Mídias | Anais do Museu Histórico Nacional | 2017

Cinema, games e museus: meios, usos e mediações dos acervos históricos na era das audiovisualidades

O presente dossiê apresenta um conjunto representativo de algumas das pesquisas mais atuais e instigantes sobre as relações entre história, cinema, games e museus na constituição das interfaces, interdisciplinaridades e especificidades dos “meios, usos e mediações”[1] dos acervos históricos na “Era das Audiovisualidades”.

Na primeira metade do século XX, os estudiosos da chamada Escola de Frankfurt – como Theodor Adorno [2], Max Horkheimer [3], Walter Benjamin [4], seguidos mais à frente por pesquisadores contemporâneos como Guy Debord [5], Jean Baudrillard [6], Douglas Kellner [7], Néstor García Canclini [8], Jesús MartinBarbero [9], Pierre Lévy [10], dentre outros, têm refletido sobre a sociedade de massas na “Era do espetáculo dos meios de comunicação” e avaliado o papel das novas mídias nas práticas sociais e culturais que, cada vez mais, tem valorizado uma postura interativa do público espectador frente às “obras de arte na época da sua reprodutibilidade técnica”.[11]

Indubitavelmente, a emergência de uma cultura da mídia e o desenvolvimento tecnológico das audiovisualidades, em pleno processo dialético com suas sociedades massificadas, representou um paradigma para as formas de construção da narrativa da História e da configuração das representações da memória histórica. Neste sentido, o presente dossiê objetiva congregar estudos que apresentem propostas e experiências de teorias, metodologias e pesquisas que, marcadas pelo caráter multidisciplinar, discutam como a cultura das audiovisualidades gerou mudanças comportamentais que afetam a noção de tempo, de espaço e dos dados históricos, conceitos fundamentais para o trabalho historiográfico, assim como reflitam acerca da forma como o espaço da memória histórica de museus e seus acervos são incorporados, ressignificados e trabalhados pelos recursos das audiovisualidades: cinema, televisão, games, vídeos, aplicativos, smartphones e as demais tecnologias de informação e comunicação (TICs).

Refletir sobre as possíveis conexões, convergências, diálogos e interações entre as novas tecnologias midiáticas dos séculos XX e XXI e os museus, acervos e patrimônios históricos possibilita aprofundar, potencializar e incorporar os instigantes debates contemplados nestas distintas áreas. O intuito é problematizar o intercâmbio do conhecimento sobre novas mídias, bem como viabilizar novas metodologias de divulgação e ludicidade aplicadas aos acervos museológicos.

Os artigos do dossiê estão agrupados de acordo com uma ótica estrutural organizada em três eixos temáticos principais, a saber:

O primeiro grupo contempla os artigos dedicados às diferentes fontes e temáticas que envolvem as relações História, Cinema e Televisão.

O artigo “Meridional Filmes: trajetórias desconhecidas do cinema pernambucano durante o Estado Novo (1937-1945)”, do doutorando em História pela UFPE, Arthur Gustavo Lira do Nascimento, realiza uma análise das produções da empresa cinematográfica Meridional Filmes, contratada diversas vezes pelo governador pernambucano Agamenon Magalhães para realizar filmes sobre as ações políticas do Estado Novo em Pernambuco.

O artigo de Quezia Brandão, Mestra em História Social pela USP, apresenta uma análise sobre “A poética cinematográfica latino-americana de Glauber Rocha: Uma análise do filme A Idade da Terra (1980)”. Partindo do estudo do roteiro cinematográfico nunca produzido de “América Nuestra” (1965), a historiadora investiga as transformações sofridas pelo projeto original de Glauber Rocha até a produção do filme A Idade da Terra, considerado por Quezia Brandão como a “obra síntese” da filmografia do cineasta baiano Glauber Rocha. Para auxiliar o leitor a decifrar o “filme maldito” e mais incompreendido do maior expoente do Cinema Novo Brasileiro, a autora discute aspectos externos que envolveram a produção cinematográfica, assim como se dedica, com sensibilidade, a desvendar a linguagem estética e as alegorias crísticas presentes no último filme de Glauber Rocha.

