Militares, milicianos e policiais: instituições, representações e práticas / História Unisinos / 2012
O dossiê Militares, milicianos e policiais: instituições, representações e práticas reúne trabalhos cujo objeto são instituições militares e policiais no Brasil dos séculos XIX e início do XX, ou seus agentes, milicianos, guardas nacionais, praças da força policial e policiais da força pública. Em ambos os casos, tratam-se de textos que muito se distanciam das antigas histórias institucionais autocentradas e, nesse sentido, os seis artigos aqui reunidos podem ser vistos como amostra das pesquisas recentes sobre história militar e história da polícia feitas no Brasil, dois campos de estudo que vêm ganhando relevo nas últimas décadas, com o crescimento do número de publicações, dissertações e teses produzidas.
Embasada em sólidas pesquisas empíricas, a historiografia recente tem demonstrado outras faces dessas instituições que não as repressoras ou de “controle social”. Como é sabido, defini-las como tal não ajuda a explicá-las, pois a própria noção de “controle social” ao se expandir perdeu muito de seu poder explicativo. Nessas duas áreas de pesquisa, quando afastamos o foco dos projetos e discursos oficiais e nos aproximamos mais das práticas dos agentes, as instituições militares e policiais aparecem bem menos homogêneas do que nos acostumamos a acreditar que seriam. Vistas por meio dos indivíduos que as moldam nas suas relações de poder local, práticas e interações cotidianas, tais instituições disciplinares mostram suas dificuldades em se fazerem disciplinadoras para o público interno e externo. Nesse sentido, torna-se cada vez mais relevante o estudo de como essas instituições funcionavam localmente e como seus membros se relacionavam com outros grupos sociais. Estudos locais baseados em sólida pesquisa empírica e no diálogo com a historiografia permitem a análise comparativa do funcionamento de instituições nacionais em diferentes regiões, no caso das instituições militares imperiais, ou de instituições policiais provinciais e estaduais com objetivos semelhantes, mas organizações distintas dentro do território nacional.
Em que pese o crescimento da produção, da qual os autores reunidos neste dossiê constituem alguns dos principais representantes, a história da polícia, ou das polícias, no Brasil ainda tem muito campo a ser desbravado. A descoberta da riqueza da documentação policial para o estudo das condições de vida e da cultura populares desde os anos 1980, na esteira do deslumbramento com outros documentos da Justiça criminal, principalmente os processos crime, não implicou no aprofundamento do estudo da instituição que produzia essa documentação. Deste modo, embora as pesquisas venham se avolumando e se consolidando, ainda existem muitas lacunas a preencher em termos de estudos acadêmicos sobre a história do policiamento no Brasil, o que é grave se considerarmos que, ao menos nas décadas iniciais da República, era a polícia a face mais visível do Estado no contato com a população. Daí a relevância de artigos como os que tomam polícia e policiais por objeto nesta revista.
No Brasil a história militar, além de enfrentar os mesmos preconceitos que em outros países, também contou com a repulsa de muitos historiadores por lembrar nosso passado recente de ditadura militar. Contudo, a documentação existente sobre as forças armadas e a polícia é muito rica pra ser ignorada ou ser analisada somente através do viés do controle e da repressão. Conhecer melhor essas instituições e, principalmente, as pessoas que as compuseram é o principal objetivos dos artigos que aqui serão apresentados.
Este dossiê se inicia com o artigo de Luiz Guilherme Scaldaferi Moreira, que faz uma análise da bibliografia dedicada à história militar, do clássico Clausewitz a mais recente produção francesa e a anglo-saxônica, destacando as obras de André Corvisier e John Keegan. O autor discorre sobre as críticas da Escola dos Anais à história militar, pejorativamente chamada de “história batalha” que, justamente para fugir desse estereótipo, se chamou “nova história militar”, mais voltada à história social e cultural, que à descrição das batalhas ou a análise da estratégia. Moreira também ressalta que os estudos ligados à Nova História militar por vezes se aproximam bastante da antropologia e da sociologia e, frequentemente, estão relacionados à proclamada volta da narrativa.
Já o texto de Fernanda Claudia Pandolfi, intitulado “Política, imprensa e a participação dos militares na abdicação”, nas suas palavras, “pretende, especificamente, analisar como e por que os militares se uniram aos grupos liberais em oposição ao governo de D. Pedro I, focalizando nos acontecimentos que imediatamente precederam a abdicação. Sua tese principal será a de que a aliança entre militares e grupos liberais em 1831 somente foi possível devido à expansão do ‘espaço público’ na cidade no Rio de Janeiro, processo este em que a imprensa teve um papel fundamental, ao se transformar em lócus privilegiado das disputas políticas”.
