Militares/ Democracia e Desenvolvimento: Brasil e América do Su | Maria Celina D’Araújo
O papel dos militares na política do Brasil e dos demais países da América Latina, ao longo do século XX, é amplamente estudado, embora exista predominância do período compreendido entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o da Guerra Fria, quando estiveram à frente do poder da maior parte dos países do subcontinente. Conquanto tenham sido um dos principais atores políticos dos países sul-americanos até meados da década de 1980, quando as ditaduras da região começaram a ser substituídas por governos civis, não perderam a grande relevância no cenário político interno e externo dessas nações. No livro “Militares, Democracia e Desenvolvimento: Brasil e América do Sul”, Maria Celina D’Araújo1 analisa o papel contemporâneo das forças armadas no Brasil e nos demais países da América do Sul, com foco nas atuações em defesa dos regimes democráticos de direito, nas cooperações militares regionais, nos aspectos hodiernos da corporação. O supramencionado livro é dividido em duas partes principais, que tratam, separadamente, da América do Sul como um conjunto e do Brasil, individualmente, em oito capítulos.
No primeiro capítulo do livro aqui resenhado, a autora trata das novas democracias na América do Sul. Na última década do século XX e a primeira do XIX, o referido subcontinente presenciou uma novidade no cenário político regional: a democracia tornar-se uma realidade para toda a região – a despeito de críticas a forma de governo de líderes políticos como Hugo Chávez e Evo Morales, os quais são acusados de fazerem uso de uma centralidade excessiva em suas personalidades de forma populista (D’ARAÚJO, 2010, p.13). D’Araújo ressalva, no entanto, que a região não presencia um novo ciclo ideológico ou revolucionário, mas sim que existe um conjunto de mudanças que levaram a ser estabelecida a democracia representativa e participativa – em detrimento do autoritarismo político tradicional – aliada à ampliação de direitos e melhorias nos índices sociais dos países sul-americanos, apesar de pesquisas de opinião apontarem que alguns países ainda carecem de confiança nas instituições democráticas e militares. Embora as supramencionadas pesquisas demonstrem falta de confiança da população sul-americana em importantes instituições de seus respectivos países, com destaque para um alto grau de insatisfação com a democracia, após o fim da Guerra Fria, os países da região desenvolveram mecanismos multilaterais de fortalecimento dos regimes democráticos na região.
Os governos militares do período anterior ao fim da Guerra Fria são associados aos ideais de desenvolvimento. Conquanto que sejam, hodiernamente, subordinados às autoridades civis, as Forças Armadas ainda possuem a imagem de atores importantes para a promoção do desenvolvimento dos países sul-americanos, como exemplificado por meio das Constituições da Venezuela e do Peru, as quais preveem explicitamente a participação dos militares no desenvolvimento nacional. Por outro lado, em países como a Argentina, o Chile, o Paraguai e o Uruguai não existem quaisquer previsões acerca da participação de militares no desenvolvimento nacional (Ibid., p.64-66). O Brasil, embora tenha uma constituição considerada conservadora sobre o referido assunto, aproxima-se do cenário dos países andinos, como a Colômbia, em decorrência da atribuição de funções de manutenção da ordem interna aos militares.
A consolidação dos regimes democráticos na América do Sul possibilitou um incremento na cooperação regional em temas considerados estratégicos. Fora as considerações legais acerca do compromisso multilateral para com a democracia, em acordos como a IIRSA e a UNASUL os países do subcontinente acordaram em promover o desenvolvimento e a integração regional, por meio da concertação política e da promoção infraestrutura, visando aprimorar a integração física, de forma a incrementar o comércio inter-regional e mitigar os efeitos das fronteiras políticas e dos obstáculos naturais para o desenvolvimento de regiões interioranas. Em relação à cooperação entre as Forças Armadas, o cenário de rivalidade antes existente foi revertido para a cooperação, por meio de instituições como o Conselho de Defesa Sul-Americano e as Conferências de Ministros de Defesa das Américas, conforme desenvolvido por Maria Celina D’Araújo no segundo e no terceiro capítulo do livro ora resenhado (Ibid., p. 71-75).
Na segunda parte da obra, a autora debruça-se sobre as relações das Forças Armadas brasileiras com o Estado. Partindo dos meados intermediários da ditadura militar, são analisadas as divergências de pensamento entre os militares e a forma como a qual o Poder Executivo lidou com esses grupos de pressão, de forma a conduzir o processo de transição do regime para uma democracia representativa e civil. Embora o cargo de Presidente da República e grande parte dos demais postos do alto escalão do governo fossem ocupados por militares, ou pessoas diretamente ligados a eles, ao longo do regime fez-se clara a relação de subordinação das forças armadas ao Executivo a partir da publicação do Ato Institucional n° 7, em 1969 (Ibid.,p.110). Na transição para um governo chefiado por um presidente civil, posto que tenha sido prevista na Constituição Federal de 1988 que o Presidente da República é o supremo chefe das Forças Armadas, os ministérios militares, assim como a Casa Militar, existiram até o ano de 1999, quando fundado o Ministério da Defesa – marco do controle civil sobre os militarese, para a autora, tão importante em termos de impacto sobre as Forças Armadas como a criação das comissões de anistia e de desaparecidos.
