Memórias em narrativas orais: história oral e oralidades sob os dilemas da cultura  / Escritas / 2017

Memórias hostis: O rumor de vozes em escritos

“Morta” sob condições degradantes em um campo de trabalhos “correcionais” (Vtoraïa Rechka) aos redores da cidade de Vladivostok, extremo oriente da então URSS, a voz de Ossip Mandesltam (1891-1938) – poeta e ativista político – é memória em projeção graças à Nadejda Mandelstam, a esposa, e acima de tudo um diário orgânico desse “acervo” político-poético, permitido à publicação, a partir dos anos 60. Pelo trânsito de séries ou pela oralidade na busca de outros “corpos”, Mandelstam nos faz auscultar os ruídos subterrâneos de suas histórias e poéticas revolucionárias.

Sob o diapasão de Paulo Bezerra, “O Rumor do Tempo e Viagem à Armênia”, escrito originalmente em 1925 e publicado no Brasil em 2000, testemunha a voz se fazendo escritura. Mandelstam (2000, p.92), em relatos autobiográficos, erige força perlocutória ao “tramar” críticas sócio-políticas por sua radicalidade discreta: “Não quero falar de mim, mas seguir de perto o século, o rumor e a germinação do tempo. Minha memória é hostil a tudo que é pessoal. Se dependesse de mim, eu me limitaria a franzir o cenho ao recordar o passado […] repito, minha memória não é amorosa, mas hostil, e não trabalha a reprodução, mas o descarte do passado. ”

Suas gradações, ao revolver o tempo com a memória, tangenciam por esses pontos de articulação labores filosóficos desconsiderando a história como um continumm pontual e homogêneo. Mandesltam (2000) concede ao passado narratividade no presente e também no futuro. História ressemantizada para a uma “multaneidade espectral do tempo”.

Essa Verb(v)e petulante, ao chamar Stálin de assassino de camponeses: “Vivemos sem sentir o país sob os pés / Nas vénias da semigente ele brinca com gozo / Um assobia, o outro geme, aquele mia  / Só ele trata por tu, escolhe companhia / Como ferraduras, lei ‘trás de lei ele oferta / Em cheio na virilha, olho e sobrolho e testa / Cada morte que faz — crime malino / E o peitaço tem amplo, ossetino” encontra convergência, de certo modo,  com Walter Benjamin e suas abordagens sobre “história da cultura” não desvinculada das questões culturais e dos contextos sociais e políticos.

Benjamin (1996), nesse possível diálogo urdido com Mandelstam, em hipótese alguma é evocado pelo desejo salvífico de vozes da subalternidade, mas sim pela potência da experiência conferida ao ato de ouvir e narrar, ato este que nos acomete em saltos, erupções, portanto nunca programado ou administrado pelo continumm ditado pela teleologia do discurso da modernidade. Lembremos que o autor das “Teses sobre o conceito de história” descreve a história desse continumm como a sucessão de acontecimentos que levaria o progresso da modernidade à tempestade avassaladora e implacável da catástrofe. Para construir caminho diverso, ainda dialogando com o autor, talvez seja necessário apreender o instante da memória no salto, na emergência, um exercício pontilhado pelas cicatrizes de traumas, o apelo à singularidade, diferença e riqueza presentes no tomar e retomar experiências advindas do ouvir e narrar. Nesse sentido é que exploramos as portas que se abrem para a oralidade.

Para esse preâmbulo, algumas dessas considerações “subversivas” de Benjamin (1996) merecerão referência e breves comentários:

“Os partidários do historicismo… identificam-se afetivamente com o vencedor” (Tese VII).

Incide sobre muitas pesquisas o velho-novo hábito de ignorar ou contar pelas astúcias eufêmicas os desastres humanitários e, especialmente, as violências praticadas a mulheres e a crianças. Precisamos, como diria Benjamin (1996), re-escovar essas narrativas “paradigmáticas”. Certamente, por meio de operações descolonizadoras compulsadas pelas falas historicamente mais “abafadas”. Seriam essas falas re-fluxo histórico e narrativo conduzindo o dúctil e complexo mecanismo da consciência

“Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo[…]. ” (Tese VI)

A história cristalizada certamente não desbrota das vozes provindas das barbáries e da exploração. De fato, o passado não pode ser mimetizado (seja por imitação ou emulação) tal como ele foi, mas mesmo na busca de seus lampejos, as histórias do ponto de vista dos ditos “vencidos”, dos excluídos e dos “dominados” precisam de vazão, principalmente, pelas mediações provenientes dos exercícios de escuta…

“Não há nenhum documento de cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento de barbárie” (Tese VII). ”