Concluímos este primeiro bloco com o artigo “Controle e Espetáculo: Imagens cinematográficas da televisão dos anos 1990”, de Thiago Henrique Felício, doutorando em História pela UFPR, que através do estudo dos filmes O Efeito Ilha (dir. Luiz Alberto Pereira, 1994), Como Nascem os Anjos (dir. Murilo Salles, 1996) e Um Céu de Estrelas (dir. Tata Amaral, 1996), discute como essas produções refletiram sobre algumas das questões e dilemas da década de 1990. Segundo expõe o autor, essas obras foram bastante críticas, pois procuraram apontar para uma certa banalização da cultura pelas imagens, bem como para a alienação e para o controle provocados e exercidos através dos melodramas televisivos, que se tornavam cada vez mais onipresentes com a repetição das suas mensagens nos mais diferentes meios de divulgação.

Estes dois últimos artigos auxiliam a compreensão das relações da produção de cinema e TV com a transição da ditadura civil-militar para o período democrático no Brasil República.

O segundo grupo temático reúne artigos que refletem sobre as questões que permeiam as relações entre História e videogames.

Em “O espaço virtual da reconstituição histórica em Assassin’s Creed III (2012)”, Robson Scarassati Bello, doutorando em História Social pela USP, levando em conta que os jogos de videogame apresentam uma nova forma de representar e simular a realidade histórica através do espaço virtual, reflete como o jogo Assassin’s Creed III representou a Guerra Franco-Indígena e a Revolução Americana (1776), transformando os eventos históricos em uma espécie de parque de diversões.

Também trabalhando com a cultura dos games, temos o artigo de Diogo Trindade Alves de Carvalho, doutorando em História pela UFBA, que se debruçou na análise temática “Civilizados, Incivilizados e Primitivos no jogo Victoria 2 (2010): uma análise dos diários de desenvolvimento publicados no fórum da Paradox”. Neste artigo, o autor aponta que o jogo Victoria 2 reproduz um discurso eurocêntrico e racista na busca de glorificar a visão conservadora de um passado glorioso para da história do Império Britânico, entre 1836-1946, período no qual o jogo transcorre e que constrói a memória em torno de eventos históricos e objetos museológicos.

O terceiro bloco é composto por textos que debatem as relações da História com cinema, games e museus, que também perpassam a educação e suas influências na forma de trabalho e de percepção dos artefatos e objetos museológicos.

Nesta senda, o artigo “Um salão de belas novidades: um olho no cinematógrafo, outro no museu!”, de Geyzon Bezerra Dantas, mestre em Letras (Literatura e Cultura) pela UFPB, reconstitui através da história da primeira sala de cinema instalada no Rio de Janeiro, no final do século XIX, como o advento da novidade tecnológica produziu efeitos no imaginário e na vida cultural carioca. À margem das instituições museais que também se formavam no período, surge no contexto do entretenimento popular um museu integrado ao espetáculo cinematográfico. Dessa forma, o autor analisa a presença desse museu popular, na primeira época do cinema brasileiro (1896- 1912), destacando ainda o aspecto de confluência entre a exibição de filmes e a exposição de objetos durante a Exposição Nacional de 1908.

Na sequência, Marta Dile Robalinho, pós-graduanda em História do Brasil pós-30 pela UFF, no artigo “Museu, objeto e o digital no Ensino de História”, reflete sobre como podemos pensar o ensino de História a partir da leitura de objetos museais através do digital. Para isso, a autora realiza uma pesquisa de objetos pertencentes ao século XIX da exposição do Museu da República, no Rio de Janeiro, e da forma como eles podem ser trabalhados com alunos do Ensino Fundamental II de uma escola pública. A partir desse exercício, a autora nos apresenta subsídios para a elaboração do roteiro de atividades em aplicativo para smartphone e tablet.

Já “Produção de Museu Virtual na Escola: uma experiência didático-pedagógica para estudos africanos”, artigo de produção conjunta dos autores Larissa de Souza Reis, doutoranda em Educação e Contemporaneidade da UNEB, Alfredo Eurico Rodrigues Matta, doutor em Educação pela UFBA/ Université Laval (Canadá), e Francisca de Paula Santos, doutora em Educação pela UFBA, dedica-se a apresentar o processo de construção do Museu Virtual de Contos Africanos e Itan (MUCAI), resultante da pesquisa decorrente da Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade da UNEB, desenvolvida no período de 2015 a 2017 e patenteada em uma escola municipal de Salvador, com turmas do 4º ano do Ensino Fundamental I. Para isso, os autores utilizaram-se de “contações de histórias”, oficinas de produções artísticas com desenhos e teatro, além da criação do portal resultante das práticas pedagógicas, o que possibilita a realização de um relevante diálogo em torno do currículo da Educação das Relações Étnico-Raciais, além do compartilhamento deste material didático-pedagógico com profissionais da área e demais interessados pela valorização da História e da Cultura Afro-Brasileira.

