Debruçar-se sobre livros centenários não nos permite acessar o mundo de onde vieram, a menos que consigamos traçar a história de suas formas de existência ao longo do tempo, ou seja, de suas diferentes vidas. Mas quantas vidas afinal pode ter uma obra? De acordo com Roger Chartier, a Brevissima relacíon de la destruycíon de las Indias, de Bartolomé de las Casas, por exemplo, tem sete vidas, referentes às sete diferentes edições publicadas em circunstâncias e espaços distintos entre os séculos XVI e XIX. E quando uma obra ganha outras formas de circulação, ao ser representada, adaptada, reescrita? Daí suas numerosas vidas podem garantir-lhe a posteridade ou mesmo a imortalidade. Em Mobilidade e materialidade. Traduzir nos séculos XVI e XVII, publicado no Brasil em 2020 pelas editoras Argos e EDUFBA, com tradução de Marlon Salomon e Raquel Campos, Roger Chartier oferece uma nova faceta de seus estudos realizados na Biblioteca da Universidade da Pensilvânia, onde tem atuado como professor visitante. Em seu livro intitulado La main de l’auteur et l’esprit de l’imprimeur, de 2015, Chartier apresentou análises das coleções consultadas nessa mesma biblioteca, a partir das quais destacou o papel do autor e do impressor nas significações adquiridas pelas obras. No livro recentemente traduzido no Brasil, são a materialidade e a mobilidade de obras que ocupam o plano central de sua investigação, sendo realçadas na própria organização do volume, que conta com cinco capítulos distribuídos sob as seguintes designações: Publicar; Representar; Traduzir; Adaptar e Epílogo: reescrever.
Assim, no primeiro capítulo, As sete vidas da Brevissima relacíon de la destruycíon de las Indias, Chartier analisa sete diferentes edições, feitas entre 1552 e 1822, desse texto do frade espanhol Bartolomé de las Casas, demonstrando o quanto o ato de publicar interfere na apropriação de obras por diferentes públicos, que lhe atribuem significados ancorados em suas expectativas e crenças. Nesse sentido, a circulação inicial da Brevissima relacíon de la destruycíon de las Indias tinha por intento denunciar ao rei os problemas decorrentes das regras de colonização vigentes, que não eram capazes de garantir a catequização dos indígenas e de coibir a destruição de suas comunidades, sua escravização e sua dizimação. O texto, que tinha em sua origem o propósito de aperfeiçoar as práticas colonizadoras segundo valores católicos, foi traduzido em países de maioria protestante de forma a não apenas expor as crueldades cometidas pelos católicos, reiteradas em algumas edições pelas gravuras, como também a unir a população contra a Coroa espanhola, para que não lhe fossem infligidos os mesmos suplícios. Chartier contempla seu objeto por diferentes perspectivas, associando o estudo da materialidade com a análise textual, ao investigar a mobilidade espacial da Brevissima relacíon de la destruycíon de las Indias por meio da publicação de traduções em diversas cidades da Europa e ao interpretar os sentidos adquiridos pelo texto em suas diferentes encarnações materiais. Ele revela, assim, o quanto religião e política estão de mãos dadas nas “vidas” dessa obra de Las Casas.
Muitos escritos, no entanto, não se destinam necessariamente à publicação, mas à representação. No capítulo intitulado Representar, Chartier desenvolve um estudo comparativo entre a peça de Lope de Vega, Fuente Ovejuna, de 1612, e a crônica que lhe deu origem, de autoria de Francisco de Rades y Andrada, publicada em 1572. A Chronica de las tres Ordenes y Cavallerias de Santiago, Calatrava y Alcantara narra, em um de seus capítulos, a revolta ocorrida em 1476 na villa de Fuente Ovejuna, em que seus habitantes, cansados da tirania de seu senhor, o comendador Fernán Gómez de Guzmán, o assassinam, enfrentam, em seguida, a tortura pelo juiz investigador do caso e obtêm finalmente a suspensão da investigação pelos soberanos. Chartier apresenta a narração do episódio na crônica, sua repercussão nos séculos posteriores até sua apropriação por Lope de Vega, que se vê diante de um assunto paradoxal, já que a lealdade monárquica, celebrada pelo dramaturgo, não admitiria revoltas contra as autoridades constituídas. Chartier demonstra as estratégias e soluções narrativas adotadas por Lope de Vega para resolver a questão, as quais provocam distanciamentos da peça em relação à crônica, como o destaque da tirania e da infidelidade cometidas pelo Comendador, da bravura das mulheres da cidade, além da criação de desfechos mais heroicos, não condizentes com a narrativa da crônica, que exaltam a lealdade do povo de Fuente Ovejuna à coroa.