“Caboclos bravos”; “líderes martirizados”; “o morto que não morre”; “meninas do instituto”; silêncios falantes; “ Os Tapiocas e os Henriques”; “coisas de caruanas passadas só de ouvidos” aos rezadores e “encantados da terra”, dentre tantos da sombra do terror e da violência, em suas mais variadas versões, ou do in-dizível na busca de pactuações para refração testemunhal dos “condenados da terra”, essas texturas têm vários tons, tramas e tipos. São documentos da intolerância, injustiça, opressão política, violência religiosa e de gênero, repressão e desigualdade. Instaurar um contra estado de exceção seria refutar a dominação histórica-política imposta a essas vozes, amplificando-as e, acima de tudo traduzindo-as dos interditos e de suas invalidações para e por diversas territorialidades. É preciso, especialmente nas searas acadêmicas mais hostis, construir traições àquilo mesmo que se dedique fidelidade.

Sob o dilema de alforriar dos “ventos absolutos”, pelas argúcias das re-adaptações, das contestações e dos redimensionamentos das experiências – sejam por quais exercícios interpretativos – eis o que, de certa maneira, pulsará desse Dossiê: “Memórias em narrativas orais: história oral e oralidades sob os dilemas da cultura”.

Ao analisarem memórias advindas de experiências escolares compulsórias “legitimadas” pelas práticas estatais re-colonizadoras: Tomaz Martins da Silva Filho, José Damião Trindade Rocha e Jocyléia Santana dos Santos, no artigo “Educação Prussiana Liberal: A Gênese Histórica do Modelo Militarista de Educação no Tocantins”, descrevem um histórico para o discurso prussiano de educação, pelas recepções no Brasil, em especial no estado do Tocantins, as práticas “espartanas” de pedagogias militarizantes.

O próximo conjunto de artigos desvela, analisa e, até mesmo, desnuda memórias daqueles, por suas histórias de vida, experimentando espoliações materiais e simbólicas: Érika Oliveira Amorim e Maria Beatriz Nader em -“Rompendo o Silêncio da Memória: História Oral e Narrativas de Violências no Interior de Minas Gerais”- apresentam os relatos de Margarida (nome fictício), uma das mulheres entrevistadas para a pesquisa “Mulher e Patriarcado: um estudo de caso sobre a violência contra a mulher em Carangola – MG (2006-2016) ”. O leitor é conduzido para um universo discursivo cujas demarcações se assentam na “tríade silêncio-denúncia-enfrentamento. Na escrita de Rita de Cássia Domingues Lopes – “Na Luta Pelos Seus Direitos: Memória e Identidade de uma  Comunidade Remanescente de Quilombo no Norte do Tocantins”- a Comunidade Remanescente de Quilombo Ilha de São Vicente, localizada em Araguatins, região do Bico do Papagaio, norte estado do Tocantins, refaz um caminho de volta, em busca de seus direitos territoriais, por memórias fazendo eclodir suas territorialidades física, ambiental e simbólica. Em – “História de Muitas Vidas: Memória dos Índios do Piauí” – Rafael da Silva Assis e Euclides Antunes de Medeiros, “sob o fio da memória de famílias indígenas remanescentes dos indígenas Pimenteiras do Território Serra da Capivara-PI”, “estruturas de sentimentos” despertam os espectros de uma “memória proibida” atestando a existência de matrizes indígenas em populações do estado do Piauí. O artigo de Janailson Macêdo Luiz – “Essa é a História Nossa, do Meu Tempo pra Cá”: Memória, Poesia e Martírio no Documentário Expedito, em Busca de Outros Nortes” – formula contribuição sobre as operações transmissíveis da oralidade / poesia se fazendo memória e sentidos de resistência por outros códigos. Transcodificando o oral para o imagético, contra memórias pelo documentário, desvelam práticas de violência e de resistência da vida-morte de um sem número de “Expeditos” migrando pelas Amazônias.

