Memória, ética e reparação | PerCursos | 2019

Verdadeira obsessão nas décadas finais do século XX, o tema da memória tem ocupado diferentes campos disciplinares e gerou expressões cuja circulação se deu nos mais variados estudos, tais como “cultura da memória”, “batalhas de memória”, “dever de memória” e “lugares de memória”. Grosso modo, o debate tem se concentrado, de um lado, na memória articulada a ações de mercantilização de representações sobre o passado (como em revivals e guinadas “retrô” que tomaram a indústria da moda e do entretenimento). De outro, rapidamente derivou para demandas por reparação que, ao viés estritamente político, agregaram o jurídico, resultando, inclusive, nas chamadas leis memoriais, que tentaram estabelecer se e como determinados momentos e processos históricos deveriam ser narrados. Afirmou-se, com isso, que o passado continuava vivo no presente, embora memórias difíceis sobre tempos e episódios sombrios por muito tempo ficassem ocultadas, recalcadas. Vindas à tona, em um esforço doloroso de continuada exposição e reexposição dos traumas vividos, buscaram − e ainda buscam − não somente o reconhecimento de crimes perpetrados contra determinados grupos como a punição dos responsáveis. No horizonte, a recomposição das relações sociais por meio de uma nova ordem ética, pós-traumas.

Ao analisar algumas experiências que lidaram com demandas de reparação por meio de comissões nacionais de verdade, o historiador belga Berber Bevernage (2014) introduziu um questionamento perturbador: tais comissões raramente podem atender plenamente às demandas de vítimas da violência de Estado e seus familiares, pois um e outro lado mobilizam concepções distintas de tempo. Para as comissões, e para aqueles que as instituem, o tempo da violência é um tempo encerrado – o passado tal como presente na História como campo disciplinar, portanto, irreversível. Para vítimas e familiares (ou para parte significativa deles), o passado está entranhado no presente, e não pode ser simplesmente dado como findo – há questões a esclarecer, há contas a acertar, há crimes a punir, o que torna esse passado irrevogável. Bevernage destaca uma forma radical de percepção dessa irrevogabilidade na postura assumida pela associação das “Madres” da Plaza de Mayo, na Argentina, ao se recusarem a reconhecer seus filhos como mortos (antes, são “desaparecidos” para sempre), se opondo a exumações, rejeitando reparações econômicas, desprezando a criação de monumentos em honra às vítimas; reivindicaram, sim, cárcere para os “genocidas”, e ensinaram que um passado entendido como encerrado compactuava com a impunidade (Bevernage, 2014, p. 69-77). Portanto, a própria maneira como lidamos com o passado nos defronta com dimensões éticas, não bastando apenas lembrá-lo: importa como lembramos e o que fazemos com essas lembranças.

O dossiê “Memória, ética e reparação” reúne seis artigos que lidam de formas distintas com esses três termos, ora equilibrando reflexões sobre todos eles, ora privilegiando um ou outro. No artigo “O desastre da talidomida na Espanha: usos da memória em busca por reparação”, temos a situação de equilíbrio: nele, o doutorando em História, Dones Claudio Janz Jr., examina aspectos das disputas jurídicas travadas entre vítimas espanholas do uso da talidomida, nos anos 1950 e 1960, e a empresa farmacêutica alemã Chemie Grünenthal, questão que se mantém em aberto nos tribunais. Mas há artigos em que a memória e seus processos sociais de produção são o foco principal.

Em “Patrimônio urbano, memória e resistência: os casos de Pilar, Crixás e Porangatu (GO)”, a doutora em Geografia, Luana Nunes Martins de Lima, promove uma reflexão sobre os limites das ações oficiais de preservação do patrimônio edificado nas áreas urbanas daqueles municípios goianos e sobre a resistência de um patrimônio que persiste na memória dos moradores. Vagner Silva Ramos Filho, doutorando em História, no artigo “‘Da praça pública ao palácio’: a atuação da imprensa cearense na cultura da memória do cangaço (1982-1995)”, conduz seus leitores por alguns dos rumos da memória do cangaço, em especial os momentos de inflexão memorial situados, no Ceará, nas décadas de 1980 e 1990; no texto, são ressaltados os papéis desempenhados pela imprensa e por instâncias governamentais, em articulação com a atuação de intelectuais. Larissa Julia Paludo e Gerson Wasen Fraga, respectivamente mestranda em Ciências Humanas e docente doutor em História na Universidade Federal da Fronteira Sul, discutem, em “Uma história de mulheres: Svetlana Aleksiévitch e a disputa pela memória”, os processos de silenciamento ideológico e de violência de gênero que durante décadas sufocaram as memórias de mulheres combatentes na Segunda Guerra Mundial, do lado soviético. Essa discussão é realizada com base na análise do livro da escritora bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, A Guerra Não Tem Rosto de Mulher.