Essa análise da crônica e da peça constitui apenas o introito e o desfecho do artigo. Chartier suspende o cotejo para se debruçar sobre as ações de Lope de Vega na edição de suas peças e chega a resultados muito eloquentes para a compreensão das preocupações de autores no delineamento de sua carreira, de sua consagração e na preservação de sua obra para a posteridade. Lope de Vega era contrário à publicação de suas peças, por entender que o gênero dramático deveria ser destinado exclusivamente à representação e não à leitura. Tendo alcançado reconhecimento no teatro, Lope de Vega viu suas peças serem alvo de espoliação, ao serem publicadas sem autorização, transcritas com erros e modificações pelos chamados memoriones, que assistiam às encenações e buscavam recompô-las de memória. As peças eram também cedidas aos editores pelos próprios diretores das companhias teatrais que haviam adquirido o direito, junto ao autor, de representá-las. De toda forma, o material não era preparado para sua impressão, o que causou inquietações no autor, para quem suas obras eram publicadas sem qualquer zelo e comprometiam sua reputação. O êxito desse empreendimento editorial era tamanho, que peças de terceiros passaram a integrar edições não autorizadas das obras de Lope de Vega. Chartier demonstra como, lutando contra esse movimento, o dramaturgo espanhol passou a atuar na publicação de suas peças, apropriando-se desses formatos editoriais dos volumes não autorizados, mas já familiares ao público, e buscando favorecer sua recepção com a escrita de prefácios, que tencionavam ainda dirimir os danos causados pelos textos corrompidos tornados públicos.
A reputação de autores, preocupação constante de Lope de Vega, constrói-se não apenas com a circulação e a acolhida local de obras. Ela demanda alcance internacional, assegurado por meio da tradução. Assim como a materialidade, o ato de traduzir também é capaz de atribuir novos sentidos às obras e dar-lhes novas vidas, ao torná-las legíveis na língua-alvo e coaduná-las com o espaço de acolhida. No capítulo Traduzir, Chartier expõe as distinções entre o Oráculo Manual y Arte de Prudencia (1647), do jesuíta Baltasar Gracián, e sua versão francesa, publicada em 1684, que tem como título L’Homme de Cour. Como se vê, a escolha do título significa o primeiro movimento de diferenciação da tradução em relação à obra original. Essa coletânea de aforismos de Gracián, que se propunha a oferecer regras de conduta aos indivíduos de modo geral, tem sua destinação restringida ao homme de cour, ou seja, ao cortesão, na tradução de Amelot de La Houssaie, que executou deliberadamente essa modificação por entender, segundo Chartier, que os preceitos de Gracián são mais necessários na corte do que em qualquer outro espaço, pois a ela é que pertenciam as pessoas devidamente habilitadas a acolhê-los. A elevação do estilo de Gracián, apesar de tido como lacônico, não permitiria a vulgarização de seus escritos, ainda que fossem acessíveis em forma impressa. Esse tipo de difusão gerava desconfiança em meio à elite letrada, pois, a seu ver, a propagação de impressos corromperia a qualidade dos escritos, que passavam a ser lidos e interpretados por pessoas sem preparo suficiente para entendê-los. Essa destinação ao homem da corte na tradução de Amelot, que Chartier chama de “curialização”, repercutiu, de acordo com o estudioso, em outras traduções realizadas posteriormente em países europeus, que tomaram a versão de Amelot como referência. Chartier lembra ainda que Norbert Elias (citado por CHARTIER, 2020, p. 111-112), em seu clássico estudo sobre a corte de Louis XIV, cita justamente a tradução de Amelot, sendo, por isso, levado a considerar a obra de Gracián como “o primeiro manual sobre a psicologia da corte”, quando na verdade o termo “corte” sequer aparece na obra original.