Os últimos três artigos desse Dossiê advêm dos intensos fluxos e / ou re-fluxos de mediações religiosas no Brasil. Edimilson Rodrigues Souza, em “Romarias como Mecanismo de Luta Pela Terra”, analisa, a partir de experiências etnográficas no estado do Tocantins, romarias da terra e da água organizadas por grupos locais e por setores progressistas da igreja católica (Comissão Pastoral da Terra e Conselho Indigenista Missionário). Para o autor, os líderes martirizados passam a atuar na mediação, tradução e movimentação dos grupos, o que significa dizer que o morto não morre, retroalimentando a luta pela terra. Hermes de Sousa Veras, em “Apreensão Cosmológica de Livros em Religiões de Matriz Africana no Pará: Alguns Elementos Etnográficos”, partindo de um exercício etnográfico junto a um terreiro de Mina Nagô na Amazônia paraense, estuda as formas como as pessoas de santo apreendem livros sobre o universo afro-brasileiro. Para o autor, férteis leituras para as relações entre o conhecimento letrado e o oral e entre o saber nativo e o antropológico podem resultar. Encerrando as análises sob tramas e seus sentidos advindos de experiências religiosas, bem como esse Dossiê, o artigo de Jerônimo da Silva e Silva “No Calcanhar… Os Encantados da Terra” Concepções de Diásporas em Cosmologias Amazônicas” é um exercício epistêmico em osmose com os pensamentos de Stuart Hall, “no contexto estratégico da diáspora”. Esse fazer antropofágico da categoria, pela “multiplicidade e emergência de seus sentidos”, relata parte dos percursos diaspóricos  de uma rezadeira e narradora de “romanços” e sua respectiva interação cosmológica com entidades do universo da encantaria amazônica.

Essa edição da Revista Escritas, além dos artigos compondo o Dossiê, também conta um espaço dedicado às temáticas livres. Os dois primeiros re-tratam, respectivamente, a imprensa e o perfil das elites políticas. Eduardo de Melo Salgueiro, em “História da imprensa e jornalismo agronômico: possibilidades de pesquisa,” discute o potencial da imprensa agronômica como fonte de pesquisa. Segundo o autor, esse segmento midiático é farto de periódicos que discutem questões políticas relacionadas ao universo rural, mas faz a ressalva de que boa parte dos historiadores dá pouca atenção a essas informações. Lívia Maria Silva Alves e Manoel Ricardo Arraes Filho, em “História política: origem social dos deputados estaduais do Piauí (1994-2010)”, traçam um perfil socioeconômico para parlamentares piauiense no interregno, dando acesso, assim, a um detalhado perfil da elite política daquele estado.

Os dois artigos em seguida apresentam pesquisas de trato cultural. Eles são “Paisagens ideológicas: monumentos e edificações católicas em Araguaína-TO”, um trabalho em coautoria de Plábio Marcos Martins Desidério, Marcelo Trilha Muniz e Súsie Fernandes Santos Silva; e “O antipetismo religioso: a demonização dos governos petistas a partir do discurso umbandista” de autoria de Léo Carrer. O primeiro texto apresenta um estudo, calcado a partir da geografia cultural, sobre os monumentos e edificações católicas da cidade de Araguaína-TO. Para os autores, são eles paisagens simbólico-ideológicas. O segundo texto, por outro lado, estuda relações da polarização política no Brasil atual com supostos discursos religiosos. Ancorado em alguns pressupostos da análise do discurso, o artigo, tendo como referência a polifônica obra “O Partido – projeto criminoso de poder”, discorre sobre uma proposta esotérico-espiritualista desejando interpretar acontecimentos políticos recentes.

Finaliza a seção o texto “Obrigatoriedade e resistência: poder público e vontade popular em combate no campo da Educação escolarizada”, de Wesley Silva. A autoria analisa algumas tensões entre o Estado, por uma proposição de escolarização compulsória, e famílias de “camadas populares” da cidade de Belo Horizonte, nas décadas de 1920 e 1930.

Nas linhas iniciais dessa apresentação, a escolha pela poética de Mandesltam não fora fortuíta. Falar, hoje, de quem sofreu “todas” as torturas físicas e psíquicas possíveis significou também falar da memória, em todas as suas possibilidades, inclusive suas  intensas e imprevisíveis projeções. O poeta declamava oralmente seus versos sob o medo e à censura da época. Mulher e amigos memorizavam e re-codificavam esses manifestos do horror. Se a oralidade emerge como uma lança a correr outros códigos, transpassando e esgarçando os dilemas e vicissitudes da cultura, talvez a referida propriedade se justifique pela relação intensa entre o devorar e o falar, ouvir e narrar, um ato predatório beligerante, guerreiro, visivelmente ancorado na recepção antropofágica das vozes de Mandelstam.

Boa digestão…

Referências

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. In: Magia e Técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1996.

LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005.

MANDELSTAM, Ossip. Guarda Minha Fala para Sempre. Tradução de Nina Guerra & Filipe Guerra. Lisboa: Assírio & Alvim, 1996.

______________, Ossip. O Rumor do Tempo e Viagem a Armênia. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2000.

Hiran de Moura Possas – UNIFESSPA.

Jeronimo da Silva e Silva – UNIFESSPA.

Idelma Santiago da Silva – UNIFESSPA

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[DR]

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