Memória, ética e reparação voltam a se encontrar mais fortemente imbricadas nos dois últimos artigos do dossiê, que informam e propõem reflexões sobre a criação de instituições e espaços memoriais referentes a episódios históricos traumáticos, em vários países. Felipe Eleutério Hoffman, museólogo e atualmente doutorando em Ciência da Informação, apresenta, no artigo “O Museu como ferramenta de reparação: apontamentos sobre as memórias do trauma, museus e direitos humanos”, um panorama de iniciativas nesse campo, indicando, em linhas gerais, concepções, estratégias de representação e sensibilização, bem como seus desafios e limites. Já em “Lugares de memória e resistência da América Latina: levantamento, organização e difusão de informações em um website”, temos a oportunidade de refletir sobre a relevância de ferramentas informacionais para esse debate, conhecendo as questões e procedimentos que nortearam a elaboração do website “Memória e Resistência” (www.usp.br/memoriaeresistencia ) e a construção do “Vocabulário controlado da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça – Brasil”, tal como apresentados, no artigo, por Nair Yumiko Kobashi, doutora em Ciências da Comunicação e docente do Programa de Pós-Graduação da ECA-USP, juntamente com os mestrandos em Ciência da Informação Caio Vargas Jatene e Mariana Ramos Crivelente.

Frente às inúmeras portas que se abrem ao tema do dossiê, são artigos que elegem diferentes entradas e elegem desvios, mantendo, contudo, atenção às marcas deixadas, com frequência dolorosamente, por outros que ali estiveram – como parece querer nos indicar o fotógrafo Ramy Kabalan, na imagem de capa desta edição da revista PerCursos. Artigos que compartilham, aliás, alguns dos fios narrativos do ensaio fotográfico de Aterlane Martins, também contido nesta edição, e que reverbera o fracasso de projetos públicos de modernização (nas obras públicas inconclusas da barragem do Patu), a violência estatal (na criação de campos de concentração de retirantes, no Ceará, nos anos iniciais da década de 1930) e a força da memória de sofrimentos e desventuras dos concentrados: no surgimento da devoção às Santas Almas da Barragem; na sua apropriação e reconfiguração, pela Igreja Católica, com a criação da Caminhada da Seca; nos projetos de patrimonialização que envolveram, sobretudo, as edificações e ruínas que naquela área dão sustentação material à fé popular.

Referência

BEVERNAGE, Berber. Historia, memoria y violencia estatal: tiempo y justicia. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2014.


Organizadores

Antonio Gilberto Ramos Nogueira – Universidade Federal do Ceará – UFC.

Janice Gonçalves – Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC.


Referências desta apresentação

NOGUEIRA, Antonio Gilberto Ramos; GONÇALVES, Janice. Apresentação. PerCursos. Florianópolis, v. 20, n. 42, p. 04 – 07, jan./abr. 2019. Acessar publicação original [DR]

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Dinâmicas no mundo rural | PerCursos | 2019

Dinâmicas no mundo rural | PerCursos | 2019, MARTINS Pedro (Org d), SILVA Clécio Azevedo da (Org d), LOCKS Geraldo Augusto (Org d) SASTOQUE Marlon Javier Méndez (Org d), Percursos (Prd), Mundo Rural

Frente a uma cíclica e recorrente crise na produção bibliográfica sobre o mundo rural, aceitamos no início de 2019 o desafio de organizar um dossiê que reunisse diferentes visões e abordagens decorrentes de pesquisa sobre aspectos da vida e da existência nos espaços fora do mundo urbano. “Dinâmicas do mundo rural” traz aqui um apanhado de oito artigos oriundos de diferentes regiões do país enfocando aspectos do pensamento sobre a vida no mundo rural abordados a partir de diferentes e muito distintas disciplinas. Complementam o dossiê uma longa entrevista com Maria Ignez da Silveira Paulilo, socióloga que dedicou sua vida ao feminismo e ao mundo rural, e uma resenha acerca de uma recente obra oferecida como subsídio à organização dos jovens do campo.

O dossiê inicia com o artigo “Decadência dos sistemas agrícolas tradicionais e a urbanização da cidade de São Paulo”, escrito por Cristina de Marco Santiago, que aborda as transformações do espaço rural da lavoura caipira no estado de São Paulo mostrando como as transformações no sistema de abastecimento da capital paulista levaram à decadência da lavoura caipira do seu entorno.

“Entre as margens dos rios e as marchas da história: espaço e sociedade ribeirinha na Amazônia”, escrito por João Santos Nahum, recupera o processo de ocupação ribeirinha do Amazonas e a formação de diferentes identidades híbridas. Destaca a violência física e simbólica imposta aos indígenas locais bem como a uma miríade de imigrantes deslocados de diferentes regiões, especialmente do nordeste, para atender à demanda de força de trabalho por diferentes ciclos econômicos.

“Cartografia das queimadas e incêndios aplicadas à mitigação de desastres e conservação de paisagens”, escrito por André Luiz Nascentes Coelho e Antonio Celso de Oliveira Goulart, parte da observação do fenômeno em Santa Teresa, Espírito Santo, para trazer uma contribuição às ações de controle e monitoramento de queimadas e incêndios propondo uma metodologia “apropriada” ao trabalho em zonas periféricas. O tema se mostra especialmente relevante frente à comoção nacional e internacional causada pelos eventos que abalaram a região amazônica no curso do ano de 2019.

“Política territorial e pobreza: o microcrédito orientado no Território Oeste Catarinense”, escrito por Carlos Eduardo Arns e Juliano Vitória Domingues, realiza um balanço de políticas de microcrédito para um importante setor da economia rural. Debatendo as características e os entraves de diferentes políticas públicas, os autores destacam a sua possível bancarrota frente ao alastramento das consequências do golpe jurídico midiático parlamentar de 2016.