Chartier empreende, também nesse capítulo, uma análise comparativa, desta vez entre a tradução e o texto original, a fim de identificar dificuldades de tradução encontradas e as soluções adotadas ou interferências realizadas por Amelot, o que incide nos sentidos da obra. Chartier estende seu olhar para além da primeira circulação da tradução de Amelot e as versões contemporâneas em outros idiomas. Ampliando o recorte temporal, o historiador identifica o que chama de “descurialização” da obra de Gracián, reivindicada pelos tradutores de novas versões em inglês e até mesmo em francês, ao rejeitarem o título adotado por Amelot por entenderem que a obra do jesuíta espanhol mereceria ser lida por todo homem de bom senso e de inteligência. Ainda que François de Courbeville, tradutor da nova versão francesa, renegue Amelot e busque resgatar Gracián como principal referência, sua tradução, como mostra Chartier, também revela dificuldades para verter termos e expressões. As soluções propostas por Courbeville continuam conferindo outros sentidos ao texto, o que leva Chartier a concluir jocosamente que não era fácil traduzir Gracián, quando, na verdade, o estudioso demonstra, ao longo do artigo, que o próprio ato de traduzir está intimamente ligado à ressignificação de textos e à criação de novas formas de recepção e interpretação no espaço e no tempo de acolhida.
Escapando desse impasse entre fidelidade e criação, a adaptação oferece outra nova existência à obra, reinventada com recurso a linguagens e repertórios distintos. No capítulo Adaptar, Chartier traz Dom Quixote literalmente à cena, por meio da peça Vida do grande Dom Quixote de la Mancha e do gordo Sancho Pança, de Antônio José da Silva, encenada por marionetes no Teatro do Bairro Alto. Chartier inscreve a peça numa tradição de adaptações do romance de Cervantes para o teatro e de encenação teatral de bonecos. No entanto, o ponto forte do capítulo é sua intervenção num debate de longa data, referente à presença nas obras de Antônio José da Silva de traços de sua vida pessoal, atormentada pela perseguição Inquisitorial. Chartier menciona escritores e estudiosos que se posicionaram contrária ou favoravelmente a essa hipótese, entre eles Machado de Assis, que não concordava que a obra desse dramaturgo português contivesse elementos de denúncia e contestação. Chartier não partilha da mesma opinião e enumera alguns distanciamentos realizados por Antônio José da Silva em relação ao romance que deu origem à peça e que sugerem formas de crítica social, sobretudo à justiça de seu tempo, pela qual ele e sua família se viram perseguidos.
Dom Quixote é ainda assunto do capítulo final, Epílogo: Reescrever, em que a reescrita desse romance por Borges, ou melhor, por Pierre Menard, narrada no conto Pierre Menard, autor do Quixote, ilustra as reflexões de Chartier sobre a mobilidade de textos, já que, ao buscar escrever seu Dom Quixote “palavra por palavra e linha por linha” (BORGES, 2007, p. 38) tal qual o original, Menard, ainda assim, chega a uma obra diferente da de Cervantes. Isso porque o novo Quixote é recontado pela perspectiva de um escritor do século XX, que o situa em nova realidade e em outro momento histórico, atribuindo-lhe possibilidades interpretativas distintas do original.
O Dom Quixote de Cervantes, o de Pierre Menard, o de Antônio José da Silva; suas edições do século XVII, do XIX ou contemporâneas; suas traduções, adaptações, reescritas testemunham o que Chartier já dizia em A ordem dos livros (1999, p. 9): “As obras – mesmo as maiores, ou, sobretudo, as maiores – não têm sentido estático, universal, fixo”.
Em entrevista concedida em 2016 aos tradutores do livro em questão, professores Marlon Salomon e Raquel Campos, Roger Chartier revisitou o percurso de sua formação e os debates históricos que repercutiram ao longo de sua trajetória, oferecendo assim elementos que podem contribuir para a compreensão do lugar desse livro no conjunto de sua produção bibliográfica. Na ocasião, Chartier relembrou a origem do conceito de representação, proveniente do âmbito da sociologia, do qual se apropriou a partir da leitura, sobretudo, de Pierre Bourdieu e de sua colaboração com esse sociólogo (CHARTIER, 2016, p. 302). Segundo Chartier, esse conceito permite perceber as descontinuidades dos discursos suscitados pelos textos ao longo da história e os elementos em torno desses textos que provocam suas mudanças de sentidos. Para tanto, o historiador insiste na importância dos “[e]studos de casos, mas mais bem equipados, se pensarmos que se deve estudar não somente os textos em sua dimensão textual, mas também as formas materiais de sua inscrição e circulação e, se for possível, as formas de sua apropriação e interpretação”. (CHARTIER, 2016, p. 305).
