A obra “Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano”, fruto da tese de doutoramento da escritora Grada Kilomba, foi publicada inicialmente na versão em inglês no Festival Internacional de Literatura, em Berlim, no final de 2008. A sua versão em português ocorre apenas 10 anos depois, sendo necessária, segundo a autora, a inclusão de uma introdução para abarcar, problematizar e explicar como seriam traduzidas algumas terminologias para a língua portuguesa, marcada por um histórico de herança colonial e patriarcal.
Grada Kilomba inicia sua obra explicando que a adaptação em algumas palavras, ocorre justamente para deixar evidente a tentativa de desmontar uma linguagem tradicionalmente reduzida ao gênero masculino, com origens coloniais dotada de relações de poder, abusos e inferiorização de pessoas afrodescendentes, comumente objetificadas e animalizadas através de uma linguagem racista. Para sinalizar o seu posicionamento, a autora adapta para o português, algumas terminologias recorrendo ao uso do itálico e abreviação em algumas palavras. Na obra, temos, portanto, adaptações de termos como sujeito, objeto, “outra/o”, negra/o, p. (preta/o), mestiça/o, mulata/o, cabrita/o, escravizada/o(escrava/o) e subalterna. (p.15)
A autora trabalha com a temporalidade do racismo, lembrando-nos desde o título do livro, com “memórias da plantação”, que o racismo cotidiano perpassa as épocas da plantação, remetendo-se ao período colonial, momento histórico no qual milhares de pessoas negras foram forçadas, em condição escrava, a trabalharem em monoculturas de algodão, tabaco, cana-deaçúcar, entre outras. O aprisionamento, o trauma e a dor que o sujeito negro vive e sente perante o racismo em suas vivências no dia-a-dia, tem conexões com o cenário colonial da escravização e com os modos de operação do plantation. Nesta perspectiva, Kilomba faz uma análise para além dos fatores históricos, ao abordar a realidade psicológica do racismo cotidiano, baseandose em relatos subjetivos, autopercepções e narrativas biográficas.
A escritora dialoga com diversas teóricas e teóricos do feminismo negro e da diáspora africana, como Patrícia Hill Colins, Bell Hooks, Stuart Hall, Franz Fanon, entre outras, ao discutir questões que permeiam os estudos de gênero e raça. Franz Fanon destaca, por exemplo, que o complexo de inferioridade do negro é criado pelo branco europeu, que a cultura europeia estabelece uma civilização dos brancos, designando a hierarquização desta etnia, para a manutenção de uma perspectiva de superior. Sistematicamente se faz necessário, portanto, que alguém assuma a contraposição, de inferior. Já ao tratar de sujeito e objeto, Grada Kilomba está referenciando a abordagem de Bell Hooks, no que precisa ser realizado para tornar-se sujeito e se desvincular da “outridade”. “[…]Essa passagem de objeto a sujeito é o que marca a escrita como um ato político” (p. 28).
A máscara, abordada em seu primeiro capítulo, demonstrada na imagem de Anastácia, é ilustrada como um símbolo de representação do colonialismo, usada para o silenciamento, tortura, opressão, submissão, vergonha e aproximação com a animalidade, controlada por um branco dominante que coloca o sujeito negro na posição do outro objetivado. “[…] a boca se torna o órgão da opressão por excelência, representando o que as/os brancas/os querem – e precisam – controlar e, consequentemente o órgão que, historicamente, tem sido severamente censurado” (p. 33-34). Com esta prática, como a autora coloca, os negros poderiam ser lidos como “outridade”, polo oposto do que seria a branquitude, que se constrói a partir de “dessemelhanças” em relação aos negros/as. Neste sentido, as pessoas brancas incorporam nas pessoas negras tudo aquilo que elas não querem ser, ao utilizarem atributos de fantasias e fetiches, originadas em seu imaginário. Nessa perspectiva, Patricia Collins acrescenta que a opressão dos grupos subordinados ocorre também pela falta de interpretação e clareza dessa relação de opressor e oprimido. Suas falas só seriam escutadas, se estivessem alinhadas ao discurso do grupo dominante.
No capítulo II, a teórica portuguesa explana sobre os mecanismos de defesa da negação, pelo qual, o sujeito branco, partido entre aquilo que quer ser e aquilo que não quer ser, projeta no outro, tudo aquilo que for negativo, as próprias características que nega em si, partindo de associações ilógicas que são lidas como verdade pela supremacia branca, por meio de palavras e imagens contidas no discurso, gestos e atitudes. Neste processo, para Grada Kilomba, seria necessário reestruturar os conceitos e as palavras para desmantelar o racismo. Se a língua naturaliza, é através dela também que poderíamos reorganizar, por meio de novas narrativas o efetivo protagonismo de pessoas negras em suas próprias histórias, dentro do âmbito da linguagem.
