– ! Ay, señora Juana!
Vusarcé perdone,
y escuche las quejas de un mestizo pobre [2]
Um dos temas mais polêmicos e dramáticos do mundo contemporâneo é a invasão de imigrantes africanos ao continente europeu. Assistimos, diariamente, pela mídia, ao drama desses refugiados e à recusa dos países da comunidade europeia em abriga-los, utilizando uma série de subterfúgios. O candidato republicano à presidência da República dos Estados Unidos da América, Donald Trump, acirra o debate anunciando a expulsão do país dos mulçumanos e a construção de um muro para inibir a entrada dos mexicanos em território norte-americano, caso venha a ser presidente. O encontro/confronto entre diferentes culturas e etnias é sempre ameaçador.
Sabemos que essa polêmica não é recente. Cada época marca seu motivo. A verdade é que os movimentos de população permitiram o povoamento do mundo e significaram a expansão de etnias, línguas, religiões e conhecimento num emaranhado processo que dá ao mundo atual os traços de grande diversidade e riqueza cultural.
As chamadas Grandes Navegações, por exemplo, foram responsáveis pela colonização do continente americano a partir do século XVI e significaram a difusão da cultura dos europeus, a qual entrou em choque com as culturas das comunidades indígenas que já habitavam o território. Esse deslocamento populacional foi estimulado pelo expansionismo territorial das potências europeias da época que buscavam fontes de matéria-prima e novos mercados para seus produtos, portanto, tinham motivação geopolítica e econômica. Essa migração aumentou maciçamente no século XIX e começo do XX e resultou, além de outros fatores, na miscigenação dos povos, recriando novas características étnicas e culturais no continente americano.
A historiadora Eliane Garcindo de Sá tem estudado temas sobre o caráter desses deslocamentos e, consequentemente, o encontro/confronto entre diferentes culturas ao longo de sua vida acadêmica. Publicou vários trabalhos científicos, que trazem reflexões originais e marcadamente inovadoras sobre o assunto. A publicação do livro Mestiço: Entre o mito, a utopia e a História – Reflexões sobre a Mestiçagem é resultado do conjunto desses estudos ordenados de forma que permitem acompanhar o desenvolvimento do pensamento da autora. Baseada em significativo estudo de fôlego documental e extensa pesquisa bibliográfica, a obra é muito bem escrita ressaltando a fluidez da narrativa e erudição, colocando de maneira bastante clara os problemas levantados e conduzindo o leitor a refletir sobre questões importantes que ainda afligem nossa sociedade.
A “questão da mestiçagem” na América Ibérica fornece o eixo central em torno do qual se articulam as duas partes em que se divide o livro. Nessa obra, a historiadora também promove o debate, ainda bastante contemporâneo, sobre a tradição do pensamento social latino-americano e, através de múltipla abordagem da cultura mestiça, induz considerações sobre seu imbricamento com a construção simbólica da nacionalidade.
O Prólogo é escrito pelo professor Serge Gruzinski, detentor de alentada obra sobre a conquista e colonização da América. Em seu texto, Gruzinski justifica a opção da autora por uma abordagem latino-americana do tema: “Atualmente, inseridos em uma outra mundialização que passa por redefinição do papel continental e mundial do Brasil, nós não podemos continuar a escrever histórias confinadas na prisão das memórias nacionais”.[3]
A primeira parte do livro, “Mestiço no Universo Colonial”, é composta por quatro textos que esquadrinham uma série de problemáticas relacionadas à cultura mestiça durante o período colonial. A segunda, “Reflexões sobre o Universo Mestiço”, traz quatro textos que compõem as diferentes reflexões da autora sobre o tema. Gruzinski conclui em seu Prólogo:
Ao analisar a questão da mestiçagem, fundamental nas transformações sociais desta parte do mundo, e da emergência das sociedades coloniais, a historiadora carioca nos guia nos meandros do pensamento latinoamericano, de Buenos Aires ao México, de Sarmiento a Vasconcelos da raça cósmica, de Diego Rivera a Candido Portinari.[4]
O texto “Visões das Gentes na Experiência Colonial” dá início à primeira parte do livro e trata do impacto da grande imigração entre os continentes europeu e americano durante os séculos XV e XVI. Esse “encontro/confronto” entre sociedades e culturas distintas desorganiza todas as referências socioculturais de ambos os lados, forçando novas conexões, crenças e valores. Eliane assinala que “diante da novidade de descobertas de outras terras e outras gentes, diante do desafio das diferenças e estranhamentos” os protagonistas da formação da nova sociedade “elaboram produção em que expõem a construção de referências”.[5] Como suporte às suas reflexões, a autora usa obras dos cronistas Garcilaso de la Vega, Frei Vicente do Salvador, Felipe Guamán Poma de Ayala e Ambrósio Fernandes Brandão.
