Mobilidade discursiva: o periodismo político em Goiás | Cristiano Alencar Arrais

O período conhecido na história do Brasil como República Velha é recheado de acontecimentos e fatos que perpassam por uma prática oligárquica de governo. Nessa prática, a questão social é tratada como caso de polícia: greve dos trabalhadores ressoando de sul a nordeste, predomínio agrário na economia nacional, esquema político de continuísmo e manutenção de poder, e assombro da instabilidade econômica mundial. Estes fatores, além da disputa pelo controle do país, concentrada nas regiões Sul e Sudeste, somados à insustentabilidade do modelo liberal, deram vazão ao sentimento que culminou na Revolução de 1930.

Apesar do foco central dos olhares estarem inclinados para o que acontecia nos estados do Sul e do Sudeste, a força desse clima reverberava em todos os entes da federação. Em Goiás, a situação política que há quase duas décadas encontrava- se sob a chefia dos Caiados, tinha no seu bojo uma oposição que avistava no momento revolucionário, a oportunidade para a tomada de poder, e a renovação política no estado. Todavia, este movimento encontrou um governo de situação forte sustentado por uma política de acordos e alianças direcionada a manutenção de poder dos coronéis, que suprimiu os revoltosos, prendendo seu líder, Pedro Ludovico, que só foi solto após a notícia de que a revolução triunfara no eixo político brasileiro.

Debruçado sobre esse rico panorama histórico, grande parcela dos estudos da história regional goiana tem se dedicado a pesquisar o período que antecede a Revolução de 1930, bem como os acontecimentos posteriores a ela, tratando-os como epicentro de mudança das práticas políticas, e ruptura com o tempo passado. Pedro Ludovico, líder da oposição que depois do golpe revolucionário foi nomeado interventor em Goiás, é o representante deste novo tempo e o fundador de Goiânia, a nova capital que se constituiu como símbolo de modernidade e luta pelo progresso.

Neste fecundo cenário histórico, houve uma busca por compreender o processo de mudança política e a construção de um novo regime. Pesquisadores desse período guiaram-se através da tentativa de enxergar as diferenças entre os grupos políticos que circulavam a esfera administrativa do estado, acompanhando os marcadores discursivos criados pelos seus próprios protagonistas. Pode-se observar, entretanto, que grande parte da história política de Goiás foi escrita sem aprofundamento pelos que viveram e leram o período. Isso porque muitos questionam até que ponto as diferenças entre as práticas da política que foi sucedida e a política que sucedeu eram de fato diferentes. É neste âmbito que se faz presente a indagação do livro Mobilidade discursiva: o periodismo político em Goiás (2013), de Cristiano Alencar Arrais: Quais as mudanças efetivas promovidas pela Revolução de 30?

Arrais, nessa obra, busca expor ao leitor como ler o período político goiano compreendido entre as décadas de 20 a 30 de outra maneira. Sua obra, que contorna a história política e intelectual em Goiás, é um convite para revisitar a história goiana e seus atores, que fizeram do tempo passado os meandros da memória no presente. Ao remeter aos velhos pressupostos metodológicos de uma história política que canonizou heróis e demonizou vilões, Mobilidade discursiva é um livro que defronta temas caros à historiografia goiana, como a Revolução de 30, as figuras míticas de Pedro Ludovico e Antônio Ramos Caiado, a construção de Goiânia, e a consagração da modernidade em Goiás.

O autor examina com rigor a maneira com que foram edificados os discursos construídos tanto pela situação, quanto pela oposição política nos periódicos goianos, e como esses discursos da imprensa implicitamente apresentam o que ele denomina de “mobilidade discursiva”.

[…] processo de mediação de certas experiências ideológicas as relações de força já estabelecidas, fenômeno esse que provoca a extinção ou, no mínimo, a fluidez de seus campos e age como componente estrutural de determinada cultura politica, inovando sem necessariamente romper com o estabelecido. […] tal mobilidade esta linguisticamente concretizada nos periódicos locais que apoiavam ou criticavam o governo no período em questão. (ARRAIS, 2013, p.19).

Arrais utiliza na composição de sua obra os jornais como fonte e ao mesmo tempo como objeto, percorrendo um complexo caminho metodológico no alcance de pensar a mudança na operação historiográfica. Nesse sentido, o historiador dedica-se a escrever uma reflexão da história política goiana que utiliza o material produzido pela imprensa. Com isso ele toma para si o desafio de ter um cuidado preciso para não cair em armadilhas que façam com que seu ponto de vista seja parcial, ou sua interpretação replique aquilo que já foi dito.

É notório que a imprensa goiana, tal como a brasileira nas primeiras décadas do século XX, refletia de modo geral explicitamente o aparelhamento e o posicionamento político-ideológico dos partidos. Os jornais, em sua grande maioria partidários, buscavam defender seus correligionários e atacar seus adversários, de forma que o público leitor soubesse claramente o posicionamento político do periódico. Esta prática foi denunciada inclusive por um dos articulistas que viveu e escreveu na impressa desse período em Goiás, Zoroastro Artiaga2.

Arrais, em seu livro, teve a preocupação de conjecturar esta perspectiva e fazer uma leitura cautelosa diferente daquela feita pelo leitor que teve acesso ao jornal no momento em que foi publicado. Seguindo critérios rigorosos de análise, ele examinou as fontes e ficou atento para perceber nas entrelinhas as construções intelectuais que informou e formou opiniões.

