Minorias, poder, saberes e trocas culturais: do Império Romano ao medievo / Dimensões / 2019

Com imensa satisfação fazemos a apresentação desta coletânea internacional de artigos que constituem este dossiê em homenagem a uma musa dos medievalistas brasileiros e latino americanos – Adeline Rucquoi (França). A apresentação da pesquisadora ficou a cargo de dois colegas, e não seremos redundante. Seu brilho, sua obra e seu caráter justificariam uma terceira homenagem, mas a modéstia dela não nos permite este exagero.

Tudo começou no pós-doutorado do professor Sérgio Alberto Feldman no EHESS entre 2012 e 2013, em que foi tratado com carinho e imenso respeito e apresentado a pesquisadores diversos. Assim nos juntamos, Sérgio Alberto Feldman e Leni Ribeiro Leite, para homenageá-la nesta obra coletiva, e este é produto. Agradecemos a Dra. Patrícia Merlo, editora incansável da Revista Dimensões, ter aberto este nobre espaço de divulgação.

O primeiro artigo é da própria homenageada Adeline Rucquoi. Esta produção ficou esperando quase dois anos. Trata da reavaliação do termo Espanha das três culturas que volta ao debate com força contínua. Tendo o tema da intolerância e preconceito voltado à pauta, numa era de extremismos, racismo e tendências de repúdio ao “outro”, ele se faz presente.

Nos anos noventa do século passado, no entorno de 1992, quatrocentos anos da expulsão dos judeus e do final da assim denominada “reconquista”, reapareciam análises e reflexões sobre a riqueza das interações culturais, religiosas e científicas entre judeus, cristãos e muçulmanos no mediterrâneo ocidental, mais especificamente na península ibérica. Fez se uso nos anos 1990 da expressão convivência. Há nuances e facetas muito enriquecedoras das relações entre a três “religiões” que servem para iluminar sociedades diversas, hoje e sempre.

A riqueza do texto de Rucquoi é difícil de descrever. O texto tem fluxo, coerência e uma dinâmica que mesmo sendo história amplamente documentada, tem uma certa dose de poética. Junto uma refinada análise com uma escrita agradável a historiadores e a leigos

A segunda colaboração vem da Argentina. É um artigo do (ex / co) orientando de Rucquoi, o pesquisador argentino Ariel Guiance. Conhecido aqui no Brasil por vários estudos, e que já publicou na Dimensões. Seus estudos sobre a antiguidade tardia ibérica são enfocados entre outros temas na hagiografia, na construção da biografia e dos espaços sagrados dos santos do Cristianismo. As dioceses tardo-antigas incorporaram espaços sagrados pagãos, inserindo neles beatos e santos e fazendo destes espaços cristianizados. O foco é a região de Braga na Lusitânia, atual norte de Portugal. O estudo é denso e dialoga com vários pesquisadores brasileiros tais como Ruy de Oliveira Andrade, Renan Frighetto, Mario Jorge Motta Bastos e Leila Rodrigues da Silva.

A terceira colaboração é de Enio Sanzi, da Itália, e traz à tona aspectos da convivência e mescla religiosas em um momento um pouco mais recuado no tempo. Sanzi analisa testemunhos acerca dos cultos de Isis, Serápis e Júpiter em sua relação com os sonhos, e seu papel como forma de reforço da relação entre a comunidade e a divindade. Não há surpresa quanto à convivência entre cultos orientais e ocidentais no mundo imperial romano, mas o estudo do aspecto onírico é intrigante e novo.

A quarta colaboração vem de Lisboa / Portugal. Trata-se de uma colaboração de Julieta Araújo ao nosso dossiê. A pesquisadora faz uma abordagem interessante e diferente sobre um santo da hagiografia medieval: o culto de S. Nicolau em Portugal. O tradicional santo associado às celebrações do Natal faz um sincretismo bastante comum e mostra as intersecções do paganismo e do cristianismo. A autora faz uma reflexão bastante lúcida sobre as mútuas influências e as trocas culturais entre religiões que se negam, criticam, mas interagem.

A quinta colaboração é da (co) organizadora do dossiê Leni Ribeiro Leite, em coautoria com Alessandro Oliveira. Focando principalmente no aspecto da formação de identidades, e levando a cronologia para o início do Império Romano, os autores usam o orador romano Cícero como exemplo de construção discursiva de identidades variadas, de acordo com o ambiente social e político, conforme as regras da retórica antiga. Como eles buscam demonstrar, mesmo Cícero, considerado modelo de romano pela posteridade, teve que conviver com conflitos identitários e pertencimentos negociados.

A sexta colaboração vem dos EUA e de um dos tradicionais pesquisadores das três religiões no medievo ibérico. Autor de vasta obra, incluídos dicionário, verbetes e partes de livros, Norman Roth nos autorizou traduzir um artigo sobre a situação jurídica dos judeus nas diversas legislações medievais de reinos, comunas (fueros) e múltiplos códigos.

Num texto breve e excepcional denominado “Dar uma voz aos judeus”, o autor analisa como numa sociedade que discriminava e alocava ao judeu uma condição de “outsider”, tornando-o um pária, havia na legislação certa articulação jurídico política para manter os direitos da minoria que eram necessários para sua existência e continuidade sob a perspectiva da doutrina de Agostinho de Hipona, dos judeus como o povo testemunha e a prova da verdade da doutrina cristã: proteger e manter os judeus inferiorizados, mas com direitos de minoria.

O sétimo artigo vem também dos EUA, e é de autoria do cubano americano Teófilo Ruiz, que também nos prestigia com um trabalho de análise de dois textos literários do século XV que permitem leituras sobre o tema das minorias no contexto dos reinos ibéricos sob o impacto das conversões forçadas, da intolerância e da construção dos estigmas de pureza de sangue que geraram a inquisição. Fazendo uso de duas obras literárias traça comparações sob diversos olhares, de como a “arte espelha a realidade” e como ambas se influenciam mutuamente.

O oitavo artigo é do segundo organizador do dossiê, Sergio A Feldman. Pretende traçar um histórico da polêmica cristã judaica na transição do século XII para o XIII. A reflexão traça uma análise de como o modelo agostiniano de tolerância começa a ser corroído no ocidente medieval, a partir dos massacres da primeira e terceira cruzada. E como pressionados os judeus constroem uma argumentação nova que gerará um contra-ataque cristão, que levará aos debates do século XIII com os mendicantes. É o primeiro destes debates (Paris 1240) que levará ao confisco e incineração de exemplares de Talmude no pátio da catedral de Notre Dame (Paris).

Esperamos que essas contribuições sejam recebidas em comemoração, como justa homenagem a uma pesquisadora que vem incansavelmente produzindo obras dignas de todo apreço pela comunidade acadêmica. A Adeline Rucquoi, nosso profudo respeito e nosso agradecimento pelas valiosas contribuições, pessoais e profissionais, que vêm dando à comunidade acadêmica de todo o mundo. E convidamos todos à leitura.

Professora Doutora Leni Ribeiro Leite

Professor Doutor Sérgio Alberto Feldman

Organizadores


LEITE, Leni Ribeiro; FELDMAN, Sérgio Alberto. Apresentação. Dimensões. Vitória, n.42, 2019. Acessar publicação original [DR]

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