O artigo de Luís Augusto Farinatti trata, principalmente, da relação de compadrio existente na estrutura das milícias nos inícios do século XIX na localidade de Alegrete, no Rio Grande do Sul. Na análise do autor, os oficiais milicianos eram verdadeiros “campeões de batismo”, qualificação que demonstra o quanto eram reconhecidos como protetores pela sociedade local. De fato, o poder dos oficiais de milícias era muito grande, pois: “Eles tinham a possibilidade de proteger aliados e escolher desafetos para onerar com as necessidades da guerra”.
O texto de Miquéias Henrique Mugge analisa a busca da inserção social de elementos que queriam se destacar dentre os imigrantes alemães em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. O autor apresenta dados que mostram uma realidade local muito particular, quando comparada a outros estudos locais. Em São Leopoldo, a maioria dos oficiais de milícia ocupava-se de profissões urbanas e tal como o apontado por Farinatti no seu estudo de caso sobre a história de Alegrete, também ali eram importantes as relações de compadrio que ligavam os oficiais aos seus clientes.
No texto “[…] que de polícia só tem o título, constando apenas de pobres crianças” Caiuá Al-Alam trata sobre a reorganização da polícia provincial no Rio Grande do Sul após a Guerra do Paraguai. A partir da análise de documentação variada, desde relatórios de Presidentes de Província e correspondências entre autoridades policiais até processos criminais nos quais policiais estiveram envolvidos, o autor mostra as dificuldades dos governantes em obter recursos humanos e materiais para o policiamento, bem como em impor disciplina aos policiais. Além disso, naquele contexto, os ex-combatentes do Paraguai haviam se tornado um problema administrativo e criminal para as autoridades, na medida em que capitalizavam sua experiência de participação na guerra como justificativa para a deslegitimação e desobediência à autoridade dos policiais.
Os artigos de André Rosemberg e Luís Antonio Francisco de Souza estudam a Força Pública do Estado de São Paulo nos primórdios da República.
Rosemberg analisa a organização da polícia paulista entre 1889 e 1894 e os desafios que se colocavam à instituição e seus agentes num contexto política e socialmente conflituoso onde, conforme o autor, convivia-se com temporalidades diversas: às expectativas republicanas estavam imbricadas permanências de uma herança escravista ainda plenamente arraigada nas relações sociais. Centrado no protagonismo dos policiais como produtores do policiamento, o que constitui uma das marcas da historiografia mais atual sobre polícia, o artigo mostra a importância do caráter militar assumido pela Força Pública do Estado de São Paulo nos anos iniciais da República e as permanências na instituição de práticas características do regime anterior, apesar dos discursos modernizantes republicanos.
O texto de Souza analisa um período posterior ao estudado por Rosemberg, quando o militarismo acabou por se converter em ideologia da Força Pública de São Paulo, ou pelo menos de seus superiores, a partir da contratação da Missão Francesa em 1906 para prestação de treinamento militar e disciplina para os policiais paulistas. A documentação interna da Força Pública mostra as vicissitudes e contradições da disciplina militar: ela não conseguia conter a indisciplina e as irregularidades na base da corporação – como a análise das práticas policiais cotidianas revela – mas, por outro lado, criou um espírito de corpo que dificultava a punição da violência cometida por seus soldados fora dos marcos da instituição e contra as pessoas comuns. Tais atos eram reprimidos com medidas administrativas, de forma que, dentro dessa lógica, deserções eram faltas mais graves do que violências contra a população.
O dossiê conta também com a resenha do livro “Homens e Armas. Recrutamento Militar no Brasil Século XIX”, produzida por Vítor Izecksohn; e na seção Notas de pesquisa com o texto “Contando policiais: os registros de pessoal como fonte”, de Cláudia Mauch.
Para finalizar, agradecemos aos editores da História Unisinos a oportunidade que nos foi proporcionada de organizar este dossiê, e aos pareceristas pelas suas contribuições. Acreditamos que a reunião de artigos sobre história militar e história da polícia possa contribuir para a aproximação e o diálogo entre esses dois campos de pesquisa em processo de consolidação no Brasil.
Cláudia Mauch
Paulo César Possamai
Organizadores do Dossiê
MAUCH, Cláudia; POSSAMAI, Paulo César. Apresentação. História Unisinos, São Leopoldo, v.16, n.3., setembro / dezembro, 2012. Acessar publicação original [DR]