“Seridó Potiguar: apontamentos históricos e socioeconômicos para o estudo da atual dinâmica urbano-regional”, escrito por Diego Salomão Candido de Oliveira Salvador, Marluce Silvino e Eulália Jéssica Medeiros Silva, descreve a evolução do território do Seridó do Rio Grande do Norte alicerçada no espaço geográfico, na economia e na fé, em constante diálogo entre o rural e o urbano – onde a devoção à Sant’Ana parece constituir importante atributo da identidade cultural.

“Jovens homens que ‘saíram pelo meio do mundo’: sentido do trabalho para cortadores de cana”, escrito por Catarina Malheiros da Silva, apresenta um exercício metodológico para abordar o tema da migração laboral no corte de cana em São Paulo a partir da coleta dos discursos de seus protagonistas. A autora revela que o ofício de cortar cana, do ponto de vista dos jovens migrantes pendulares, pode ser um indicador de sucesso profissional e positivação identitária, quando olhados a partir de Palmas de Monte Alto, Bahia, no contexto de origem dos jovens homens que migram para o “meio do mundo”.

“A requalificação da paisagem e os espaços multifuncionais no entorno da Usina Mourão I, Campo Mourão/PR”, escrito por Dienifer Fernanda dos Santos, Ana Paula Colavite, Cláudia Chies e Adriano Ferreira Guimarães, mostra a transformação de um espaço rural em área “urbanizada” e elitizada a partir da instalação de uma usina hidroelétrica. A multifuncionalização de uma área rural, com a introdução de áreas de lazer e especulação imobiliária, instigam a reflexão sobre as definições de rural e urbano, destacando o avanço de práticas urbanas sobre territórios rurais ou reservas naturais.

“A educação rural em Portugal – entre a aldeia e a escola”, escrito por Alcione Nawroski, aborda a biografia e o legado do pedagogo português António Sérgio. Tendo vivido no final do século XIX e em grande parte do século XX, o pedagogo Antônio Sérgio comovia-se com a decadência do mundo rural português – que englobava a maior parte do país. Propôs, de diferentes maneiras, a educação popular e de caráter cooperativista como único caminho para a emancipação social da maioria da população. O texto reforça a necessidade de se continuar pensando o mundo rural de maneira diferenciada e destaca a obra de António Sérgio como um libelo contra o parasitismo bacharelesco pequeno burguês.

Integra, ainda, o dossiê a entrevista de Maria Ignez da Silveira Paulilo, trazida aqui sem cortes. Esta produção representou uma rara oportunidade para socializarmos com os nossos leitores uma conversa aberta e sem censura com uma das mais importantes pesquisadoras sobre o mundo rural no Brasil. Em três horas de entrevista, materializadas em 40 páginas de texto, Maria Ignez Paulilo discorreu sobre 40 anos de atividade acadêmica voltada para a investigação do mundo rural em articulação com a condição das mulheres na sociedade brasileira. O relato aborda a sua formação profissional, a carreira acadêmica em uma época de estruturação da pós-graduação no Brasil e muitos momentos fortes de descobertas envolvendo a orientação de alunos, o contato com o público-alvo de pesquisa e as peripécias ligadas aos aspectos internacionais de uma longa e produtiva carreira.

Fechando o trabalho, trazemos a resenha de Kelli Cristina Dacol, apresentando o livro “Formar Novos Rurais”, escrito em parceria por Valério Alécio Turnes, Wilson Schmidt e Thaíse Costa Guzzatti. No momento em que grandes esforços são realizados no sentido de possibilitar aos jovens rurais o suporte necessário à tomada de decisão entre permanecer ou sair, este livro representa um grande alento para aqueles que estão especialmente interessados em ficar e lutar.

Agradecemos, ao findar este trabalho, a todos os pesquisadores e pesquisadoras que submeteram seus trabalhos à nossa apreciação e às dezenas de colegas que não mediram esforços para garantir a avaliação incógnita dos textos submetidos e contribuir, assim, para a oferta de material de qualidade ao público interessado em ampliar seus horizontes, numa perspectiva inter, multi e transdisciplinar, sobre a diversidade e a complexidade crescente do mundo rural.


Organizadores

Pedro Martins – UDESC.

Clécio Azevedo da Silva – UFSC.

Geraldo Augusto Locks

Marlon Javier Méndez Sastoque


Referências desta apresentação

MARTINS, Pedro; SILVA, Clécio Azevedo da; LOCKS, Geraldo Augusto; SASTOQUE, Marlon Javier Méndez. Apresentação. PerCursos. Florianópolis, v. 20, n. 43, p. 03 – 06, maio/ago. 2019. Acessar publicação original [DR]

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Artes e instituições culturais: reflexões sobre branquitude e racismo | PerCursos  | 2019

Artes e instituições culturais: reflexões sobre branquitude e racismo |  PerCursos  | 2019, RUOSO Carolina (Org d), LIMA Joana D’Arc de Sousa (Org d), PEREIRA Marcele Regina Nogueira (Org d), Percursos (Prd), Artes, Instituições Culturais, Branquitude, Racismo

