. SOARES. Moça educada, mulher civilizada, esposa feliz, p.110.

7. ______. Moça educada, mulher civilizada, esposa feliz, p.118.

8. ______. Moça educada, mulher civilizada, esposa feliz, p.29.

9. SOARES. Moça educada, mulher civilizada, esposa feliz, p.109


Resenhista

Ana Caroline Campagnolo Bellei – Mestranda na Linha de Pesquisa Culturas Políticas e Sociabilidade Programa de Pós-Graduação em História UDESC. E-mail: anacampagnolo@hotmail.com


Referências desta resenha

SOARES, Ana Caroline Eiras Coelho. Moça educada, mulher civilizada, esposa feliz: Relações de Gênero e História em José de Alencar. Bauru, SP: Edusc, 2012. Resenha de: BELLEI, Ana Caroline Campagnolo. Temporalidades. Belo Horizonte, v.6, n.2, p.266-269, maio/ago. 2014. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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