As diferenças ideológicas entre os militares brasileiros têm origem na própria história das corporações: ao passo que a Marinha tinha a tradição de ser uma força militar de elite, o Exército, por sua composição, era ligado aos setores mais pobres da sociedade. Conquanto as supramencionadas divergências tenham sido modificadas e amenizadas, o Golpe Militar de 1964 tinha como objetivos, além do principal de combater o comunismo, mitigar a divisão interna decorrente dos embates político-partidários. Contudo, mesmo ao longo do Regime Militar, as divergências internas na corporação mantiveram-se, como exemplificado pelos grupos radicais e pelos favoráveis a transição lenta, gradual e segura do poder para os civis (Ibid., p.107). Embora fosse um aspecto importante das Forças armadas brasileiras, para o público em geral prevalecia a imagem de coesão, fato o qual seria importante para a forma como fora pensada a Lei de Anistia, de 1979, – ampla, geral e irrestrita – de forma a evitar perseguições a determinados indivíduos, como aconteceria na Argentina, após 1982.
Embora os militares tenham conseguido ao longo do Governo Sarney que a nova Constituição mantivesse as concessões e os direitos da Lei de Anistia, o referido tema nunca deixou de ser debatido no Brasil. A Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, a qual teve início em 1995, teve papel importante ao indenizar as famílias dos desaparecidos políticos brasileiros, com destaque para os da Guerrilha do Araguaia. Além disso, ratificou a ideia de responsabilização do Estado pelas mortes, ao invés de atribuir culpa a indivíduos específicos. No entanto, em decorrência das torturas, em especial as ocorridas dentro das dependências do DOI-CODI, um amplo debate teve início nos anos 2000, de forma a discutir se a supramencionada lei contemplava o crime de tortura, uma vez configurado no direito internacional como crime contra a humanidade.
A autora postula que, no século XXI, os militares brasileiros têm sido aguerridos na defesa dos interesses da corporação, fato exemplificado não somente por meio da proteção conferida pela Lei de Anistia, mas também na manutenção de um sistema especial de aposentadorias de pensões e de um sistema judiciário próprio. O corporativismo militar, no entanto, configura-se de forma diferente dos demais, como o do Judiciário, em decorrência da posse do monopólio das armas de guerra.
No último capítulo, a autora do livro aqui resenhado analisa a relação entre as Polícias Militares e as Forças Armadas, partindo de um panorama histórico do surgimento da primeira até a cooperação contemporânea existente com a segunda. Ao longo da Ditadura Militar, em decorrência da banalização do conceito de “segurança nacional”, as Polícias Militares acabaram por atuar diretamente na repressão política, ao invés de cumprirem, essencialmente, a função de manter a “segurança pública”, sua função primordial. Após a redemocratização, as relações foram invertidas, em virtude da participação dos militares em operações de segurança urbana e de defesa civil, como no caso de enchentes, em parceria com outras corporações além da Polícia, como o Corpo de Bombeiros.
Por fim, Maria Celina D’Araújo faz uma reflexão acerca dos estudos contemporâneos da temática por ela pesquisada. Embora exista uma riqueza de fontes a ser exploradas, a academia brasileira ainda carece de estudos sobre temas importantes, como a atuação do Supremo Tribunal Militar ao longo da ditadura, a mudança dos valores da Doutrina de Segurança Nacional após o término da Guerra Fria, e a relação desses referidos valores com a luta contra o comunismo. Conquanto se proponha abrangente em relação ao tema proposto, o livro aqui resenhado tem como função mais elucidar temas pouco explorados e de grande importância para a história recente do Brasil e da América do Sul.
Nota
1 Maria Celina D’Araújo é doutora em Ciência Política e professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Mais informações disponíveis em: http://mariacelina.daraujo.net/. Acessado em 28/05/2011.
Resenhista
Pedro Henrique Verano Cordeiro da Silva – Mestrando em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília – UnB. E-mail: phverano@gmail.com
Referências desta Resenha
D’Araújo, Maria Celina. Militares, Democracia e Desenvolvimento: Brasil e América do Sul. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. Resenha de: SILVA, Pedro Henrique Verano Cordeiro da. Meridiano 47, v.12, n.125, p.61-63, maio/jun. 2011. Acessar publicação original [DR]