É com satisfação que apresentamos o dossiê temático do presente número da REVISTA PERCURSOS, que versa sobre Artes e instituições culturais: reflexões sobre branquitude e racismo. O dossiê integra a última edição do ano de 2019 e foi organizado pelas professoras Carolina Ruoso (Universidade Federal de Minas Gerais), Joana D’Arc de Sousa Lima (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira) e Marcele Regina Nogueira Pereira (Universidade Federal de Rondônia). A escolha da temática decorreu, em grande parte, inicialmente por sermos mulheres que nos profissionalizamos no chamado mundo do trabalho dos museus e instituições culturais1, daí nossa constatação que as instituições culturais, especialmente os museus, marcados na sua organização pela razão patrimonial, atuam a serviço do processo colonizador. Instrumentalizam, na modernidade, critérios e valores culturais que inventam os Outros: selvagens, exóticos, sem história, sem capacidade de produzir memórias, primitivos, entre outros adjetivos etnocêntricos. Desse modo, entendemos que este dossiê reúne um conjunto de análises e reflexões a respeito das instituições culturais, tanto no que diz respeito à montagem dos seus acervos e programas quanto à construção da relação com seus públicos, a partir de uma perspectiva decolonial.

Considerando a diáspora de saberes, artistas e obras de arte como parte do projeto civilizatório de viés eurocêntrico, entendemos que se faz necessário desenvolver um olhar crítico sobre as instituições culturais fundamentado nas noções de branquitude e racismo. Os teatros, os cinemas, os museus, os centros culturais, as casas de espetáculo, são lugares nos mundos da arte estruturados e pensados a partir de convenções e códigos brancos, excluindo e desqualificando negros, indígenas e ciganos. Nossa referência para os estudos a respeito da Branquitude é o livro de mesmo nome do historiador e sociólogo da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, Lourenço Cardoso, e da pedagoga e antropóloga Tânia Mara Pedroso Muller, da Universidade Federal Fluminense.

Outro aspecto que mobilizou a escolha dessa temática foi a Lei Federal 10.639 de 20032 , que tornou obrigatório o ensino de história da África e da cultura afro-brasileira nas escolas de ensino fundamental e médio; especialmente, no caso das artes da África e da diáspora, em específico, trata-se de uma via crucial para a construção e transmissão de conhecimentos ligados à cultura e à história africana e afro-brasileira, previstas na lei 10.639/03. O tema abordado nesta edição almeja contribuir para a ampliação dos estudos sobre a temática e subsidiar as tarefas dos professores e pesquisadores de História, História da Arte, Sociologia, Museologia e das Artes de maneira geral, em suas aulas.

A sociedade brasileira é racista e não consegue se reconhecer racista. Naturaliza o racismo, a violência contra a negra e o negro. Nesse sentido a arte (embora não somente ela), por ser o lugar privilegiado da criação, da invenção e da metaforização da vida, atua no processo de desnaturalização dos sentidos e das verdades canônicas. No campo da educação, as artes, de maneira geral, cumprem um papel fundamental: o de potencializar a observação, a apreciação, a sensibilidade, o dissenso, a reflexão crítica, a curiosidade, a experimentação, a imaginação, entre outros sentidos, além de possibilitar processos de conhecimento com práticas e conteúdos específicos. A experiência com as artes e o desenvolvimento de habilidades sensíveis na educação também potencializam o aproveitamento dos aprendizes em outras áreas do conhecimento.

Existe a crença de que a discriminação e o preconceito não fazem parte do cotidiano da Educação Infantil, de que não há conflitos entre as crianças por conta de seus pertencimentos raciais, de que as/os professoras/es nessa etapa não fazem escolhas com base no fenótipo das crianças. Em suma, nesse território sempre houve a ideia de felicidade, de cordialidade e, na verdade, não é isso o que ocorre. Os estudos de mestrado e de doutorado que tratam das relações raciais na faixa de zero a seis anos apontam que há muitas situações de discriminação que envolvem crianças, professores, profissionais de educação e famílias3. Isso prova que a concepção de que na Educação Infantil não há problemas raciais é uma falácia. Portanto, temos que fazer uma intervenção nessa etapa da educação básica, pois essa é uma fase fundamental para a construção das representações de todas as crianças.

Este dossiê reúne autoras/es com experiências ricas e substantivas para refletir sobre todas essas questões que estão entrecruzadas e são ao nosso olhar indissociáveis. O resultado, como se verá, é extraordinário! Apresentamos textos de professoras/es, artistas, pesquisadora/es que estão coletivamente envolvidas/os com o problema do colonialismo, do racismo, da intolerância, das práticas de violências simbólicas e físicas decorrentes dessas questões.

Os artigos que compõem este dossiê, Artes e instituições culturais: reflexões sobre branquitude e racismo, de alguma forma se interrelacionam propondo novos olhares, novas abordagens e novas reflexões acerca das questões propostas numa perspectiva interdisciplinar inovadora, buscando a construção de outras epistemologias para pensarmos nossa contemporaneidade. Para melhor apresentar os artigos selecionados para este número, neste breve prólogo, dividimos em um primeiro momento os textos que versam sobre arte, artistas e instituições museais. Depois, segue-se a apresentação daqueles estudos que trazem a temática da educação entrelaçada com a arte, as instituições artísticas e a cultura de maneira geral.

