Mitos e Imaginários Políticos na História | Temporalidades | 2018

A historiografia política (ou sobre o político) tem passado por importantes transformações desde o século XX. Essas mudanças começaram a se desenvolver principalmente a partir dos anos de 1960, quando as até então inabaláveis certezas de cunho sociológico ruíam. Nesse contexto, muitos historiadores começaram a questionar as interpretações que se fixavam nas grandes regularidades sociais analisadas de forma sincrônica.[1] Essas interrogações ajudaram a relativizar a concepção relativamente difundida até então, de que a história política seria superficial e anedótica, principalmente quando contrastada com as análises centradas nas questões sociais e econômicas. Estas, consideradas mais elaboradas, com explicações cientificamente validadas, ultrapassariam o imediatamente constatável, superando também as manipulações políticas típicas da estruturação e da manutenção do poder.

Entretanto, para além de uma questão meramente teórico-epistemológica, vale considerar os desafios que se erigiam a partir de então. Por um lado, as promessas progressistas de liberdade, igualdade e prosperidade, anunciadas (ou almejadas) pelas metanarrativas de cunho teleológico, não pareciam mais seguramente realizáveis; por outro lado, a complexidade dos movimentos políticos, desenrolados principalmente entre os anos 1960 e 1970, apontavam para a necessidade de se compreender com mais cuidado as especificidades dos fenômenos políticos. Como bem destacou Bronislaw Baczko, os movimentos levados a termo em boa parte do ocidente no ano de 1968, demonstraram que as ideias políticas e suas diversificadas formas de articulação e realização, merecem uma análise aprimorada, atenta, inclusive, aos aspectos simbólicos, representacionais, artísticos e imagéticos. [2] A compreensão sumariamente apresentada, fez com que muitos historiadores desenvolvessem ou reafirmassem um interesse renovado pela política: não mais pensada necessariamente a partir dos lugares convencionais de exercício, socialização e debate (partidos, sindicatos e o próprio estado, por exemplo).

A revalorização do político, com efeito, caminhou juntamente com uma renovada forma de explicar a vida em sociedade: compreendida, também, como uma construção simbólica e imagética. Mitos, símbolos, ritos dentre outras elaborações imagético-sociais, não são encarados apenas como produtos de uma realidade dita objetiva e determinante. As elaborações mentais, os processos simbólicos de organização e compreensão da realidade podem ser entendidos, a partir desse registro, como parte da construção do real e não apenas como a sua reprodução. Tal constatação tem aberto novos caminhos e reafirmado outros que já estavam curso.

É importante considerar, nesse sentido, que não se trata de (re) afirmar um pretenso “retorno ao político”, como se as análises sobre esse campo tivessem desaparecido durante a primeira metade do século XX. Além disso, é preciso levar em conta que a vida em sociedade, de qualquer ângulo que se olhe, não pode ser compreendida independentemente das relações de poder, das formas de governança, das disputas pela hegemonização de ideias e projetos, das formas de associação e dos processos dominação e resistência. O que se está em jogo, portanto, é a constituição de uma nova sensibilidade para o político, fruto de demandas do tempo presente, mas, igualmente, de um processo de maturação que remonta as mais diferentes tradições intelectuais – algumas seculares, inclusive.

A historiografia brasileira – que tem uma historicidade e dinâmica próprias – não seguiu necessariamente a tendência de rechaço à história política, relativamente verificável entre muitos historiadores do Atlântico Norte. Em função dos dilemas vivenciados no Brasil, sobretudo em função da ditadura militar, inaugurada em 1964, os nossos “horizontes de expectativa” eram outros. Por essa razão, a questão política, de alguma maneira, não podia ser negligenciada. Na realidade, a história da historiografia política no Brasil é um trabalho ainda por se fazer. Contudo, mesmo que se pesem as particularidades do pensamento historiográfico nacional, é possível afirmar, com certa margem de segurança, que a imaginação social, os mitos, os símbolos, os ritos e as ritualizações da e na política ganharam um espaço importante entre os historiadores brasileiros. Além das pesquisas desenvolvidas junto a alguns dos principais programas de pós-graduação em História do país[3], contamos, há pelo menos duas décadas, com trabalhos prestigiados, que tomaram a questão do imaginário político como objeto de reflexão e, com isso, tornaram-se referências para historiadores das mais diferentes orientações e com interesses igualmente variados. [4]

Essa perspectiva de análise – renovada e renovadora – tem contribuído para a articulação de questões de relevo, dentre elas: qual o papel dos mitos e das mitificações para a edificação de algumas personalidades políticas e do próprio exercício do poder? Qual a relevância dos diferentes discursos (incluindo o historiográfico) para tal construção? Como se estruturam os autoritarismos? Os partidos políticos e os processos eleitorais seriam simplesmente manifestações superficiais de fenômenos de maior densidade? Essas questões, caras ao debate historiográfico contemporâneo, estão presentes neste dossiê temático Mitos e Imaginários Políticos na História, que compõe a edição 27 da Revista Temporalidades. Os artigos que formam o referido dossiê, aliás, revelam a pluralidade e a complexidade dos caminhos trilhados por muitos dos pesquisadores em formação que têm se debruçado sobre a temática em questão.