Nos três textos seguintes, “Entre os papéis da Audiência de Lima: as imagens dos mestizos”, “Os Cronistas e a Construção da Representação do Mestizo” e “Inca Garcilaso de la Vega: a representação do mestizo”, a autora optou por discutir aspectos necessários para fundamentar seus argumentos a respeito das diferentes conotações e representações sobre a palavra mestizo. Eliane Garcindo de Sá chama a atenção para o fato de que:
Os sistemas de representação forjados nas sociedades coloniais decorreram radicalmente da insuficiência patente dos recursos anteriormente disponíveis entre as sociedades “originais” em confronto. A intromissão de novos elementos obrigou à criação de novas designações, nomeações […].[6]
Essa complexidade de referências e significados é estudada com base na riquíssima documentação da Audiência de Lima (1543-1620) [7] em cotejo com os cronistas, o mestiço Inca Garcilaso de La Vega e o índio Felipe Guamán Poma de Ayala.
A segunda parte tem início com o artigo intitulado “Um Mundo ‘Uno’”, seguido de outro denominado “Ocidentalização” onde a autora analisa os efeitos da mundialização/ocidentalização nas sociedades hispano-americanas e a convergência de visões apocalípticas que marcaram os primeiros anos da Conquista da América. A historiadora ressalta a importância dos trabalhos de Serge Gruzinski, particularmente La penseé métisse [8] e a Primeira América, [9] este escrito em conjunto com Carmen Bernand, os quais consolidam questões pertinentes à ocidentalização e à perda de identidade/alteridade entre conquistadores e conquistados. O primeiro texto termina com a afirmação: “O mestiço foi, sem dúvida, um ‘outro’ construído”.[10]
Dois outros artigos compõem esse segundo bloco: “Raça Cósmica” e “Mestiço Ideal”. Chega-se, assim, à questão que norteia o pensamento da autora: por qual motivo e como se formou, no imaginário de alguns indivíduos, a conexão entre a mestiçagem e um complexo emaranhado de representações? O mexicano Jose Vasconcelos sugere uma “raça final”, a “raça cósmica”, idealiza uma “raça feita com o tesouro de todas as outras, cósmica, apontando para uma síntese superadora de uma questão que se coloca na região […]”.[11] Segundo a autora, para Vasconcelos “a mestiçagem era uma marca de originalidade ibero-americana, qualidade que marcaria as diferenças entre as sociedades na América ibérica, América anglo-saxã e ‘Velho Mundo’”,[12] entretanto o autor retira da conotação do vocábulo a negatividade presente em muitos outros escritores e cronistas.
Já o peruano Inca Garcilaso de la Vega, “diante de condições muito específicas de sua trajetória construiu e protagonizou o personagem do mestiço, que se construiu em referência dessa representação e do mito, com o qual se confunde”.[13] Garcilaso, o mestiço culto que superou sua condição social, passa a representar e referenciar o modelo do mestiço ideal. Entretanto, ao contrário de Vasconcelos, o Inca Garcilaso deixa indícios de sua visão negativa do mestiço e da mestiçagem. Nessas circunstâncias, os temas étnicos estarão no centro da discussão sobre identidade e carácter dos povos. Esse é outro ponto interessante das reflexões da autora buscando articulação entre a mestiçagem e os atributos que vão constituir as sociedades nacionais. O grande dilema dos protagonistas da independência da América espanhola foi o redimensionamento da questão nacional com a composição étnica, cuja grande maioria de negros, índios e mestiços, necessariamente teriam que estar incluídos nos projetos nacionais nascentes.
Em “Considerações Finais”, a epígrafe que abre o texto sintetiza determinadas ideias daquele contexto envolto pelo estranhamento dos “diferentes” e referências imagéticas desse confronto/encontro. Em sua fala, Garcilaso ressalta o confronto de visões em relação ao próprio continente: “[…] que no hay más que un mundo, y aunque llamamos Mundo Viejo y Mundo Nuevo, es por haberse descubierto éste nuevamente para nosotros, y no porque sean dos, sino todo uno”.[14] O cronista, que transitou nos “dois mundos”, não os entende divididos, mas como parte de uma mesma formação social, histórica e cultural. A historiadora considera que o conceito de pensamento mestiço cunhado por Serge Gruzinski é importante categoria de análise para o confronto de questões impostas pelas relações sociais durante o período de conquista. É com base nesse referencial que Eliane Garcindo de Sá conclui sua exposição de ideias: “A intensificação e o aprofundamento da mundialização, os efeitos da globalização, potencializam o fluxo e as contradições das relações entre as sociedades e suas parcelas, entre cada um e cada grupo que se autorreferencia ou é visto como um outro”.[15]
Não se pode deixar de mencionar as ilustrações selecionadas para o livro, uma vez que completam e corroboram o discurso que fundamenta a obra. No primeiro grupo, encontram-se seis ilustrações de Felipe Guamán Poma de Ayala onde, na narrativa sobre a conquista, escrevia e desenhava os acontecimentos que queria relatar. No segundo, Eliane recorre a diferentes artistas, Cândido Portinari, Jose Clemente Orozco, Diego Rivera e Emiliano Di Cavalcanti, e, através da linguagem plástica, complementa os significados com diferentes representações sobre o mestiço.