Na abordagem sobre as definições do racismo no capítulo III, Kilomba inicia o texto ressaltando que o racismo tem sido essencial ao decorrer dos séculos para a concretude dos projetos europeus de escravização, colonização e para a atual “Fortaleza Europa”, a qual podemos compreender como uma espécie de alavancagem para sua forte imagem no cenário político-social.
Segundo a autora, o racismo é visto como uma “coisa” do passado que vive localizado às margens e não no centro das questões política do continente europeu. Não sendo visto como um problema teórico e prático relevante nos discursos acadêmicos, fato que revela a falta de respeito àqueles que vivem na pele, as práticas do racismo. Em seguida, ela utiliza o termo “macroperspectiva” originalmente cunhado por Philomena Essed, para explicar que os olhares dos estudos europeus se voltam para as estruturas sociais e políticas do racismo, focando na agressora/agressor. Este levantamento me conecta diretamente com o termo “Study Up” descrito por Grada Kilomba já no final do capítulo, que seria a investigação de pesquisadores sobre os membros de seu próprio grupo social ou de status similares, focadas no sujeito, como as entrevistas que ela realizou com duas mulheres negras, uma afro-alemã e uma afroestadunidense, de nome fictício Alicia e Kathleen, respectivamente. Mulheres escolhidas para as entrevistas com Grada Kilomba, próximas de sua idade que viviam na Alemanha, justamente para focar na fala ativa e dominante dessas mulheres, reconhecidas como sujeitos, dentro de suas singularidades nas experiências com o racismo. Uma outra ponte que essa discussão cria é a ligação até as questões abordadas já no final do capítulo IV, nas tensões existentes dentro do feminismo e do movimento negro, que inclusive, são criticados pelas feministas negras por não contemplarem suas experiências de opressão relacionadas à raça e ao gênero.
Surge no texto a ideia de mudança de perspectiva, a chamada “perspectiva do sujeito”, relatada anteriormente por Paul Mecheril, na qual, indivíduos agem como sujeitos em suas realidades sociais, como Grada Kilomba executa em sua tese, nas entrevistas com mulheres negras, para o alcance do status de sujeitos no contexto do racismo genderizado (p. 74). O uso de entrevistas pela autora objetiva metodologicamente reconstruir e recuperar as histórias pessoais dessas mulheres dentro de estruturas racistas patriarcais, através de narrativas biográficas com experiências de vida na Alemanha.
Com este enredo chegamos ao final do capítulo IV, descrito como “Racismo Genderizado”, com a reflexão denunciativa de Grada Kilomba sobre a invisibilidade da mulher negra e LGBTTQIA+ nos discursos feministas e do movimento negro. Entre concepções que formulam a mulher negra como “o outro do outro” e habitante de um espaço vazio, em forma de um terceiro espaço, deslocada para às margens da “raça” e do gênero, nos resta mais dúvidas do que soluções.
Nos Capítulos V ao XI da obra são aprofundadas algumas questões centrais sobre ocasiões, experiências e gestos de cunho racista que pessoas negras sofrem diariamente. Situações discutidas e analisadas por Grada Kilomba a partir de suas entrevistas com as afrodescendentes, Alicia e Kathleen, na época em que viviam na Alemanha, local onde a autora realiza as entrevistas. De forma geral, nesta parte da tese, é executado o enfoque no sujeito que a autora evidencia através das vivências descritas pelas mulheres negras e suas relações sincrônicas e diacrônicas com as diversas facetas atuantes do racismo cotidiano, abordado em profundos relatos denunciativos.
Em síntese, ao decorrer desses capítulos, podemos notar as formações das fronteiras simbólicas erguidas em relação às pessoas negras que não são identificadas como parte do meio social, sendo assim, exprimidas nas margens, lidas como estrangeiras. Tal percepção é notada nas experiências de Alicia e Kathleen, ao afirmarem que em muitos momentos em suas vidas na Alemanha foram confrontadas a dizer de onde vieram. Forçadas a se identificarem com outra nacionalidade, por serem jogadas para fora daquela territorialidade, através da leitura realizada pela predominante parte da branca população alemã, que por sua fantasia colonial, o negro significa algo alheio, desconhecido ou estrangeiro. (p. 111)
Discursos quase imperceptíveis, encarados como inofensivos, escondem um racismo codificado, com novas fórmulas de atuação, por intermédio do chamado novo racismo, termo usado inicialmente por Martin Barker (1981), citado por Grada Kilomba. A ocupação de um espaço pré-definido é determinante para a concluinte ideia de inferioridade negra por parte da projeção branca. Assim, a observação e o controle são realizados de longe por quem domina o poder. A relação de escravizado e senhor; Senzala e Casa-Grande se materializa perfeitamente nesta analogia.
