RODEGHERO, Carla Simone. Memórias e combates: uma história oral do anticomunismo católico no Rio Grande do Sul. São Paulo: Letra e Voz, 2017. 264 p. Resenha de: MONTYSUMA, Marcos Fábio Freire. Uma história do medo: o anticomunismo católico no Rio Grande do Sul. História Oral, v. 21, n. 2, p. 177-180, jul./dez. 2018.
Antes de me dedicar ao conteúdo principal da obra Memórias e combates: uma história oral do anticomunismo católico no Rio Grande do Sul, chamo a atenção para a peculiaridade de sua capa. Criada e diagramada pelo Estúdio Xlack, apresenta uma foto (de 1941) que retrata o dormitório do Seminário de Gravataí, com aproximadamente treze jovens em posição de sentido entre as camas. A capa é composta em preto e branco, sob película plástica transparente, vazada pelo símbolo do comunismo – foice e martelo cruzados. Os jovens que essa imagem dá a ver estão entre aqueles que seriam preparados para retransmitir a mensagem de combate ao comunismo.
Carla Rodeghero inicialmente apresenta as circunstâncias sob as quais a obra foi concebida e executada, e expõe o conteúdo que ocupa lugar central na sua investigação: o anticomunismo praticado pela igreja católica. Ele consiste em “uma postura católica que teve abrangência espaço-temporal bem mais ampla do que tal decorre – se manifesta em situações concretas e em temas relacionados ao período em questão” (p. 21). A seguir, demonstra como se processou a “construção de um imaginário [que] […] demarcava o campo dos ‘inimigos’ do catolicismo e da civilização ocidental, inimigos representados por […] comunistas ou [o que era] encarado como comunismo” (p. 21).
A obra abrange o período que se estende de 1945 a 1964, e está dividida em cinco capítulos. O primeiro trata das fontes orais – as perspectivas teóricas e metodológicas em que se apoia a construção de fontes –, e discute como ocorre a recepção e reprodução dos discursos anticomunistas, percorrendo a literatura relativa ao tema. O segundo capítulo discute aspectos relacionados à Espanha e México, em cujos territórios ocorreram embates envolvendo a igreja e suas posturas concernentes ao comunismo – as lembranças externam conteúdos relacionados às recepções da campanha anticomunista. O terceiro capítulo, Esse tal comunismo, aborda como a mensagem sobre “comunismo” ou “anticomunismo” é discutida num grupo de leigos católicos no Rio Grande do Sul – suas lembranças e seus interlocutores. O quarto capítulo aponta os conteúdos interpretados pelos líderes católicos como ameaças comunistas e a sua transmissão aos fiéis e aos católicos em formação clerical. O quinto capítulo deslinda os combates entre católicos e comunistas, mais precisamente entre a Liga Eleitoral Católica (LEC) e o Partido Comunista Brasileiro (PCB).
Carla Rodeghero se preocupa em historicizar brevemente os partidos comunistas PCB e PCdoB, atuantes no Brasil, para que seus leitores possam compreender a temática do comunismo naquele contexto.
A historiadora inicia a revisão literária com Rodrigo Patto de Sá Motta, que pesquisa o anticomunismo na história brasileira. Motta indica que ocorreram ondas anticomunistas no Brasil, e registra dois momentos de abrangência, de 1935 a 1937 e de 1961 a 1964. O anticomunismo esteve presente de modo mais contundente nos meios empresariais, católicos e militares, e também vicejou na grande imprensa.