Inicialmente, apresentamos o artigo intitulado Arte e descolonização como um mecanismo de defesa na obra de Grada Kilomba, da autora Raisa Inocêncio Ferreira Lima, doutoranda em Filosofia na Université Toulouse Jean Jaurès, França. Tal artigo versa sobre a obra Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano e da série audiovisual Illusions, especialmente, “Narcissus and Echo”, criados por Grada Kilomba. O texto traça um panorama argumentativo que destrincha o que é o racismo epistemológico e como ele afeta o cotidiano nas instituições e na psique social. Por meio da obra e do pensamento de Grada Kilomba, indaga como podemos operar novos meios de reparação histórica e criar novas sensibilidades, compondo assim um novo sujeito, ou ainda, uma existência além da redução ao silêncio, ilustrado pela máscara de Anastácia.

Na sequência, ampliamos a reflexão sobre a presença de artistas no campo das artes com outros agentes como curadores, os valores de musealidade e certa dinâmica do mundo da arte. Nesse sentido, apresentamos Artistas, curadores e valores de musealidade: diversidades e branquitude na exposição da 7a Edição do Bolsa Pampulha, das autoras Carolina Ruoso e Rita Lages Rodrigues, professoras de Teoria e História da Arte da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais. O artigo traz para a cena a exposição da 7ª. Edição do Programa Bolsa Pampulha do Museu de Arte da Pampulha (MAP) e especialmente analisa o papel dos artistas e dos curadores na elaboração de critérios de valores de musealidade. Em um primeiro momento, apresenta como uma residência artística pode contribuir para a formação da coleção dos museus, considerando um processo de diálogo entre artistas e curadores; o modelo de organização em série da coleção do MAP, do tipo exclusivo, possibilita uma escuta qualificada dos artistas, que questionaram nessas duas primeiras décadas do século XXI a identidade do referido museu. Em um segundo momento, descreve a exposição de 2019, em meio ao contexto de sensação de censura, apresentando os valores identificados nas obras dos artistas, suas perspectivas plurais em defesa da presença da diversidade, tanto relacionadas à história da edificação como à história da cidade.

Em Escravidão: tema tabu para os museus de arte decorativa, artigo proposto por Joseania Miranda Freitas, professora e doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia, veremos, por meio da reflexão de quase duas décadas de docência na área de arte decorativa para o curso de graduação em Museologia na Universidade Federal da Bahia (UFBA), como o tema da escravidão de povos africanos tem sido tabu para os museus. Tais discussões ficaram reservadas àqueles temas específicos (etnográficos e históricos), omitindo-se, dessa forma, que a formação econômica dos países colonizados e suas metrópoles se deu através dessa força de trabalho. A autora ainda afirma que o ensino e a prática museal no campo da arte decorativa estiveram, durante muito tempo, aliados aos modos de pensar colonial e imperial, privilegiando concepções artísticas europeias, sacralizando objetos advindos das elites enriquecidas pelo trabalho escravo.

Ainda dentro desse eixo temático, apresentamos As coleções extraeuropeias e suas exposições: Estudo de caso das coleções etnográficas da Croisière noire no Musée des Cordeliers de Saint-Jean-d’Angély, do doutor em Geografia e Pesquisador Associado ao Laboratório Ruralista na Université de Potier, Armand Kpoumie Nchare. Em resumo, o artigo versa sobre coleções extraeuropeias, ou seja, aquelas provenientes da África, da Ásia e das Américas (do Sul, Central e do Norte). A evocação de seu contexto cultural, nesse início de século XXI, estará baseada no estudo de caso da sua valorização no Musée des Cordeliers de Saint-Jean-d’Angély, em Charente-Maritime (France). Trata-se de uma instituição museal que possui coleções extraeuropeias de maior ou menor importância, mas com frequência e desenvolvimento bastante particulares. Tais coleções representam – na região de Poitou-Charentes como no resto da França – a diversidade geográfica, de materiais, de funções e de culturas. A arte extraeuropeia é uma produção de sociedades que não atendem às normas sociais e culturais conhecidas na Europa. Hoje, sua conservação e exibição no Musée des Cordeliers de Saint-Jean-d’Angély – considerado o olhar marcadamente exótico e estético sobre os objetos, além da representação que se faz do “Outro” que produziu os objetos – remetem a um inevitável etnocentrismo.

Em Negritude a varejo ou quando uma etiqueta é assimétrica: estratégias necropolíticas no campo das artes, Jefferson Gustavo dos Santos Campos, mestre e doutorando em Letras na UEM e professor no Centro Universitário Metropolitano de Maringá – UNIFAMMA e do doutor em educação na Universidade Estadual de Maringá e professor da Fundação Universidade Federal de Rondônia, Rodrigo Pedro Casteleira. artigo, os autores tematizam os modos de (in)existência da negritude no interior do projeto colonizador de produção de conhecimento, arte e cultura na contemporaneidade. O objetivo é o de compreender em que (des)medida algumas produções artísticas, ao tematizar a negritude, são rubricadas por autorias brancas, estas, sustentadas por efeitos de verdade produzidas no campo do fazer artístico. A análise recai sobre a obra “Polvo”, produzida em 2013, pela artista plástica Adriana Varejão, e parte do questionamento que se delineia da seguinte forma: quais são as estratégias empregadas pela lógica colonial na manutenção das relações de poder estabelecidas no âmbito das artes, de modo que a existência negra se apague tanto no nível autoral, quanto no nível epistêmico da cultura? A partir de uma proposta teórico-analítica de caráter decolonial, cujas bases, são, necessariamente, um modo de inscrição negra no campo de produção de conhecimento, foi possível compreender que o etiquetamento universal, no campo artístico, se trata de uma espécie de estratégia necropolítica de apagamento da autoria negra no âmbito das práticas estabelecidas no campo cultural e artístico.

