Meninos de zinco | Svetlana Aleksiévitch

Svetlana Aleksievitch Meninos de Zinco
Svetlana Aleksiévitch | Imagem: Estadão

Svetlana Aleksiévitch é jornalista e escritora bielorrussa, nascida em 1948, quarta geração de uma família de professores rurais e vencedora do prêmio Nobel de literatura em 2015. Seus livros formam o projeto literário intitulado “As vozes da utopia”, um retrato desde o pós-guerra (Segunda Guerra Mundial) até a dissolução da União Soviética.

Em entrevista concedida durante a Festa Literária Internacional de Paraty, em 2016, Aleksiévitch contou sobre o processo de criação dos seus livros. Os relatos são gravados pois, segundo ela, não seria possível expressar os sentimentos de uma pessoa no papel, “cada ser humano tem que gritar a sua verdade”. Para que essa verdade venha à tona, a autora diz que não realiza entrevistas, mas conversas com entonação de amizade sobre a vida.

Nesta resenha, abordaremos o livro Meninos de zinco, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, em 2020. Aleksiévitch conversou com centenas de soldados russos e seus familiares sobre a invasão do Afeganistão pelas tropas da União Soviética, entre 1979 e 1989. Os monólogos são escritos em primeira pessoa, com recursos que expressam os sentimentos e reações dos narradores, por exemplo, “…”, para pausas, “(Se descontrola e grita)”, “(Começa a andar nervoso pelo quarto)”, “(Canta)”. As memórias também contemplam outros acontecimentos como a Grande Guerra Patriótica (como os soviéticos designavam a Segunda Guerra) e o colapso do regime socialista soviético.

O prólogo de Meninos de zinco é o depoimento de uma mãe que perdeu seu filho para a guerra, mesmo enquanto ainda vivo. O relato dessa mãe introduz acontecimentos comuns à maioria das falas que virão nas seções seguintes sobre os traumas físicos e psicológicos e a descoberta do mito dos “guerreiros internacionalistas”.

Na seção Do caderninho de anotações (Na guerra), Aleksiévitch recorre às suas anotações para relatar o período que atuou como repórter durante a Guerra do Afeganistão. Naquele momento, havia falta de informações além das “reportagens heroicas na TV” (p. 18), o que influenciou sua decisão de conhecer a guerra sem intermediários. Aleksiévitch se deparou com “a pessoa da natureza, e não da sociedade” (p. 29), ou seja, os soldados invocavam seus instintos naturais para se manterem vivos. Enquanto isso, a memória oficial era consolidada pelos canais de comunicação com narrativas e imagens de amizade e fraternidade entre afegãos e soviéticos. Os soldados confiavam na versão oficial de que estavam reconstruindo o Afeganistão e levando os afegãos para “o caminho certo”, que seria o socialismo e o ateísmo. Contraditoriamente, de acordo com Aleksiévitch, na guerra, todos, inclusive os soviéticos, eram crentes e supersticiosos.

Três seções do livro recebem títulos de versículos bíblicos Primeiro dia: “pois muitos virão em meu nome”, Segundo dia: “aquele morre com a alma amargurada” e Terceiro dia: “não vos voltareis para os necromantes nem consultareis os adivinhos“. Aleksiévitch justifica as citações bíblicas devido a sua procura por uma resposta sobre quanto há de humano em um ser humano. Essas seções são iniciadas com relatos da autora sobre três telefonemas anônimos que ela recebeu, sempre do mesmo homem. Ele se mostrava incomodado com as ideias pacifistas do pós-guerra e dizia que a única verdade são os soldados, sob ordens militares, morrendo ou enterrando corpos esquartejados de amigos. No entanto, o homem também revelou toda a sua revolta sobre como a pátria o traiu e o seu desejo de viver, criar seus filhos e amar. Os dilemas presentes nas falas do homem nos fazem refletir sobre os efeitos do apagamento das memórias dos que viveram e ainda vivem a Guerra do Afeganistão, bem como, sobre os efeitos de iniciativas de construção de memórias que se contrapõem às versões oficiais da guerra.

Em Primeiro dia: “pois muitos virão em meu nome“, familiares de soldados contam como passaram pela guerra sem irem à guerra, enterrando seus filhos em caixões de zinco, sem que o restante da sociedade questionasse os motivos para tantos jovens de 19 anos estarem morrendo. Alguns desses caixões continham mais areia do que restos mortais, para simular o peso de uma pessoa e trazer algum conforto para os familiares. Além da precariedade socioeconômica vivida pela maioria dos soldados que retornou à União Soviética, as mulheres sobreviventes também são constrangidas ao serem questionadas pela sociedade se suas condecorações são devido aos serviços militares ou “serviços no sexo” (p. 74).

