Microcrédito: O Mistério Nordestino e o Grameen Brasileiro

O livro Microcrédito: O Mistério Nordestino e o Grameen Brasileiro fornece a melhor visão da indústria microcréditícia brasileira e de seu futuro do que a maioria do que foi escrito sobre o assunto. De forma interessante, a análise não discute o microcrédito brasileiro de uma perspectiva global, mas enfocando desde o ponto de vista quase exclusivamente institucional e sobre uma instituição em particular: o CrediAMIGO do Banco do Nordeste.

O livro demarca claramente os desafios enfrentados pelos praticantes de microcrédito no Brasil, dando ênfase particular à diversidade demográfica da maioria dos clientes potenciais e à informalidade dos seus negócios. Porém, também propõe soluções a esses problemas oferecendo uma visão duma indústria microcreditícia baseada numa forte presença estatal. E, no pano de fundo, é bem perceptível a mão de Marcelo Neri. Organizador e autor principal do livro, ele é seguramente um dos economistas mais importantes do Brasil. Formado em Economia e com mestrado pela PUC do Rio de Janeiro e doutorado pela Princeton University nos Estados Unidos, suas áreas de trabalho principais são o bem-estar social, o trabalho, e a micro-econometria.

Discutindo a oferta de crédito no país, Neri afirma que o brasileiro tende ter menos acesso a crédito (especialmente crédito para negócios) e crédito de menor qualidade do que os residentes de outros países no mesmo nível de desenvolvimento. Por essa razão, quando empréstimos são desembolsados, as taxas de juros são extremamente altas. Contudo, o Nordeste do Brasil tem passado por uma experiência que o diferencia do resto do país: o crescimento creditício urbano do Nordeste tem superado o resto do país durante os últimos anos. Chamando isso o ‘Mistério Nordestino’, Neri oferece um principal “culpado”: o programa de microcrédito CrediAMIGO.

O microcrédito, prática desenvolvida nas “últimas décadas [que] presenciaram o advento de tecnologias que possibilitaram o acesso a crédito a milhões de indivíduos excluídos do setor financeiro tradicional”, é composto de vários fatores distintos que são recapitulados no primeiro capítulo do livro mencionado. Em pouco espaço, são tocados muitos assuntos criticamente associados ao microcrédito. Desses, entre os primeiros pontos abordados, é notável a discussão sobre as assimetrias de informação baseada na literatura originalmente explorada por Stiglitz e Weiss no começo da década 1980. A análise do livro é baseada em várias pesquisas nacionais – PNAD, POF, ECINF e PME, bem como em dados do Banco Central, do Ministério de Trabalho e do Banco do Nordeste— razão pela qual o leitor também recebe uma recapitulação de como são formuladas essas pesquisas antes de proceder a análise do retrato dos nanoempreendedores e do programa CrediAMIGO.

De importância ainda maior, os autores aplicam uma pesquisa de diferença-em-diferença aos dados dos lucros dos clientes do CrediAMIGO comparando-os com os nanoempreendedores identificados pela PME. Os resultados buscam mostrar que ser cliente do CrediAMIGO causa uma melhoria nos lucros médios dos empreendedores de R$ 1.683 para R$ 1.737 (3%) durante 16 meses entre 2005 e 2006, enquanto os não-clientes verão seus lucros médios cair de R$ 860 para R$ 847 (1,5%).

Marcelo Neri, autor único do capítulo nono do livro, faz uso dele como espaço no qual explora uma ideia: por que não combinar os programas de transferência de renda atuais com programas de microcrédito para criar políticas públicas de características tanto compensatórias como estruturais, políticas tanto efetivas no curto como no longo prazo? Propõe fazer isso deixando os beneficiários do programas de transferência de renda escolher as datas de desembolso das bolsas e, assim, as quantidades (com limitações). Segundo Neri, isso simplificaria a transformação do dinheiro recebido das bolsas em garantia que poderia ser utilizada na aquisição de crédito.

