Veem-se os emigrantes partirem uns após os outros, veem-se os imigrantes chegarem uns atrás dos outros e uns seguindo os outros, mas só se compreende o que é a emigração lá e o que é a imigração aqui, posteriormente, quando o processo já está bem encaminhado, quando a duna já está formada.
A Imigração, A. SAYAD
E / imigração e refúgio estão na pauta central das discussões e políticas de Estado – especialmente na União Europeia e nos Estados Unidos –, resultado da pressão política e das demandas sociais, do aumento dos deslocamentos populacionais e multiplicação de campos de refugiados, somado às crescentes manifestações de ódio contra os imigrantes. As respostas da sociedade de recepção e as medidas implementadas pelos governos são múltiplas e variáveis: há o acolhimento, imigrantes “desejáveis”, políticas de proteção e inserção do imigrante / refugiado; mas também há movimentos de xenofobia, o endurecimento das leis imigratórias e o fechamento das fronteiras – simbolicamente, via adoção de uma postura anti-imigração, e fisicamente, com policiamento, construção de cercas e muros.
No contexto atual, um fator complicador é a distinção imprecisa e intercambiável dos termos imigrante e refugiado. Na base dos deslocamentos, está a perspectiva por melhores condições de vida, havendo para o imigrante a possibilidade do retorno – real ou imaginário –, enquanto que o refugiado, resultado de um contexto de violência – guerras, catástrofes naturais – não tem mais para onde retornar. Todavia, o limite jurídico da condição de imigrante e refugiado é tênue e ambivalente e, na prática, ambos representam o outro, condição na qual são percebidos pela sociedade dos estabelecidos. Historicamente, os fluxos migratórios internacionais oscilam quanto às causas e o local de emissão, somado à visibilidade dada pelos meios de comunicação. Recentemente, o mundo acompanhou o deslocamento de migrantes / refugiados sírios rumo a países europeus; a caravana de migrantes da Nicarágua e Guatemala com destino aos Estados Unidos; as longas filas de venezuelanos aguardando na fronteira para ingressar na Colômbia ou no Brasil; bem como as discussões sobre a presença de imigrantes ilegais valendo-se do status de refugiado.
Paralelo aos fluxos migratórios excepcionais / fatores de repulsão, permanecem os deslocamentos populacionais regionais e transnacionais regulares e legais, numericamente até superiores e os fatores / locais de atração – desenvolvimento econômico, oportunidades. A complexidade da temática em questão implica em estudos que articulam e ultrapassam o campo das Ciências Humanas e Sociais, compartilhando modelos de análise, metodologias e fontes. Esse diálogo entre as áreas permite avançar e qualificar os estudos migratórios, conectando as duas pontas do processo – repulsão / emissão e atração / recepção –, no que se refere às migrações históricas e as migrações contemporâneas. Essa proposta perpassa o presente Dossiê “Migrações: perspectivas e avanços teórico-metodológicos”,[1] que aborda as mobilidades, migrações e diásporas a partir das narrativas dos e / imigrantes e as representações históricas construídas a posteriori. Os trabalhos, produzidos por pesquisadores sediados na França, Alemanha, Argentina e Brasil, tem como ponto em comum o imigrante em movimento, mas variam quanto a abordagem, método e fontes; mas, no seu conjunto, sinalizam tratar-se de uma temática transnacional, complexa e atual.
O presente número da Revista História – Debates e Tendências está organizado em três seções, respectivamente, o Dossiê “Migrações: perspectivas e avanços teórico-metodológicos”, os artigos livres e a resenha. O artigo que abre o Dossiê traz a complexidade das migrações atuais. Christine Delory-Momberger analisa os pedidos de asilo de imigrantes na França, cujo processo de acreditação da narrativa inicia quando o indivíduo ainda está na condição de emigrante, como fundamento para demonstrar e justificar o seu pedido. Constata que a narrativa, sob suspeita no local de recepção, precisa provar que a perseguição sofrida no local de origem é real e atual. Assim, estabelece-se um triplo acordo: retórico, psicológico e jurídico, cujo resultado é a construção de um relato de asilo pautado entre a (des)confiança e o confisco de suas histórias e a história de suas vidas. Aponta que os obstáculos legais, jurídicos, linguísticos e a lentidão do processo funcionam como fronteiras fechadas aos e / imigrantes, levando-os à ilegalidade, além de pressioná-los a desistir do processo. Os três artigos seguintes têm como elo a escrita produzida pelo imigrante em movimento, desde uma simples carta destinada às suas redes familiares ou sociais, até narrativas mais elaboradas, como autobiografias e relatos de viagem. No primeiro artigo, Peter Alheit aborda a complexa relação entre (auto)biografia e migração, ao investigar a construção de autobiografias em espaços transnacionais. Afirma que nesse contexto de trânsito, o imigrante depara-se com a necessidade da escrita – memórias, cartas, diários, autobiografias. Na sequência, Gerson Roberto Neumann analisa as narrativas de viagem presentes na literatura alemã, bem como ressalta o crescimento dessa produção em decorrência das migrações contemporâneas, a escrita em espaços de fronteiras fluídas e a importância da tradução cultural. Sinaliza para uma literatura em trânsito, sem um local definido – a literatura alemã produzida no Brasil pertence a qual nação? –, que não precisa ser encaixada em termos nacionais, mas ser classificada e estudada. Já Claudia Garnica de Bertona apresenta uma ampla síntese, a partir da revisão historiográfica, da presença dos imigrantes alemães na Argentina e, em particular, sua produção literária. Busca acompanhar como essas escritas se sobressaíram em diferentes momentos históricos e como se comportam nos dias atuais. Para além das escritas, o patrimônio histórico, os espaços de memória e seus agentes sociais são aspectos a serem considerados como parte das migrações, temática dos próximos dois artigos. Ruy Farias historia a formação do Museu da Emigração Galega na Argentina, cujo objetivo consiste em preservar a história, memória e identidade da imigração e do exílio galego na Argentina. Identifica, a partir da análise do discurso das exposições permanentes, as representações selecionadas e silenciadas pelas suas lideranças, evidenciando tratar-se de um espaço de memória de determinado grupo, mas não da coletividade galega na Argentina. Por sua vez, o artigo de Eloisa H. Capovilla da Luz Ramos e Isabel Cristina Arendt debruça-se sobre a trajetória de vida e produção escrita de Germano Moehlecke, entendendo-o como um agente de memória local empenhado em elaborar uma narrativa sobre a imigração alemã no Rio Grande do Sul e a formação de São Leopoldo, embasada em documentação empírica. O resultado de suas pesquisas foi publicado em artigos de jornal, eventos e livros, colocando em evidência a documentação do acervo do Museu Visconde de São Leopoldo.
