Memória, Identidade e Historiografia / Textos de História / 2002
Tempo e Memória
A tarefa de assenhorear-se do tempo pela memória, de o inserir na consciência histórica e de dar-lhe um sentido aceitável é uma constante da atividade humana. O agente racional humano busca, ininterruptamente, atribuir sentido ao que faz. Isso ocorre no plano intencional: valores, idéias ou interesses fundamentam e orientam o agir. Esse plano antecede, ao menos logicamente, o agir concreto. No plano interpretativo, existe a mesma preocupação com o estabelecimento de um sentido plausível para o agir constatado pela pesquisa. Em ambos os casos, dá-se o esforço por construir um tempo histórico em que a existência e a ação tenham sentido e produzam sentido. Esse sentido atribuído à memória histórica ou construído para ela desempenha um papel decisivo para a identidade de cada um, do grupo a que pertence e da sociedade que forma. Origem cultural, estratificação social, sistema de produção, linguagem, religião, organização e hierarquia, e tantos outros elementos consagrados nesse processo são definidos, delimitados, investigados, interpretados, estruturados e articulados.
A memória e a identidade estabelecem uma encruzilhada em que as diversas perspectivas do senso comum como do conhecimento científico se encontram. História, psicologia, literatura, economia, sociologia, filosofia, antropologia e tantas mais concorrem, umas e outras, para que se constitua um feixe de fatores em cuja intersecção se reconhece o sujeito. Nesse ponto focai, memória individual, tempo coletivo e espaço social se associam para formar a cultura histórica com a qual a identidade se forja, consolida, atua e reproduz. A memória pessoal, associada à memória coletiva inscrita na historicidade do espaço social em que cada indivíduo emerge, marca não apenas a identidade particular do sujeito agente, mas também a coletividade identitária com que cada um se depara e que cada um quer assumir, modificar, transformar e mesmo rejeitar. Está-se aqui inserido em uma dinâmica que se pode chamar, com Jõrn Rüsen, de constante antropológica da cultura histórica. O que significa isso? Tal realidade é a de todos, e a de cada um: a cada instante todos os instantes precisam (ou são, de fato) processados idealmente em um construto significativo que apelidamos “história”. Passado, presente e futuro são fatores da cultura histórica operado pela síntese ativa do agente racional humano como cenário, encontrado e produzido, da vida concreta. Independentemente de essa operação ser efetuada por um “leigo” ou por um “profissional”.
Entender como a memória histórica se compõe e forma, como ela é operada e que efeitos provoca, como ela é entendida e administrada pelos homens de cada tempo e de todos os tempos, é um efeito, no campo da ciência histórica, da dinâmica da história de todos os campos. Como, de que forma e porquê ficam registrados — tirando a obviedade dos documentos e monumentos — pessoas, objetos, acontecimentos? Essa memória histórica, que parece tão personalizada (tão subjetiva, diriam alguns), é forjada também pela experiência coletiva e pelas representações públicas. Meio-ambiente familiar, língua, cultura, meios de comunicação, celebrações e comemorações influenciam, e mesmo marcam, não apenas o quê os indivíduos e as sociedades são, mas certamente também o que foram, o que serão e em que contexto vivem e viverão.
O 19° Congresso Mundial de História realizado em 2000, em Oslo, dedicou um amplo espaço de discussão ao tema da memória e da consciência histórica. Organizados a cada cinco anos pelo Comitê Internacional de Ciências Históricas, os congressos mundiais reúnem expressivo número de historiadores de todo o mundo, representando a suma da historiografia e de seus avanços. Foi-me dado organizar um tema especializado sobre “Memória e Identidade Coletiva: como as sociedades constróem e administram seu passado.” A vinculação da memória à representação coletiva da identidade sugere a perspectiva de uma percepção social da inserção das pessoas no plano da identidade. Evitar-se-ia, por conseguinte, a tentação de deslizar para o campo da subjetividade individual como eixo de referência, embora não se a possa excluir. A segunda parte do título apresenta à reflexão a questão ativa, mutante, dos processos sociais de elaboração da consciência histórica.
A intenção foi a de provocar o debate em torno do aspecto empírico e ficcional subsumidos nos sistemas de memória — pública e privada — das sociedades, e acerca da sua gestão no quotidiano.
Para permitir um amplo leque de alternativas de análise, o tema foi tratado por especialistas de diversas procedências e de diferentes opções teórico-metodológicas. Brasil (Estevão de Rezende Martins), Argentina (Dora Schwarzstein), Alemanha (Jórn Rüsen), Israel (Moshe Zimmerman), Espanha (Joseba Agirreazkuenaga), índia (Shradda Sahasrabuddhe), Austrália (Joan Beaumont), Bélgica (Chantal Kesteloot), França (Henry Rousso), Holanda (Frank Ankersmit) trouxeram sua reflexões a um público de mais de 500 pessoas que lotou o auditório em que teve lugar o debate, na Universidade de Oslo. A Universidade de Brasília, por seu Programa de Pós-Graduação em História, traz agora a lume, na primeira parte deste volume, o conjunto dos textos preparados pelos participantes, oferecendo essas contribuições a um círculo ainda mais largo de interessados e estudiosos.
As questões de fundo suscitadas e debatidas desde Oslo vieram também à discussão no 21° Simpósio Nacional de História, organizado pela Associação Nacional de História (ANPUH), na Universidade Federal Fluminense, em julho de 2001. O papel da organização mental da consciência histórica, sob a forma da narrativa historiográfica e de suas variantes ao longo do tempo foi objeto de debates intensos, com forte participação. Os textos apresentados à reflexão por Estevão de Rezende Martins (Brasília), José Carlos Reis (Belo Horizonte), Astor A. Diehl (Passo Fundo) e Jurandir Malerba (então João Pessoa, hoje Washington), estão reunidos na segunda parte deste volume, consolidando mais uma etapa da contribuição brasileira para a análise e a crítica teórica e historiográfica contemporâneas. A inserção internacional da produção historiográfica brasileira recebe, com o presente volume, um significativo campo de ressonância. Essa difusão é assim apoiada pela iniciativa do Programa de Mestrado e Doutorado em História da Universidade de Brasília, de publicar este 10° volume da “Textos de História” coligindo essas contribuições.
Estevão Chaves de Rezende Martins
Organizador