Rodeghero também recorre ao estudo de Dulce Pandolfi, para quem o PCB, no governo Goulart, desempenhava destacado papel político. A respeito das preocupações do empresariado em combater o comunismo, dialoga com a brasilianista Bárbara Weinstein. Essa pesquisadora pontua a criação do chamado Sistema S, Serviço Social da Indústria (Sesi) e Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), na qual é possível distinguir preocupações que podem ser entendidas como de prevenção ao comunismo. Dos trabalhos de René Dreifuss, a autora destaca certo modus operandi de organismos como o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), que promoviam campanhas de desestabilização do governo Goulart, com o fim de criar caos econômico e político. Aponta que Carlos Fico encontrou vasto material produzido pelos órgãos de segurança do regime civil-militar de 1964 a 1985, escritos que expressavam preconceito ao se reportarem aos autores de teatro, jornalistas, cinema, TV, classificando o ambiente cultural e de notícias como dominados por comunistas. Rodeghero salienta ainda o trabalho de Carla Luciana Silva, que examina políticas anticomunistas em outros períodos.
Carla Rodeghero sinaliza que as ondas de combate ao comunismo são muito mais dinâmicas e extensas que o apontado inicialmente, donde se pode interpretar que o chamado anticomunismo seria uma condição permanente na vida política brasileira. O estudo é muito bem-fundamentado teórica e metodologicamente. Através da história cultural, deslinda o modo como seus entrevistados agiam, movimentando-se “entre as maneiras de representar o que é comunismo e formas de combatê-lo” (p. 35). Rodeghero ancora-se em Roger Chartier para discutir o conceito de representação, um marco que dá sentido à análise das narrativas dos sujeitos que entrevistou, e alinhava, assim, um diálogo que facilita ao leitor compreender as diversas perspectivas contidas nos discursos e práticas sociais.
O conceito de imaginário social, de Cornelius Castoriadis, é também útil para interpretar o discurso anticomunista. Essa prática discursiva consiste em evocar imagens que, expressas pelos mecanismos de linguagem, constroem sentido para um certo objeto. O discurso anticomunista observado pelo prisma do imaginário social toma forma concreta no quotidiano da sociedade interiorana sob análise, conforme se demonstra claramente através dos relatos apresentados.
Bronislaw Braczo é acionado para proporcionar a compreensão da ocorrência dessa imaginação que enuncia e significa o discurso anticomunista, que aponta como determinados conteúdos são associados ao comunismo. O fenômeno social (combate ao comunismo) ocorre no tempo presente, mas se relaciona ao mesmo tempo a uma projeção do “[…] futuro e à construção/ reconstrução do passado” (p. 37). A pessoa que enuncia combina aspectos e acontecimentos que não necessariamente tinham aquele sentido histórico, mas com aquele sentido são trazidos para o presente e assinalados como perigosos para o futuro – como se aquele sentido tivessem, porque nas imagens descritas no discurso anticomunista passam a ter aquela explicação.
O texto de Carla Rodeghero é claro quanto ao perfil constitutivo do discurso anticomunista, que ocorre carregado de sentidos, emoldurando grupos, sujeitos e situações como comunistas. Esses aspectos são facilmente demonstrados em fontes variadas, mas aparecem sobremaneira nos relatos orais. A autora estuda o fenômeno da recepção dos discursos anticomunistas amparada em Michel de Certeau: “[…] o ensaio de Certeau sobre leitura permite questionar o papel da escrita e da leitura no âmbito da Igreja […]” (p. 39). Recorre consistentemente à história oral também para explorar esse aspecto, e aproveita o ensejo para fundamentar esmeradamente o uso da metodologia. O texto indica compreensiva bibliografia de referência, com autores de renome nacional e internacional que, ao descrever suas efetivas práticas de pesquisa, aportam ao campo relevantes contribuições.
Estamos diante de um rico e bem-acabado trabalho de história oral. Ainda que o estudo seja de um aparente caráter local (concentrado no Rio Grande do Sul), ele se projeta nacional e internacionalmente. O comunismo e o anticomunismo construídos através dos discursos do medo carregam um apelo que transpõe fronteiras. Posto que esses discursos e a consequente pregação de ódio se mostram bem vivos na onda conservadora que assola o Brasil (e o planeta), arrisco dizer que a autora tem tema permanente para a continuidade de suas pesquisas.
Marcos Fábio Freire Montysuma – Professor das disciplinas de História Oral e História do Brasil Contemporâneo no Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: mmontysuma@gmail.com.
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