O penúltimo artigo “Experiências sensoriais: o Museu do Festival de Cinema de Gramado na perspectiva das novas tecnologias”, obra conjunta de autoria de Daniel Luciano Gevehr, doutor em História pela UNISINOS, Franciele Berti, doutoranda em Turismo pela UCS, e Roger Pierre Vidal, mestre em Desenvolvimento Regional pela FACCAT, investiga o processo que envolveu a criação e a reformulação do Museu do Festival de Cinema de Gramado (MFCG), no Rio Grande do Sul, que após passar por um trabalho de reconfiguração de suas ambiências, buscando se aproximar da ideia de museu interativo, valeu-se, segundo demonstrado pelos autores, de novas tecnologias visuais, que permitem a interação do público com os recursos disponíveis na expografia do museu, dedicada a contar a história do cinema brasileiro e da trajetória percorrida pelo Festival de Cinema de Gramado, explorando, para tanto, a exposição de imagens – fotografia a audiovisual – que permitem a veiculação das narrativas visuais.

O último artigo do dossiê, “O século XXI e a educação histórica: Patrimônio Cultural, Museus e Jogos Eletrônicos”, de autoria de Paulo Sérgio Micali Junior, mestre em História pela UEL, elabora uma proposta educativa aos moldes de aula-oficina, amparada em mediadores culturais e tendo em vista o avanço tecnológico e a liquefação das relações humanas, com a finalidade de desenvolver uma prática educacional que envolva dos preparativos que antecedem a visita museal ao emprego de gameplays para estimular os alunos acerca dos elementos dotados de patrimonialidade.

Diante desta breve apresentação, é possível ao leitor perceber que encontrará neste dossiê uma reunião de artigos que, através da pluralidade de olhares de seus autores e dos recortes temáticos de suas pesquisas, apresenta interessantes e intrigantes formas de se relacionar as audiovisualidades com os museus e a educação. Dessa forma, o leitor verá contemplada uma vasta gama de temas, fontes e abordagens teórico-metodológicas, que possibilitam traçar um panorama da cultura audiovisual contemporânea.

Gostaríamos de finalizar essa apresentação do dossiê agradecendo a significativa contribuição de todos os autores que colaboraram nesta presente edição, assim como a dedicação dos editores dos Anais do Museu Histórico Nacional, que nos possibilitou apresentar ao público leitor um conjunto diversificado, sério e atualizado da produção acadêmica dedicada aos estudos das audiovisualidades e de suas relações com a História e os museus. Temos convicção de que o público leitor apreciará os artigos deste dossiê. Uma excelente leitura!

Notas

1. Expressão de: MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2009.

2. HORKHEIMER, Max & ADORNO, Theodor W. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

3. HORKHEIMER, Max & ADORNO, Theodor W. “A indústria cultural. O Iluminismo como mistificação de massa”. In: LIMA, Luis Costa (org.). Teoria da Cultura de Massa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010. p.169-214.

4. BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Primeira Versão”. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas – volume 1. São Paulo: Brasiliense, 1986. p.165-196.

5. DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo / Comentários Sobre a Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 1997.

6. BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Rio de Janeiro: Elfos, 1995.

7. KELLNER, Douglas. A Cultura da Mídia. Identidade Política Entre o Moderno e o Pós-moderno. Bauru, SP: EDUSC, 2001.

8. GARCIA CANCLINI, Néstor. Consumidores e Cidadãos. Conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2001.

9. MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2009.

10. LÉVY, Pierre. Que é o Virtual? Rio de Janeiro: Editora 34, 2003.

11. Expressão cunhada pelo filósofo alemão Walter Benjamin, no texto “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica” Op. cit.


Organizadores

Christiano Britto Monteiro – Doutor em História e professor adjunto da Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor da dissertação “Medal of Honor e a construção da memória da Segunda Guerra Mundial”, pelo PPGH – UFF e da tese “Medal of Honor e Call of Duty: uma comparação entre missões do videogame e eventos históricos”, pelo PPGHC/UFRJ.

Wagner Pinheiro Pereira – Doutor (2008) em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), onde também realizou o Pós-Doutorado (2010). Atualmente é professor adjunto de História da América e História do Audiovisual nos cursos de Bacharelado em História e de Bacharelado em Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 


Referências desta apresentação

MONTEIRO Christiano Britto; PEREIRA Wagner Pinheiro. Apresentação. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v.49, n.1, p.6-12, 2017. Acessar publicação original [DR]

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