O termo de “regressão” muito trabalhado na área da psicanálise, chama atenção em “Políticas do cabelo”, pelo momento em que um indivíduo branco, ao sentir-se no direito, invade o corpo negro com o importuno toque ao cabelo crespo com a escapadela da curiosidade. Nesta regressão, o(a) branco(a) se afugenta no comportamento de infantilidade com atitudes irritadiças, mal humor e choro, para assim evitar a culpa por seus atos e, como recompensa, consegue tomar a atenção para si, desfocando o teor repugnante do seu ato quando questionado. Uma engenhosa estratégia de autoproteção do sujeito branco. As ofensas aos cabelos crespos são sinais da ansiedade branca em tentativas para não perder o controle sobre a/o “colonizada/o”. Para isto, tratam o cabelo crespo como símbolo de primitividade, desordem, inferioridade e não-civilização. A autora ressalta que o sujeito negro no ato de expor os seus cabelos naturais, está executando sua consciência política em formato de protesto constante em sua estética aparente. “Dreadlocks, rasta, cabelos crespos ou “black” e penteados africanos transmitem uma mensagem política de fortalecimento racial e um protesto contra a opressão racial” (p. 127).
Ao interpretar essa parte da obra, percebe-se que a sutileza de algumas abordagens que são racistas acaba dificultando a denúncia, pois conscientes ou não, os brancos reproduzem e perpetuam o racismo sem que sejam identificados ou julgados. Grada Kilomba sucinta sobre uma triangular por causa das três personagens possíveis e das três funções que fazem do racismo, algo possível. “Primeiro, a atriz que performa o racismo; segundo, o sujeito negro que se torna objeto da agressão racista; e, finalmente, o consenso da plateia branca, que observa a performance” (p. 163).
Na exposição do espaço geográfico e suas fronteiras territoriais que se desdobram fisicamente e simbolicamente as possibilidades de circulação das/dos sujeitos negras/negros, no capítulo X, em “segregação e contágio racial”, nos deparamos com as luvas brancas, mais uma vez reforçando a ideia de fronteira física que separa e evita o contágio racial e, também, uma fronteira simbólica que marca as barreiras entre o privilégio branco e a induzida situação dos sujeitos negros, em posição de servidão. Essa luva branca é uma ferramenta demasiadamente atual na lógica do racismo, quando a relacionamos com os status social atingível por uma pessoa negra e outra branca. A luva representa o limes, o alcance que proíbe uma ultrapassagem.
Os capítulos XI, XII e XIII abordam respectivamente o impacto do racismo na performance da negritude, no suicídio e no processo de cura e ressignificação das pessoas negras. Ao representarem a “raça”, esses sujeitos são impossibilitados de serem reconhecidos enquanto indivíduos dotados de subjetividade. Nesse enredo localiza-se também a negação do sujeito branco em suas práticas racistas e o seu apego ao passado colonial, para a perpetuação de seus privilégios e status de poder dominante. Os traumas coloniais com o racismo cotidiano se perpetuam nos danos psicológicos e nas feridas abertas que não foram cicatrizadas.
O suicídio da mulher negra quando relacionado ao racismo, marca ainda mais sua condição como a outridade dupla, ato que sela a sua não existência, por mais que seja uma performance final de autonomia momentânea enquanto sujeito. “O suicídio pode assim, de fato, ser visto como um ato performático da própria existência imperceptível”. Em outras palavras, o sujeito negro representa a perda de si mesmo, matando o lugar da outridade” (p. 188).
Ao final da obra, no capítulo XIV, Grada Kilomba explana sobre a descolonização do eu e o processo de desalienação. Relata que para superarmos o trauma colonial, incabível de ser esquecido, é preciso ir além de estudos e reivindicações, sendo necessário ter autonomia, se tornar sujeito falante, em uma mudança que parte do interior de si para o exterior. Em analogia à máscara de Anastácia e ao pensamento de Gayatri C. Spivak, poderá a subalterna falar? O silenciamento ilustrado na mordaça da/o subalternada/o, poderá enfim ser desmantelado? Para ambas as autoras, não será possível enquanto vigorar o racismo cotidiano e as marcas do colonialismo. Ainda, neste sentido, Kilomba explica que não é favorável se justificar para pessoas brancas, pois a partir das definições de novas fronteiras, surge o limite, e a(o) branca (o) passará a perceber que o sujeito negro não o deve respostas. Seria uma estratégia de descolonização, pois não estaríamos alimentando a ordem colonial e racista nas ações dos sujeitos brancos em tentar possuir e controlar. O que podemos mudar em nossa individualidade neste cenário do racismo cotidiano é a forma como reagimos e lidamos. Grada Kilomba aponta possíveis estratégias, agora precisamos refletir sobre nossas próprias escolhas em como agir perante a realidade do racismo cotidiano que permeia a psique humana.
Resenhista
Kaique Rodrigues Vieira – Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: kaaahvieira@gmail.com
Referências desta Resenha
KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. Resenha de: VIEIRA, Kaique Rodrigues. Memórias da plantação: reflexões cotidianas. Ars Historica. Rio de Janeiro, v. 23, p. 322-327, jan./jun. 2022. Acessar publicação original [DR]
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