Os cinco estudos de caso presentes em Mobilidade e materialidade dos textos. Traduzir nos séculos XVI e XVII são resultado desse seu anseio de conciliar a análise do texto e a de sua inscrição material, pela interferência mútua desses dois aspectos nos sentidos produzidos pela obra. O historiador reconhece inspirar-se em abordagens que se dedicam às formas físicas, como as propostas por McKenzie, de quem Chartier é um admirador; aos dados de circulação e recepção, inicialmente explorados pelo historiador Henri-Jean Martin (CHARTIER, 2014, p. 19-20), ou àquelas que se centram no texto, próprias da Literatura (ROCHA, 2011, p. 9-10), além de fazer referência à paleografia e aos estudos de Armando Petrucci sobre as mutações da escrita nos diferentes suportes (CHARTIER, 2014, p. 21). Suas buscas metodológicas levaram-no à redação dos célebres ensaios sobre a Bibliothèque bleue, as peças de Shakespeare, os contos de Borges e Dom Quixote, estes dois últimos também presentes no livro. No entanto, a reincidência de autores e obras em sua produção bibliográfica não segue uma trajetória planejada, já que, como o próprio Chartier (2016, p. 306) pondera, as pesquisas resultam de oportunidades de se deparar com os documentos: “Não há necessariamente uma coerência, tudo isso é também o resultado de oportunidades – que começam com as oportunidades da documentação”. Como Chartier explica, seu acesso a uma das bibliotecas da Universidade da Pensilvânia proporcionou-lhe o desenvolvimento de pesquisas sobre os documentos disponíveis em seu acervo, inexistentes em outras localidades. Essa circunstância permitiu-lhe a escrita desse e de outros livros sobre o material consultado.
Em Mobilidade e materialidade dos textos. Traduzir nos séculos XVI e XVII, Chartier declina cinco modos de reapropriação ou de reescrita de obras, com estudos de caso que descortinam os meandros da publicação, tradução, adaptação, circulação e leitura no referido período e que inspiram os estudiosos e pesquisadores a refletirem sobre as obras considerando o elo estrito entre criação e forma física na produção de sentidos. A leitura desse livro é de interesse ainda para o público não especializado, pela maneira atrativa como Chartier faz emergir, por meio de análise meticulosa dos documentos, a história da materialidade dos textos e de suas diversas possibilidades de reinvenção, que lhes propiciam suas sucessivas vidas.
Referências
BORGES, Jorge Luis. Ficções São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
CHARTIER, Roger. A ordem dos livros Leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: Ed. UnB, 1999.
CHARTIER, Roger. A mão do autor e a mente do editor São Paulo: Ed. Unesp, 2014.
CHARTIER, Roger. Do mundo como representação à multiplicidade das formas de representação do passado. Entrevistadores: Marlon Solomon; Raquel Campos. História da Historiografia, v. 9, n. 22, p. 296-319, dez. 2016.
CHARTIER, Roger. La main de l’auteur et l’esprit de l’imprimeur XVIe-XVIIIe siècle. Paris: Gallimard, 2015.
CHARTIER, Roger. Mobilidade e materialidade dos textos Traduzir nos séculos XVI e XVII. Chapecó: Argos; Salvador: EDUFBA, 2020.
ROCHA, João Cezar de Castro (Org.). Roger Chartier – A força das representações: história e ficção. Chapecó: Argos, 2011.
Resenhista
Valéria Cristina Bezerra – Universidade Federal de Goiás (UFG). Faculdade de Letras https://orcid.org/0000-0003-0614-7356 E-mail: valeria_bezerra@ufg.br
Referências desta Resenha
CHARTIER, Roger. Mobilidade e materialidade dos textos. Traduzir nos séculos XVI e XVII. Chapecó: Argos. Salvador: EDUFBA, 2020. Resenha de: BEZERRA, Valéria Cristina. As vidas das obras: Reinvenção e circulação de textos. Varia Historia. Belo Horizonte, v. 38, n. 76, jan./abr. 2022. Acessar publicação original [DR]
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