Mesmo não sendo necessária – e nem sequer desejável – a classificação de Michel Foucault nos muitos compartimentos que compõe as ciências humanas, seu trabalho pode ser entendido como um “passador de fronteiras”, que acaba por apoiar inúmeras reflexões nas mais interessantes óticas e nas mais diferentes áreas de estudo e pesquisa.
É neste contexto que se encontra a obra de Kleber Prado Filho – resultado de atividade de pós-doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em História da UNICAMP. Trata-se de um estudo realizado em um contexto que pode ser classificado como “multidisciplinar”, pois, encontra-se imerso na própria história acadêmica de seu autor: graduado em psicologia, doutor em Sociologia, além de ter desenvolvido atividades junto ao programa de pós-graduação em História na UNICAMP.
Mas, ao contrário do que possa parecer, esta obra não trata de uma exegese do conceito de governamentalidade desenvolvido por Michel Foucault, mas sim, de uma análise de vários de seus trabalhos, onde o autor acaba por tecer uma interessante análise que vincula poder, corpo e técnicas de governo, mostrando as possibilidades que Foucault abre para uma problematização de muitos outros temas dentro de questões que envolvem tanto o biopoder, como outras que se encontram no Tempo Presente.
É interessante ressaltar que Prado Filho não pretende alinhar cronologicamente a obra de Foucault, mas sim, abordar uma das óticas ainda não tão discutidas de seu trabalho: as tecnologias de governo no mundo Ocidental.
Ao propor esta análise, o autor preocupa-se em esclarecer que não se trata apenas da discussão do ato de governar apenas como um aparelho de “fazer guerra ou decretar a paz”, mas de uma tecnologia de gestão de vida e de população, que para Foucault culmina em um duplo objetivo: fazer uma crítica a um modelo unitário de poder e analisar as relações estratégicas entre indivíduos ou grupo com o governo. Prado Filho desenvolve seu trabalho dentro dessa perspectiva.
Os sete capítulos que compõem esta obra apresentam, de forma didática, a construção do conceito de governamentalidade em Foucault, com citações do próprio filósofo e interessantes interpretações do autor, conseguindo tecer relações entre os muitos trabalhos desse estudioso francês produzidos desde o final da década de 1970 até a primeira metade da década de 1980.
Nos seus três primeiros capítulos, Prado Filho busca apresentar, além da definição de governamentalidade propriamente dita, uma genealogia das práticas de governo, vinculando estas ao “governo de si mesmo”, uma vez que esta governamentalidade “(…) incide sobre os corpos indivíduos e coletivos regulando, marcando, normalizando e individualizando; induz efeitos de subjetividade, produz subjetivações; concerne à vida dos indivíduos, dirige-se à sua conduta, envolve técnicas de governo de si mesmo” (p. 19).
Certamente, esta talvez possa ser a mais interessante questão levantada no que se refere a governamentalidade, quando o autor desenvolve a idéia de que o governo apenas mantém sua governa mentalização, seu efeito “Leviatã”, a partir do momento que se encontra legitimado na subjetividade individual.
Para que esta individualização, assim como as técnicas de “governo de si mesmo” pudessem ser melhor compreendidas, o autor aponta as duas matrizes levantadas nos estudos de Foucault sobre o poder em nossa cultura: uma matriz grega e outra baseada no pastorado cristão. Assim confronta a concepção do mundo greco-romano de “governo de si”, onde se almejava “ocupar-se de si mesmo”, com a moral cristã, que declara ser necessário “conhecer-te a ti mesmo”. A discussão das diferenças entre estas duas matrizes – o “ocupar-se de si mesmo” objetivando bem-estar e buscando a “verdade” em seu exterior; e “conhecer-te a ti mesmo”, renunciando a si com princípio de salvação, e buscando a verdade dentro de si mesmo, de onde virá nascer a “hermenêutica de si” – levam o leitor a perceber as diferenças e as implicações vigentes em cada um destes modelos, assim como a maneira como a moral cristã acaba por “transbordar”.
Ao afirmar que a moral cristã “transborda” os limites da Igreja e alcança as relações íntimas, familiares, conjugais e pessoais do sujeito consigo mesmo, Prado Filho abre o quarto capítulo: A Matriz do Poder Pastoral. Esta matriz pastoral de organização governamental encontra seus fundamentos no povo hebreu, mas com a ascensão do cristianismo assume novas roupagens, e culmina em uma ética da cultura cristã, cujas conseqüências são a totalização e a individualização da população. E são estas conseqüências – de totalização e de individualização – que configurarão a marca de Estado Moderno, que nada mais é seria do que o Estado da Governamentalidade.
Assim, o quinto capítulo vem abordar o Nascimento do Biopoder, que seria o rompimento, no final do período medieval, do Estado de Justiça, quando a política centrava-se no direito de causar morte, para o exercício de uma política de poder que investe na vida: o biopoder.
Neste Estado de Justiça medieval, que se apoiava na lei e preocupava-se com a questão territorial, havia um importante fator organizador de direitos: o símbolo de sangue, a sangüinidade. Com a ascensão do Biopoder no século XVIII, o autor apresenta o descortinamento de um novo contexto político, em que a gestão passa a ser uma gestão da vida, e o sexo passa a substituir o sangue, sendo um artifício de controle da população pelo corpo: é o momento da formação da norma.
No sexto capítulo: A formação de uma tecnologia de governo, o autor busca compreender as análises em que Foucault trata das teorias sobre a formação e os objetivos da polícia no contexto da governamentalidade nos séculos XVI, XVII e XVIII, ou seja, de que maneira o governo objetivava “ter em relação aos habitantes, às riquezas, aos comportamentos individuais e coletivos, uma forma de vigilância, de controle tão atenta quanto a do pai de família” (p. 52).
Em seu último capítulo, intitulado: Para uma história da governamentalidade, Prado Filho faz uma síntese de todos os pontos desenvolvidos no decorrer da obra, afirmando que “nestas análises sobre governamentalidade pode-se ler também uma genealogia da nossa sociedade” e “dos sujeitos que somos” (p. 71), apontando a norma como predominante ao tratar-se de questões políticas do governo sobre a vida. Assim, afirma que a governamentalidade diz respeito diretamente a conduta de um grupo de indivíduos, em dimensões mais capilares, gerando um cruzamento de estratégias macro com micro-políticas, mas nunca abrindo mão da norma.
Em suma, pode-se classificar este trabalho como um guia do pensamento do filósofo Foucault, no que se refere a governamentalidade, possibilitando ao leitor uma melhor compreensão deste tema, e abrindo possibilidade de instrumentalização de pesquisas não apenas no que tange a questão governamental propriamente dita, mas aos meios de normatização da sociedade, e a construção do sujeito: de sua sujeição e assujeição.
Por tratar-se de uma leitura rápida e descomplicada, esta obra desperta interesse, não como um fim em si mesmo, mas como um guia em potencial, para a utilização dos estudos de Foucault na problematização do tempo presente.
Resenhista
Ana Claudia Ribas – Mestranda em História – UDESC.
Referências desta Resenha
PRADO FILHO, Kleber. Michel Foucault: uma história da governamentalidade. Rio de Janeiro: Insular e Achiamé, 2006. Resenha de: RIBAS, Ana Claudia. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 2, n. 4, jul./dez. 2008. Acessar publicação original [DR]
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