O artigo de Ana Maria Saldanha, O imaginário social na instauração da República em Portugal e na ditadura de Sidónio Pais: contrastes e aproximações, nos apresenta um raro esforço de pesquisa entre os historiadores brasileiros sobre história portuguesa mais recente. Evitando reproduzir as explicações simplistas que atribuíam ao período da monarquia constitucional as causas para o autoritarismo republicano lusitano, o autor busca compreender as nuances do imaginário social inerente ao então novo regime político, por meio da análise do processo de mitificação de Sidónio Pais. Qual o papel do herói e dos símbolos que o circundam para a compreensão da escala autoritária que marcou a primeira república em Portugal?

Também galgando discutir a relevância da mitificação para a construção de uma determinada personalidade política, André Barbosa Fraga desenvolveu o artigo: A aviação como elemento estratégico para o fortalecimento do mito Vargas. Por meio de um tema pouco explorado pela farta historiografia sobre Getúlio Vargas e seu governo, o autor destaca que o avião – que representa o desenvolvimento tecnológico, o comércio, a defesa e a comunicação – pode ser considerado um componente simbólico da construção da onisciência de Vargas. Destaca-se, dessa maneira, a relevância da imaginação social para a legitimação e longevidade do “Estado Novo”.

Ainda no que se refere à mitificação política, destaca-se o trabalho de Rafael dos Santos Pires. Por meio do artigo A Estela Poética de Tutmés III: divinização do faraó ou interdependência? o pesquisador analisa as ferramentas textuais do discurso político que acaba por legitimar as campanhas militares realizadas pelos “monarcas” no Egito antigo. Além disso, procura-se desconstruir a ideia (sedutora, inclusive, para alguns agentes contemporâneos) de que governos centralizados seriam sinônimos de estabilidade e segurança. Enfim: quais as relações entre a divinização dos faraós e a construção de uma determinada concepção de poder?

A relevância das diferentes elaborações discursivas para a compreensão de uma dada realidade política, presente no texto de Rafael dos Santos, é também o tema de outros artigos deste dossiê. Fernanda Bana Arouca, com a contribuição intitulada: Representando a Grande Guerra: a revista O Malho e o Mito da Experiência de Guerra, procura descortinar o processo de apropriação da mítica em torno do conflito beligerante mundial, por meio da análise do periódico destacado no próprio título do artigo. A autora evidencia que, em meio a um processo perturbador de desilusão com a república brasileira, a Segunda Guerra (1939-1945) foi representada como um “agente catalisador” das transformações que, em tese, urgiam ser realizadas. Apreende-se um discurso pautado pelas ideias de “dever e honra”, para a formação das novas gerações.

Enquanto no trabalho destacado analisam-se as representações veiculadas numa importante revista de circulação nacional na primeira metade do século XX, Raphael Almeida Dal Pai discute a teoria sobre o “anarco capitalismo”, difundida por meio do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil (IMB). O autor procura tratar dos principais argumentos que estruturam essa teoria, demonstrando, além do mais, as suas contradições (como, por exemplo, a ideia de que a liberação total das forças do mercado seria uma ação libertária). Se essas e outras formas discursivas estão sujeitas ao escrutínio de uma abordagem que se pretende crítica quanto à construção da realidade política, não seria também a própria historiografia um importante objeto de desconstrução? Essa questão de grande relevância perpassa o artigo: Discutindo a historiografia artiguista: o passado rural como argumento de autoridade, elaborado por Pedro Vicente Stefanello Medeiros. O autor procurou demonstrar como o imaginário em torno de José Artigas e sua crítica às políticas agrárias na sociedade uruguaia, foram apropriados pela historiografia dos anos 1960, que está marcada pelo o interesse de se tratar do mito fundacional agrário para que se pudesse constatar que o principal problema do país residia no latifúndio.

Além dos temas destacados até então, o dossiê apresenta ainda quatro contribuições que tratam de temas relativamente mais prestigiados pela historiografia política, mas que, nem por isso, não podem ser revisitados por meio de outras roupagens. Nesse sentido, vale a pena colocar em relevo os artigos de Alexander da Silva Braz e Luís Felipe Fernandes Afonso. O primeiro, por meio do texto Quando o autoritarismo entra em cena: o papel da IV Região Militar na repressão à UFMG em 1964 apresenta uma contribuição importante para a reflexão sobre as ações desempenhadas pelo regime militar em relação às universidades. Um esforço que se soma ao trabalho pioneiro de historiadores como Rodrigo Patto Sá Motta. [5] Alexander da Silva demonstra que desde o início da ditadura os homens fardados de verde oliva agiram com truculência e arbitrariedade em relação às universidades.

