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Memórias e narrativas: história oral aplicada | José Carlos S. B. Meihy e Leandro Seawright

O livro “Memórias e narrativas” dos historiadores José Carlos Meihy e Leandro Seawright é por um lado uma introdução ao campo da história oral, escrito para pesquisadores iniciantes – acadêmicos ou não – que se veem envolvidos nos desafios de estudar e trabalhar com a memória de expressão oral; mas por outro lado, ele é também uma sistematização dos conceitos, reflexões e teorias desenvolvidos pelos autores ao longo de suas trajetórias acadêmicas e de atuação, sobretudo como integrantes do Núcleo de Estudos em História Oral da Universidade de São Paulo (NEHOUSP). A generosidade do livro está justamente aí: ao apresentar a complexidade do campo da história oral, os autores explicitam seus posicionamentos frente a esse cipoal, desembaraçando os caminhos a serem percorridos pelos neófitos pesquisadores que se debruçam sobre a memória e a história.

O perfil didático do livro – reafirmado pelos boxes que destacam partes do texto ao longo de todos os capítulos – incorre por diversas vezes em um esquematismo que, embora evite simplificações, no mínimo atalha os debates e as contradições das abordagens sobre história oral. Considerando que não são objetivos dos autores desenvolver essas reflexões nem se aprofundar no estado da questão da história oral, eles apresentam os contrapontos apenas à medida que chamam atenção para riscos e erros a que o historiador oral está sujeito. É o que se verifica, por exemplo, na Leitura Complementar do primeiro capítulo, denominada “Memória de expressão oral: em busca de um estatuto”, sobre a famigerada querela entre os que “professam a manutenção da história oral como complemento e outros [que] propugnam a sua independência e autonomia” (MEIHY; SEAWRIGHT, 2020, p. 52). Os autores demarcam sua defesa por esta última definição como característica do campo da história oral e a caracterizam, para além disso, como uma metodologia que possui “procedimento procedente organizado de investigação, de comprometimento doutrinário e filosófico, orientado para a obtenção de resultados a partir de um núcleo documental específico” (MEIHY; SEAWRIGHT, 2020, p.56).

Ironicamente, a apresentação das especificidades desse campo autônomo de atuação e de reflexão contrastam com a posição periférica a que é relegada a história oral no Departamento de História da USP, de onde proveem os autores e o próprio NEHO. Tanto no conjunto das disciplinas obrigatórias quanto no conjunto das disciplinas optativas para o bacharelado em História, não há oferta de nenhum curso que tenha como discussão central a história oral1.Desse modo, é possível formar-se historiador na USP sem percorrer minimamente as discussões mencionadas no livro. Portanto, presume-se que os conceitos e metodologia apresentados por este livro sejam recomendados inclusive para os egressos dos cursos de história, não só pela sua utilidade prática, mas também pela apresentação de reflexões, a partir de uma teorização significativa para a atuação em história oral.

São pressupostos do livro que o trabalho com a memória de expressão oral já superou os debates acadêmicos e tem envolvido diversos coletivos e empresas empenhados em valorizar as narrativas e memórias de determinados grupos sociais acerca de um local ou tema específico. Por isso, os autores pretendem oferecer dimensões práticas e úteis sobre como desenvolver um trabalho no campo da história oral, e apresentar significativas reflexões críticas não só para acadêmicos. Trata-se da aplicação da história oral, já revelada no subtítulo. A começar a ler o livro pelos paratextos – elementos que acompanham o texto em si e servem para apresentá-lo, identificá-lo, auxiliando na leitura –, na quarta capa, se lê: “Memória e História podem parecer, para muitos, apenas denominações distintas de técnicas que visam ao resgate do passado” (grifo meu). O leitor iniciado nas discussões historiográficas ficaria espantado com a conotação dada por esse trecho a um passado que poderia ser atendido, cuidado e ressuscitado. Quando se pensa na dinamicidade da Memória, então, essa consideração do transcorrido como objetivamente palpável subordina o trabalho mnemônico e a elaboração subjetiva dos fatos, restringindo-os à verificação dos depoimentos. No entanto, não se pode julgar o livro pela quarta capa. Os autores não compactuam com essa concepção. Na página 86, por exemplo, escrevem: “Memória – individual ou coletiva – é movimento dinâmico e mutável. Por isso, não se pode falar em ‘resgate da memória’, como se o processo de ‘recordação’ fosse reintegrado de maneira integral no conjunto mnemônico das comunidades”.

Há outras significativas contribuições a partir de conceitos e reflexões para a valorização das memórias e narrativas. A começarmos pelas orientações éticas do trabalho com memória, os autores destacam o cuidado que se deve ter com os interlocutores, desde a elaboração dos projetos que orientarão as entrevistas até a transformação da entrevista oral em documento escrito.

Em relação às entrevistas, os autores evidenciam a importância desse momento em que os entrevistados elaboram sua memória a partir dos questionamentos e do ambiente a que são submetidos. Embora a memória seja exteriorizada oralmente, é necessário que os entrevistadores estejam atentos à performance total dos seus interlocutores. Estes deverão ser estimulados a desenvolverem ideias e impressões, por isso a importância de não serem elaboradas perguntas limitadoras e fechadas. É preciso perceber as pausas, os gestos, as variações na fala, as emoções, os silêncios. Os autores alinham-se à afirmação de Ecléa Bosi: “cabe a nós interpretar tanto a lembrança quanto o esquecimento” (2003, p. 18). E nesse esforço interpretativo está a importância do caderno de campo, um diário íntimo, em que os pesquisadores deverão anotar suas impressões e outras observações sobre o transcorrer das entrevistas. Ele será útil na transcrição das entrevistas.