Em Segundo dia: “aquele morre com a alma amargurada” estão registradas as memórias dos narradores do antes e do depois da guerra. Essas memórias estão permeadas pelo sonho de se tornarem heróis, como os combatentes da Grande Guerra Patriótica, e o desejo de não serem reconhecidos como veteranos da Guerra do Afeganistão. Alguns narradores sofrem e choram ao não se reconhecerem mais, ao procurar pelas pessoas que eram e sonhavam se tornar antes da guerra. No entanto, não aceitam ser tratados como vítimas de um regime político, buscam o reconhecimento por cumprirem com o seu dever internacional. Questionam onde estava a sociedade, inclusive a autora, enquanto o que hoje eles denunciam estava de fato acontecendo.

Em Terceiro Dia: “não vos voltareis para os necromantes nem consultareis os adivinhos“, as memórias se cercam de amizade, ajuda mútua, lirismo e hospitalidade. No entanto, também estão presentes nas narrativas a falta de acesso aos serviços básicos pelos sobreviventes, o julgamento da sociedade pelas mortes causadas, o sentimento de culpa das mães por permitirem seus filhos irem à guerra, o desejo de ter morrido em combate, pois, talvez mortos, seriam reconhecidos como heróis.

Post mortem é uma seção curta que apresenta inscrições contidas nas lápides de alguns soldados. Todas as inscrições mencionam o cumprimento do dever internacional e a lealdade à pátria e ao juramento militar. Causa-nos comoção pensar que justamente o que os levou à morte é o que está relevado nos seus túmulos.

O julgamento de meninos de zinco (a história nos documentos) encerra a obra com reportagens, cartas e registros de audiências sobre o processo judicial impetrado por narradores que questionam a veracidade e efeitos difamatórios de partes do livro publicadas no jornal Komsomólskaia Pravda, em 1990. O julgamento atraiu e dividiu a opinião pública. Mães acusam Aleksiévitch de fazer fama e dinheiro às custas de suas memórias, enquanto elas não têm dinheiro para comprar remédios e flores para os túmulos dos seus filhos. Soldados a acusam de manchar a imagem da União Soviética e daqueles que combateram em cumprimento do dever militar. Outros soldados, representantes de organizações de direitos humanos, partidos políticos e escritores defendem o direito de a sociedade conhecer a violência cometida pela União Soviética ao Afeganistão, para evitar que acontecimentos trágicos similares se repitam. Nas falas públicas dos acusadores, observamos as influências das memórias coletivas e oficiais sobre a guerra. Essas falas denotam preocupação com o julgamento social ao narrarem sentimentos de arrependimento e culpa, frente à derrota da União Soviética no Afeganistão, em contradição com a versão oficial do regime comunista. A sentença judicial dá ganho de causa parcial aos acusadores, envolvendo pedidos de desculpas e indenizações em dinheiro, o que evidencia os desafios que a liberdade de expressão ainda enfrenta na Rússia atual.

Destacamos como Aleksiévitch mostra o ser humano além da dor profunda na guerra e no pós-guerra. Em Meninos de zinco, a guerra do Afeganistão também é narrada como lugar de amizades, amores e liberdade ao revelar as incoerências do regime totalitarista da União Soviética. Assim, a obra enaltece o encanto da autora com a capacidade da linguagem falada de recuperar sentimentos com precisão, “Eu sigo sentimentos, não acontecimento” (p. 28).


Resenhista

Raquel Fernandes de Araújo Rodrigues – Doutoranda em Mudança Social e Participação Política pela Universidade de São Paulo (USP), com orientação da Profa. Dra. Silvia Helena Zanirato. E-mail: raquelfernandesaraujorodrigues@gmail.com  ORCID iD 0000-0002-2282-6466


Referências desta Resenha

ALEKSIÉVITCH, Svetlana. Meninos de zinco. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. Resenha de: RODRIGUES, Raquel Fernandes de Araújo. Uma guerra nunca acaba: memórias da Guerra do Afeganistão. História Oral. Rio de Janeiro, v. 25, n. 1, p. 271-274, jan./jun. 2022. Acessar publicação original [DR]

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