O próximo artigo direciona o olhar para inserção do imigrante na sociedade de recepção. Jorge Luiz da Cunha aborda o estabelecimento de imigrantes alemães no Rio Grande do Sul, no século XIX, e a estruturação de um modelo de colonização baseado no trabalho familiar em médias e pequenas propriedades, voltado ao abastecimento do mercado interno. A partir do modelo geral, busca compreender as particularidades da colônia Santa Cruz (1849), evidenciando que houve a configuração de organizações familiares distintas daquelas tradicionalmente associadas aos imigrantes alemães e a cultura de seus países, em decorrência de fatores do próprio grupo e fatores externos.
Encerrando o Dossiê, em seu artigo Regina Weber oferece uma discussão teórica dos conceitos e noções utilizados historicamente nos estudos de imigração, atrelados a diferentes correntes interpretativas, às quais se somam os estudos recentes. Problematiza as chaves de leitura clássicas e atuais empregadas nas leituras e interpretações das migrações históricas e contemporâneas – imigração, assimilação, diáspora, fronteira étnica, alteridade e transnacional – e as possibilidades mais plausíveis para novas pesquisas, evitando o uso de novas roupagens para questões já clássicas, ou o menosprezo de conceitos consagrados.
A segunda seção é composta por quatro artigos livres, com assuntos diversos e instigantes. No primeiro artigo, Ipojucan Dias Campos considera a influência da moda e do corpo e seus efeitos sobre as famílias e a moralidade na cidade de Belém-PA, entre 1915 e 1920, utilizando como fonte empírica as colunas jornalísticas e autos de desquite. O estudo demonstra o quanto a moda e a exposição do corpo dispuseram de poderes suficientes para desestruturar domínios familiares. O próximo artigo, de autoria de João Carlos Tedesco debate a presença e a importância dos indígenas na Colônia Militar de Caseros, ativa entre 1858-1878, situada no norte do Rio Grande do Sul, como um modo de controlar, aldear e envolver os indígenas no empreendimento, viabilizando a colonização e incorporação da região ao sistema produtivo da província. No artigo seguinte, Martha Victor Vieira discorre sobre a temática indígena a partir dos escritos de Raymundo José da Cunha Mattos, publicados no século XIX na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB), do qual era membro. A autora ressalta a trajetória de Mattos, como militar português radicado no Brasil, sua habilidade letrada e político-administrativa, sua concepção de história e o seu interesse em investigar e narrar a temática indígena, bem como seu comprometimento e fidelidade ao Império. Por fim, em seu artigo, Lindercy Francisco Tomé de Souza Lins trata da imagem do Brasil nos Estados Unidos e a repercussão na imprensa daquele país de dois episódios da política brasileira – o golpe de 10 de novembro de 1937 e o discurso de Getúlio Vargas de 11 de junho de 1940 – e as medidas adotadas pelo governo brasileiro para contornar a situação no exterior, sem comprometer sua imagem.
Na última seção, Federica Bertagna resenha a obra “O poder na aldeia”, recomendando-a como um estudo de micro história, imprescindível para compreender as redes sociais, a honra familiar e a criminalidade entre os camponeses italianos nas zonas de colonização do Sul do Brasil, no período da imigração em massa (1875-1920).
Cabe mencionar ainda a articulação do Dossiê “Migrações: perspectivas e avanços teórico-metodológicos” do presente número da Revista História – Debates e Tendências, ao Núcleo de Estudos de História da Imigração (NEHI), ligado ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo.
Uma boa leitura a todos!
Nota
1. A temática foi o tema central do Seminário Internacional “Migrações: perspectivas e avanços teórico-metodológicos” & XXIII Simpósio de História da Imigração e Colonização, de 25 a 28 de setembro de 2018, organizado e promovido pelo Instituto Histórico de São Leopoldo e Programa de Pós-Graduação em História da UNISINOS
Rosane Marcia Neumann – Professora Doutora, Universidade de Passo Fundo, Brasil.
NEUMANN, Rosane Marcia. Editorial. História – Debates e Tendências, Passo Fundo- RS, v. 19, n. 2, maio / ago, 2019. Acessar publicação original [DR]
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