Assim, nos oito textos que compõem o livro, a historiadora consegue demonstrar sem observância cronológica rígida, porém obedecendo determinada linha de tempo, as condições que permitiram a formação de uma cultura mestiça e seus desdobramentos. Essa visão da autora está consubstanciada nas relações de encontro/confronto como nos processos de mundialização e ocidentalização. Nesse sentido, o trabalho apresenta o panorama geral das diligências da autora sobre o tema e fomenta impacto no ambiente acadêmico, uma vez que as discussões de questões relativas à mestiçagem, particularmente em países miscigenados como os da América Latina, são sempre muito relevantes. Por outro lado, as reflexões sobre raças e etnias são questões contundentes para sociedades contemporâneas na luta contra o racismo e a discriminação étnica-cultural.
Em suma, pode-se dizer que a obra de Eliane Garcindo de Sá discute, de forma muito precisa, mas dialética, problemas que contribuem de maneira importante para a compreensão de referências que explicam, em parte, nosso preconceito contra o “outro”. A documentação é densamente trabalhada, e as obras dos cronistas analisadas nos textos avaliam a presença e a função dessas obras nos contextos anterior e posterior à conquista da América. A emergência dessas ideias e as condições que permitiram a mobilização em uma sociedade majoritariamente indígena é parte relevante da obra.
O livro apresenta uma das mais importantes análises sobre a ”questão da mestiçagem”. A publicação da obra referenda e demonstra a complexidade de determinadas visões consolidadas sobre aquela que foi, e talvez ainda seja, a principal matriz histórica e cultural do continente latino-americano.
Notas
2 OQUENDO, Marco Rosas de. Nova Espanha: finais do século XVI. In: GONZÁLEZ, Luiz. El encontro de la conquista: sesenta testemonios. Mexico: Cien-SEP, 1984. p. 234-236.
3 CNRS – Centre National de la Recherché Scientifique; EHESS – L’Ecole des Hautes Estudes en Sciences Sociales. Princeton University.
4 GRUZINSKI, Serge. In: GARCINDO DE SÁ, Eliane. Universo Mestiço: resenha de Mestiço: Entre o mito, a utopia e a História – Reflexões sobre a mestiçagem. Prólogo.
5 GARCINDO DE SÁ, Eliane. Op. cit., p. 29.
6 Id., p. 63.
7 Na parte dedicada às fontes, p. 305-313, a autora identifica toda a documentação pesquisada na Audiência de Lima.
8 GRUZINSKI, Serge. La Pensée Métisse. Paris, Éditions Fayard, 1999.
9 BERNAND, Carmen e GRUZINSKI, Serge. In: Historia de Nuevo Mundo 2: (1550-1640). Mexico: Fondo de Cultura Econòmia, 1999.
10 GARCINDO DE SÁ. Op. cit., p. 61.
11 VASCONCELOS, José. La raza cósmica. Mexico: Espasa-Calpe Mexicana SA, 1948.
12 GARCINDO DE SÁ. Op. cit., p. 199.
13 VEGA, Inca Garcilaso de la. Comentarios Reales. 1ª parte. Caracas: Fundación Biblioteca Ayacucho, 1985.
14 Id., p. 159.
15 GARCINDO DE SÁ. Op. cit., p. 270.
Francisca Nogueira de Azevedo – Historiadora, professora associada do Instituto de História e do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ. Autora do livro Carlota Joaquina – na Corte do Brasil, Civilização Brasileira, 2003. E-mail: franciscazevedo@uol.com.br
GARCINDO DE SÁ, Eliane. Mestiço: Entre o mito a utopia e a História – Reflexões sobre a mestiçagem. Rio de Janeiro: Quartet; FAPERJ, 2013. Resenha de: AZEVEDO, Francisca Nogueira de. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n.15, p. 221-225, jul./dez. 2016. Acessar publicação original [DR]
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