Estabelecendo um diálogo mais estreito com o campo da educação, o artigo Racialização, subjetividades, arte e estética: um estudo de caso a partir da formação em psicologia, as autoras Karla Galvão Adrião, doutora Interdisciplinar em Ciências Humanas pela UFSC e professora da Universidade Federal de Pernambuco/UFPE, e Mariana Borelli Rodrigues, mestre em Psicologia e doutoranda em Psicologia pela Pós-Graduação em Psicologia da UFPE, propõem-se discutir sobre tensionamentos entre arte, estética, decolonialidades, branquitude e negritude, a partir de um olhar feminista pós-estrutural e decolonial, para uma experiência de docência na primeira disciplina sobre raça da grade curricular da graduação em Psicologia, em uma universidade pública do nordeste do Brasil.

Na mesma esteira analítica, apresentamos o artigo, Educação e branquitude: uma discussão com professores da educação básica que mapeia e problematiza discursos e representações recorrentes acerca da diferença racial e da Branquitude, por meio de entrevistas com sete professores que atuavam na educação básica da rede pública municipal de Sapucaia do Sul/RS, entre os anos de 2016 e 2017, com base na exibição de dois curtas- metragens: “Cores e Botas” e “Pode me chamar de Nadí”. As análises apresentadas são realizadas na perspectiva teórica dos Estudos Culturais em Educação, a partir dos conceitos de representação, identidade e Branquitude.

A pesquisadora Jessika Rezende Souza da Silva, mestre em Ensino de História e doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, nos apresenta uma reflexão sobre a formação de professores e a produção de materiais didáticos, nos últimos anos, sobretudo a partir da demanda forjada pela Lei 10.639/03. Constata-se que houve um cuidado e um aperfeiçoamento em relação à produção de materiais e a formação dos docentes. Entretanto, percebe-se que, apesar do esforço para evitar o eurocentrismo, compreender africanos e afro-brasileiros como agentes históricos ativos, os temas ligados à religiosidade africana e afro-brasileira seguem silenciados nas salas de aula. O artigo Entre a cruz e o terreiro: uma análise em torno da integração entre a religiosidade afro-brasileira e o Ensino de História no Museu do Negro do Rio de Janeiro, problematiza a persistente marginalização das manifestações culturais ligadas à temática religiosa no Ensino de História. Tomou-se, por objeto, a exposição do Museu do Negro do Rio de Janeiro, para explicitar a possibilidade de uma abordagem histórica que integre aspectos culturais, atribuindo historicidade aos mesmos, visto que o Museu do Negro aciona a cultura afro-brasileira, como espaço de resistência, para construir narrativas históricas sobre a população negra em diferentes períodos.

Por fim, na sessão Entrevista, realizada pela doutora em História e professora do Instituto de Humanidade da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira/Unilab, Joana D`Arc de Sousa Lima, trazemos o depoimento da artista visual e cineasta Lia Letícia, intitulado Não me sinto líder e isso é ótimo. A artista escolhida para a entrevista é nascida em Viamão/RS, em 1975, radicada em Olinda e Recife, onde mora e trabalha. Em Porto Alegre, trabalhou com cenografia para teatro e escola de samba. Mudou-se para Olinda, passando a explorar a pintura em diversos suportes, como murais e tecidos. Ao morar na casa Molusco Lama, participou de exposições coletivas e realizou suas primeiras exposições individuais, atuando ainda em performance e iniciando criação em vídeos e filmes. Além de escrever e dirigir seus próprios filmes, trabalha como diretora de arte. É educadora no projeto de experimentação audiovisual Escola Engenho e também em diversos cursos em festivais, mostras, entre outras atividades. Coordena o Cinecão, além de outros projetos independentes na Galeria Maumau|Recife. Lia é uma das artistas artivistas da cidade do Recife, com um olhar amplo, generoso, plural e potente para o mundo que a cerca. Uma mulher independente, batalhadora, que enfrenta no campo artístico as desigualdades e hierarquias impostas pelo sistema da arte. Por meio de uma poética que atravessa as questões sociais e políticas, seu trabalho vem contribuindo para a construção de novas narrativas contra-hegemônicas.

Notas

1 Cada uma de nós tem em nossa trajetória profissional e intelectual passagens muito significativas por museus e instituições culturais no Brasil. Certamente que isso marca nosso lugar de fala e nosso olhar para o campo artístico, para o patrimônio cultural e artístico e para a museologia. Além de que, como investigadoras, nossas pesquisas caminham por essas trilhas e nossos interesses estão permeados por esses lugares. E, ainda, vale ressaltar em relação ao debate da profissionalização de trabalhadores e trabalhadores de museus a pesquisa de mestrado, publicada em livro de Carolina Ruoso, cito, RUOSO, Carolina. O Museu do Ceará e a linguagem poética das coisas (1971-1990). Fortaleza: Museu do Ceará/ Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, 2009.