Ao recorrer à imprensa como documento histórico, Arrais teve clareza de observar que a mesma não se representa apenas como fonte de informação sobre o período investigado, mas também como representação do pensamento, da opinião, da atitude de um tempo que passou. Com isso ele compreende esse conjunto como portador de intenções e visões de mundo, algo essencial para a construção intelectual dos atores envolvidos com a questão política goiana.

O cuidado metodológico empreendido para não se deixar seduzir pelo fetiche da fonte e não conceber a informação do acontecido, sem antes vincular a elaboração dos jornais a uma rede intelectual interessada em dar um sentido próprio ao que acontece, conduz o leitor historiador de Mobilidade discursiva a uma aula de tratamento das fontes jornalísticas para escrita da história. O livro também propicia ao leitor interessado em história de Goiás uma leitura crítica para enxergar a capacidade e a competência da imprensa em administrar e formar opinião, e influir diretamente na cultura política do estado.

Mobilidade discursiva mergulha num período da história goiana em que os jornais atuavam como palco de manifestações e disputas políticas, e suas páginas sintetizavam o combate pelo poder entre grupos devidamente preparados para construir marcadores discursivos, que se sustentavam dentro de um escopo partidário. Tudo isso estava ligado diretamente ao modo e à prática da política oligárquica vigente no período.

O ambiente carregado de intriga e autoritarismo, predominante no hinterland3 comandado pelo caiadismo, tinha nos jornais o endosso de uma relação que caracterizava uma prática política partidária de correligionários. Essa conduta na imprensa goiana foi recorrente desde o final do século XIX e largamente utilizada no período em que os Bulhões eram situação, em seguida com os Xavieristas e, posteriormente, com os Caiados e sucessivamente com os Ludovicos. Os estudos históricos de Moraes (1974) e Freitas (2009)4 apresentam uma lista de referências aos jornais deste período na qual a imprensa era tida como espelho da vida política em Goiás.

Estas articulações via imprensa procuravam desqualificar a oposição e qualificar a situação e vice-versa, excedendo o território goiano e alcançando a imprensa nacional.

Arrais, em seu livro, soube costurar esses limites, avaliando os discursos dentro do esquadro do periodismo político goiano. O recorte temporal demarcado entre o final de um governo (Caiado) e o início de outro (Ludovico) sublinhado nas condições políticas ditadas por dois períodos, “A Republica Velha” e o “Estado Novo”, e concatenado pela Revolução de 30, apresenta ao leitor como a oposição e situação se apropriam da imprensa para construir seus discursos de defesa e ataque.

As injúrias disparadas por ambos os lados que perfaziam o ambiente político de intriga e conspiração são meticulosamente sublinhadas pelo autor, que procura dimensionar esta atmosfera ao leitor, de maneira a postular as permanências históricas acentuadas na cultura política praticada em Goiás. Desse modo, seu argumento é envolvido por indagações tais: o que de fato o regime político imposto por uma revolução trouxe não seria o velho no novo, ou melhor, o novo de velho? Pedro Ludovico, notoriamente registrado nos anais da história como símbolo de renovação, estaria de fato representando uma figura de mudança no protagonismo político goiano?

Arrisco dizer que Arrais, em poucas páginas, apresenta reflexões da história política de Goiás que desconstroem uma forma de pensar, permitindo ao leitor percorrer o modo com que ela foi escrita, e como isso influenciou a memória goiana. Com uma cautelosa audácia, o livro Mobilidade discursiva provoca a tradição de escrita de história, no que se refere a propor um novo olhar aos acontecimentos e fatos que a historiografia goiana tomou como baliza de análise.

A ideia de oposição entre os tempos cujo marco cronológico é a Revolução de 30, a figura de Ludovico como catalisador de um ideal de modernidade, progresso e mudança – predicados sistematicamente encontrados em dezenas de trabalhos de história de Goiás e que perpassa inclusive lugares diferentes de escrita –, e a ruptura de uma cultura política separada por uma revolução são conjecturadas numa proposta de investigação que busca provocar novas abordagens.

Nesse sentido, o livro de Arrais é sugestivo ao historiador que está disposto a pensar a história política goiana, na medida em que alarga os pressupostos metodológicos, convidando o historiador a repensar suas categorias e as abordagens cristalizadas nas páginas publicadas deste tema. Além disso, Mobilidade discursiva é um livro oportuno que propõe ao seu leitor pensar como as permanências históricas de uma cultura política de Goiás, e quiçá do Brasil de ontem, fazem-se presentes ainda hoje.

Notas

2 ARTIAGA, Zoroastro. História de Goiás: relato de acontecimentos históricos goianos de 1592 a 1946, t.2. Goiânia, Goiás, 1961.

3 Expressão comumente utilizada pelos jornalistas goianos do inicio do século XX para designar Goiás.

4 MORAES, Maria Augusta Sant’Anna. História de uma oligarquia: os Bulhões. Goiânia: Oriente 1974.325 p. FREITAS, Lena Castello Branco Ferreira. Poder e Paixão: a saga dos Caiado. Goiânia: Cânone Editorial, 2009. 2.v.


Resenhista

Enderson Medeiros – Graduando em História da Universidade Federal de Goiás – UFG. E-mail: endersofa@yahoo.com.br


Referências desta Resenha

ARRAIS, C. P. A. Mobilidade discursiva: o periodismo político em Goiás. Goiânia: UFG, 2013. Resenha de: MEDEIROS, Enderson. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 9, n. 17, jan./jun. 2015. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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