Não é possível negar a importância desse livro para o estudioso e o pesquisador brasileiro do desenvolvimento econômico. Porém, é verdade que a tecnicalidade de muitas das pesquisas econométricas aplicadas pelos autores e a maneira pela qual os dados são mostrados podem ser às vezes confusas, especialmente para os não economistas. Mesmo se alguns leitores conseguissem entender uma parte do livro sem entender outras, a compreensão parcial poderia ser perigosa quando os assuntos discutidos são estatísticas. Por exemplo, muitos leitores poderiam ter entendido os resultados das melhoras de lucro dos clientes do CrediAMIGO como prova irrefutável do sucesso do programa no aumento de renda quando, na realidade, sem uma comparação de diferença-em-diferença, os efeitos do programa não poderiam ser isolados e assim corretamente medidos. (Mesmo esse tipo de análise tem sido o alvo de critica na literatura de desenvolvimento econômico recentemente. A esse respeito, ver Meyer em What’s Wrong With Microfinance.

Alguns dos capítulos do livro começam com citações de pessoas famosas falando do microcrédito. Uma das pessoas citadas é Kofi Annan, ex-Secretário Geral das Nações Unidas, segundo o qual “as micro-finanças reconhecem que os pobres são um reservatório extraordinário de energia e de conhecimento”. Isso certamente foi uma das coisas que Muhammad Yunus descobriu quando criou o Banco Grameen que serviu como padrão na criação do programa CrediAMIGO. Os dois programas de microcrédito compartilham tecnologias e incentivos dinâmicos similares, bem como um foco nas mulheres e um rendimento do crédito orientado e acompanhado.

Nacional e internacionalmente, o Banco Grameen serviu como instituição elaboradora de padrões no microcrédito. Particularmente, Muhammad Yunus trabalhou para pedir que governos retirassem leis limitando as taxas de juros que podiam ser cobradas por instituições de microcrédito e tentou atrair financiamento privado para indústrias microfinanceiras do mundo. Muhammad Yunus também trabalhou na ajuda de outras ONGs internacionais para criar um sistema internacional através do qual praticantes de microcrédito possam compartilhar seus conhecimentos.

Apesar de esse sistema incluir algumas instituições de microcrédito brasileiras (como o CrediAMIGO), o Brasil ainda não tem espaços próprios nos quais os praticantes de microcrédito possam discutir assuntos nacionais nem associações que combinem os interesses das várias instituições de microcrédito no Brasil e as representem junto ao governo na formação de políticas. Assim, além de seguir promovendo o desenvolvimento econômico no Nordeste do Brasil, seria benéfico se CrediAMIGO e Marcelo Neri também trabalhassem para ajudar nesse trabalho importante.

Referências .

DE AGHION, Beatriz Armendariz and Jonathan MORDUCH. The Economics of Microfinance. Cambridge: MIT Press, 2005.

MEYER, Richard M. Measuring the Impact of Microfinance. In: DICHTER, Thomas e HARPER, Malcolm Harper (Eds.). What’s Wrong With Microfinance? Warwickshire: Practical Action Publishing, 2007..

NERI, Marcelo (Org.) Microcrédito: O Mistério Nordestino e o Grameen Brasileiro. Rio de Janeiro: EDITORA FGV, 2008. Resenha recebida em junho de 2010 e aprovado em setembro de 2010..


Resenhista

Martin Hadsell do Nascimento – Graduado em Economia e Estudos Latino-Americanos pela American University..


Referências desta Resenha

NERI, Marcelo (Org.). Microcrédito: O Mistério Nordestino e o Grameen Brasileiro. Rio de Janeiro: EDITORA FGV, 2008. Resenha de: NASCIMENTO, Martin Hadsell do. Praticando o microcrédito no nordeste do Brasil. Ponta de Lança- Revista Eletrônica de História, Memória & Cultura. São Cristóvão, v.3, n. 6, p. 126-129, abr./out. 2010. Acessar publicação original [DR].

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