2 Verificar a Lei 10.639/03 e o conjunto das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, e também o desenvolvimento do Plano Nacional de Implementação dessas Diretrizes, que defendem que o papel da educação infantil; os espaços coletivos educacionais que a criança pequena frequenta são privilegiados para promover a eliminação de toda e qualquer forma de preconceito, discriminação e racismo. Em 2008, a Lei Federal 11.645, de mesmo ano, tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas de ensino fundamental e médio. De acordo com a lei, a atribuição dos estudos é, em especial, relacionada à área de história, como fica explicitado nos parágrafos de seu artigo 1º.: “§ 1º: “O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.” E ainda: “§ 2º: “Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras.”

3 Os estudos apontam para outras direções nesse sentido importante consultar ABRAMOWICZ, A.; OLIVEIRA, F. de; RODRIGUES, T. C. A criança negra, uma criança e negra. In: ABRAMOWICZ, A.; GOMES, N. L. (Orgs.). Educação e raça. Perspectivas políticas, pedagógicas e estéticas. 1. ed. Minas Gerais: Autêntica, 2010, v. 1, p. 75-96. ______; RODRIGUES, T. C. Relações etnicorraciais: práticas racistas e preconceituosas nas classes de educação infantil e algumas propostas iniciais de como desconstruir estas práticas. In: BRANDÃO, A. P.; TRINDADE, A. L. da (Orgs.). Saberes e fazeres, v. 5: Modos de brincar. Revista1 ed. Rio de Janeiro: Fundação Roberto Marinho, 2010, v. 5, p. 13-24; Educação infantil e práticas promotoras deigualdade racial / [coordenação geral Hédio SilvaJr., Maria Aparecida Silva Bento, Silvia Pereirade Carvalho]. — São Paulo : Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades – CEERT :Instituto Avisa lá – Formação Continuada de Educadores, 2012.


Organizadores

Carolina Ruoso – UFMG.

Joana D’Arc de Sousa Lima – UNILAB.

Marcele Regina Nogueira Pereira – UNIR.


Referências desta apresentação

RUOSO, Carolina; LIMA, Joana D’Arc de Sousa; PEREIRA, Marcele Regina Nogueira. Apresentação. PerCursos. Florianópolis, v. 20, n. 44, p. 03 – 10, set./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]

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Big Data, pós-verdade e democracia | PerCursos  | 2020

Big Data, pós-verdade e democracia | PerCursos  | 2020, GONÇALVES Janice (Org d), Percursos (Prd), Big Data, Pós-Verdade, Democracia

As tecnologias de informação e comunicação têm permitido capturar, armazenar e disseminar quantidades massivas de dados, sejam eles de indivíduos, governos ou corporações. Por seu volume e complexidade, tais dados exigem um tratamento cada vez mais sofisticado, o que traz novos desafios para diferentes profissionais, com destaque para cientistas da informação, programadores, estatísticos e matemáticos. Simultaneamente, o uso massivo desses dados no ambiente de negócios acende a luz de alerta para ameaças a direitos fundamentais dos cidadãos-consumidores. Dados pessoais são registrados de múltiplas formas e com frequência cedidos inadvertidamente, nas numerosas interações dos usuários da Internet. Com isso, os sistemas de monitoramento e vigilância se tornam uma constante, num fluxo quase indiscriminado entre as dimensões do público e do privado. Construir, analisar e controlar esses gigantescos repositórios de dados torna-se vital para conquistar ou assegurar hegemonias (econômicas, políticas, culturais) e exercer poder. Em paralelo, conjuntos expressivos de registros escritos, visuais e audiovisuais têm sido propositadamente disseminados, em larga escala, de forma errônea e distorcida, com grande peso na formação de opinião e, de forma bastante visível, enorme influência nos processos eleitorais recentes, em vários países, pondo em xeque os mecanismos tradicionais de garantias democráticas.

A teia que enreda Big Data, pós-verdade e democracia é tema do dossiê da edição de 2020/1 da revista PerCursos. Seu debate é em tudo oportuno, ainda mais se considerado o terrível momento atual, de pandemia de Covid-19, vivenciado em países de todos os continentes: o isolamento e o distanciamento sociais, defendidos como medidas preventivas fundamentais na ausência de uma vacina para a doença, reforçaram ainda mais, no cotidiano dos indivíduos, a relevância dos serviços e das sociabilidades não presenciais, efetuados pela comunicação remota proporcionada pelas tecnologias eletrônicas. Por outro lado, o monitoramento dos efeitos da pandemia e as articulações necessárias para sua gestão e combate têm também demonstrado o papel fundamental das trocas de informação em tempo real, em nível global, bem como do tratamento e da análise rigorosos e cientificamente embasados de dados massivos.