O artigo de Luís Felipe Afonso, “Vá à luta você”: o mito da juventude revolucionária no processo de redemocratização (1979-1985), também versa sobre um tema que já ganhou atenção de muitos historiadores, a saber: a cultura jovem e suas interfaces com a questão política. Contudo, o articulista discute essa instigante questão nos anos 1980, desconstruindo a ideia de que a juventude em destaque seria alienada e apática, em meio ao contexto de redemocratização. Tomase como objeto de análise o rock nacional, como forma de repensar determinadas simplificações, articuladas, por vezes, nos esquematismos classificatórios que separam o engajamento genuíno do falso, a cultura musical comprometida com a realidade social e aquela meramente comercial, a MPB e o Rock. Ultrapassando essas polarizações, o autor busca discutir as diferentes formas de expressão e de mobilização política que marcaram a década de 1980 – período que, de acordo com o autor, está longe de poder ser caracterizado como “década perdida”.

Os dois últimos trabalhos apresentados nesta introdução demonstram que a renovação histográfica sobre o político, definitivamente, não se restringe a novos objetos, sujeitos e temas. É, antes de tudo, uma mudança de perspectiva de análise, um novo processo de sensibilização e abertura. Com efeito, os trabalhos mencionados são contribuições centradas em dois temas largamente prestigiados: eleições e partidos. O primeiro trabalho, de Samuel da Silva Alves, Interpretação das massas, esquerdismo, agitação e demagogia: as análises de Armando Fay Azevedo acerca das eleições no Rio Grande do Sul (1958-1962) apresenta uma análise sobre dois processos eleitorais, com o intuito de discutir a construção da concepção de populismo, tendo como principais agentes Leonel Brizola e o partido trabalhista brasileiro (PTB). Já o segundo artigo, elaborado por Elói Felipe de Oliveira Thomas, Formação do Partido dos Trabalhadores em Cuiabá (1979-1985), nos oferta uma discussão sobre as origens de um dos principais partidos brasileiros da atualidade, colocando em evidência não os seus quadros hegemônicos e as suas diretrizes majoritárias, mas, de outro modo, a formação da agremiação em contexto social específico. O autor procura explicitar que, em Cuiabá, em função de uma falta de identificação dos trabalhadores com o partido e por causa da ação das elites locais, o PT encontrou dificuldade em consolidar a legenda na cidade. Fugindo dos grandes esquemas explicativos que procuram compreender as linhas mestras de um determinado partido, por meio de seus componentes destacados, ideias majoritárias e correntes ideológicas, [6] o autor procura pensar nas condições sociais e culturais que marcam a formação de uma legenda política.

Como é possível verificar, o dossiê apresentado está grafado por uma diversidade de abordagens, elaboradas por pesquisadores de diferentes instituições e formações. Uma pluralidade que atesta o vigor crescente de nossa produção historiográfica, bem como o prestígio da Revista Temporalidades junto à comunidade de historiadores – tanto entre os estudantes de pós-graduação, quanto entre os profissionais já formados que atuam em instituições de ensino e pesquisa em todo o país. Faço votos de que os leitores possam apreciar cada um dos trabalhos publicados nesta edição, e torço também para o sucesso da Temporalidades, uma iniciativa discente de grande qualidade da qual tenho muito orgulho de ter participado.

Notas

1. DIEHL, Astor Antônio. A ideia de progresso na História. In: Cultura historiográfica: memória, identidade e representação. Bauru, SP: EDUSC, 2002, p. 21-44.

2. BACZKO, Bronislaw. Imaginação Social. In: Enciclopédia Einaudi – Anthropos – Homem. Lisboa: Casa da Moeda, v.5, 1985, p. 297.

3. Citando apenas algumas das instituições mais bem avaliadas pela CAPES, podemos considerar os Programas de Pós-Graduação da Fundação Getúlio Vargas (FGV), da Universidade Federal Fluminense (UFF), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

4. Novamente, a lista poderia ser grande, mas apenas a título de ilustração, podemos destacar dois livros fundantes para esse debate: CARVALHO, Jose Murilo de. A formação das almas: o imaginário político da republica no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990; SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

5. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar – cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

6. Um exemplo desse tipo de abordagem pode ser verificado em: DELGADO, Lucília de Almeida Neves. O PTB: do getulismo ao reformismo (1945-1964). São Paulo: Marco Zero, 1989.

Virgílio Coelho de Oliveira Júnior – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Catarinense – IFC.


OLIVEIRA JÚNIOR, Virgílio Coelho de. Apresentação. Temporalidades. Belo Horizonte, v.10, n.2, maio | ago. 2018. Acessar publicação original [DR]

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