No entanto, como os autores insistem em destacar, entrevistas isoladas e independentes não se constituem em história oral. Para tanto, é preciso elaborar um projeto: definir o tema que será trabalhado, quais são os objetivos pretendidos, estipular o grupo de interlocutores, a colônia e sua rede; elaborar a justificação, estabelecer qual será o corpus documental; e levantar hipóteses. O projeto norteará todo o percurso a ser desenvolvido, servindo como referência e coesão para as entrevistas, sem que isso signifique rigidez, tampouco intransigência. É preciso aceitar e incorporar as imprevisibilidades que surgirem no meio do caminho. Ao final, a “história do projeto” será escrita e exposta justamente como forma de elucidar a todos a trajetória do trabalho, os pontos de partidas escolhidos, os desvios, as decisões, as correções.

O protagonismo dos interlocutores é primordial. Eles não devem ser considerados como depoentes, objetos da pesquisa nem informantes, mas como colaboradores. São eles que irão desenvolver o trabalho conjuntamente com os pesquisadores. Devido à vocação pública dos projetos de história oral, ao seu sentido democrático e ao seu apelo social, eles devem ser desenvolvidos para e com os colaboradores, em consonância com as suas demandas. Ainda que seja destacada a contribuição da contradição, buscar ouvir grupos que se contrapõem aos interlocutores prioritários, como exercício democrático, pode revelar a complexidade do tema. A relação estabelecida com os colaboradores deve ser ética e empática. Na abordagem de memórias difíceis, os pesquisadores devem respeitar as recusas em prosseguir ou se aprofundar em determinados assuntos. O diálogo será bem-sucedido apenas a partir da confiança construída entre os interlocutores e os entrevistadores. Por isso, os autores indicam que deve ser feita mais de uma entrevista ao longo do tempo para que os sujeitos se conheçam e estabeleçam relações de maior proximidade. Nesse sentido, os autores tangenciam o tema das entrevistas por meio de aplicativos de reuniões virtuais. Embora eles considerem o diálogo virtual e não o desprezem no trabalho com história oral, eles apontam a conveniência de se estabelecer pelo menos um primeiro contato presencial para que as pessoas se conheçam minimamente.

Como este livro foi publicado em maio de 2020, ele foi finalizado às vésperas do distanciamento social que vem ocorrendo pela pandemia. Ao longo dos 16 meses de isolamento (e contando) muitos trabalhos de história oral não puderam ser paralisados, de modo que eles tiveram que ser adequados às exigências sanitárias e, com isso, os pesquisadores foram impelidos a criar, inventar ou adequar metodologias de entrevistas para manter o diálogo com os colaboradores e executar os trabalhos pendentes. Assim, os recursos e aplicativos digitais foram instrumentos providenciais, embora impregnados de limitações. Por isso, a reflexão crítica sobre a relação entre história oral e o uso desses tipos de tecnologia deverá ser revisitada e aprofundada, não só em edições posteriores, mas em outros esforços teóricos.

Ainda no campo da ética e da empatia, os autores desenvolvem o conceito de transcriação. Inspiram-se nas concepções de liberdade da tradução de poemas propostas por Haroldo de Campos. Trata-se da transcrição das entrevistas como um processo artesanal e criativo. Os colaboradores participam centralmente e têm a decisão final do que poderá ser registrado ou deverá ser suprimido. Como concebido pelo livro, as entrevistas não são o fim da história oral, mas sim um meio para se atingir a materialidade documental que possibilite condições para a análise. Nesse sentido, “o que interessa é a boa recepção do escrito, fato que implica pensar que as ideias são mais relevantes do que a transposição perfeita das palavras.” (MEIHY; SEAWRIGHT, 2020, p. 133). Essa transformação da oralidade em escrito é um procedimento que consiste em desnaturalizar a memória disparada pela fala, expressão de humanidade, dando nova forma. Ao cabo, o tratamento dado às entrevistas deve visar tornar a memória de expressão oral compreensível, respaldando-se na livre performance e no protagonismo do colaborador.

Nota

1 A grade curricular do bacharelado em História na USP pode ser verificada em: https://uspdigital.usp.br/jupiterweb/listarGradeCurricular?codcg=8&codcur=8030&codhab=103&tipo=N. Acesso em: 24 jul. 2021.

Referências

BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê, 2003.

MEIHY, José Carlos S. B.; SEAWRIGHT, Leandro. Memórias e narrativas: história oral aplicada. São Paulo: Contexto, 2020.


Resenhista

João Lorandi Demarchi – Universidade de São Paulo. E-mail: joao.l.demarchi@gmail.com


Referências desta Resenha

MEIHY, José Carlos S. B.; SEAWRIGHT, Leandro. Memórias e narrativas: história oral aplicada. São Paulo: Contexto, 2020. Resenha de: DEMARCHI, João Lorandi. Caminhos para história oral: do projeto à transcriação. Revista Iberoamericana do Patrimônio Histórico-Educativo. Campinas, v. 7, 2021. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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