Proposto em tempos pré-pandêmicos, o dossiê é composto por três artigos e uma tradução, cabendo salientar que uma das resenhas dessa edição dialoga diretamente com ele. Os três artigos foram elaborados por estudiosos de diferentes formações, o que contribui para proporcionar o debate entre campos disciplinares que a revista objetiva estimular. Sem deixar de mencionar autores referenciais nas discussões iniciais sobre o “ciberespaço” e a “cibercultura” – como Pierre Lévy e Manuel Castells –, os artigos em questão abarcam contribuições recentes sobre a “infosfera”, sobre o “capitalismo de plataformas”, o “tecnocapitalismo” ou o “semiocapitalismo”, mobilizando autores como Byung-Chul Han, Derrick de Kerchhove, Luciano Floridi, Franco Berardi, Evgeny Morozov, Nick Srnicek, Hartmut Rosa, Karel Kosik, Klaus Schwab, Guilherme Wisnik e Luís Suarez-Villa.

No primeiro desses artigos – “Nuvem: Plataforma: Extração”, de Moysés Pinto Neto – a imagem da “nuvem”, fundamental nas ofertas de armazenamento de dados dos usuários, por parte das plataformas digitais (e que, na perspectiva das corporações que mantêm as plataformas, envolvem uma atividade de “extrativismo” dos dados desses mesmos usuários), é explorada como metáfora das novas formas de operação do capitalismo e da “plataformização” da vida, já que as implicações do uso das plataformas sempre estão, em alguma medida, encobertas. Referindo-se especificamente às redes sociais, o autor assinala o mal-estar frequente provocado pelas interações que elas supõem, que simultaneamente esgota e vicia os indivíduos, engajados em um permanente exercício de produção de identidades.

“Democratização e Tecnocapitalismo: o Brasil na Era Liberal”, de Giovanni Antonio Pinto Alves, Luís Henrique do Nascimento e Ana Celeste Casulo, situa historicamente a emergência do tecnocapitalismo e os desafios que coloca à democracia, tendo em vista, em especial, as sociabilidades e transformações geradas a partir do ambiente da infosfera. No artigo, os autores se interrogam sobre as relações entre essas mutações do capitalismo e a democracia no Brasil (considerada estruturalmente frágil), sobretudo a partir dos anos 1990.

Já Roberta Fantin Schnell, Ademilde Silveira Sartori e Valdeci Reis, no artigo “Big Data, Psicopolítica e Infoética: repercussões na cultura e na educação”, põem em relevo aspectos éticos da cultura digital, dadas as ameaças aos direitos humanos observadas de forma cada vez mais frequente nas interações online.

Mirtes Dâmares Santos de Almeida Maia e Danilo Garcia da Silva tiveram a iniciativa de encaminhar à revista PerCursos a tradução do artigo de Ben Kei Daniel intitulado “Big Data e Ciência de Dados: uma revisão crítica de questões para a pesquisa educacional”. Publicado originalmente em 2019, no British Journal of Educational Technology, o artigo de Daniel (doutor em Ciência da Computação e Tecnologias Educacionais e de Comunicação e autor de várias publicações a respeito de comunidades virtuais) discute as potencialidades e desafios que os Big Data oferecem aos pesquisadores, particularmente os pesquisadores do campo educacional.

Em resenha sobre a edição brasileira de Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política, Lucas Kammer Orsi apresenta as linhas gerais do livro, no qual Evgeny Morozov insiste na necessidade de superar a visão positiva das plataformas digitais, em grande medida criada pelas próprias corporações responsáveis pela sua criação, disseminação e sustentação de tais plataformas. Para Morozov, as dimensões políticas das inovações geradas pelo Vale do Silício e suas graves consequências para o exercício democrático devem ser o eixo de um debate incontornável na contemporaneidade.

A primeira edição de 2020 da revista PerCursos apresenta ainda outra resenha e cinco artigos, autônomos em relação aos temas do dossiê.

Quanto à segunda resenha, André Luís Andrade Silva aborda o livro Ser mãe é… A maternidade normalizada pelo discurso jornalístico, publicado, assim como o livro de Morozov, em 2018. Com o livro, a autora, Ariane Carla Pereira, divulga os resultados de sua pesquisa de doutorado, defendida em 2014 na UFRJ, na qual investigou o discurso jornalístico sobre as mulheres a partir da maternidade, tendo como base documental a revista Pais & Filhos, no período entre 1968 e 2008. Quanto aos artigos, em sua maioria enfocam diferentes realidades vivenciadas no Brasil contemporâneo, que com frequência ressoam problemas sociais, culturais e políticos com longa inscrição temporal. Jéferson Silveira Dantas discute os efeitos da atuação de uma “nova direita” nas questões educacionais, com ênfase na Educação Pública; uma “nova direita” (abarcando, na perspectiva do autor, grupos conservadores, neoliberais autoritários e a classe média empreendedora) que disputa os recursos públicos e se mostra favorável à privatização. Ana Clara Borges e Juliana Vinuto, a partir dos dados de uma pesquisa de campo em Niterói, põem em xeque o racismo institucional das estruturas do Judiciário brasileiro. Roselma Lopes Ribeiro, Ricardo Santos de Almeida e Cirlene Jeane Santos e Santos, também com base em pesquisa, apresentam dados sobre o acesso à terra e às políticas públicas de apoio à atividade agrícola em dois povoados do município de Limoeiro de Anadia, Alagoas, refletindo sobre as condições de reprodução da vida e de recriação dos modos de vida dos camponeses. Jaqueline Longen Rossatto, Lisandro Pezzi Schmidt e Pierre Alves Costa analisam os efeitos de uma obra viária (o Contorno Norte de Maringá) sobre os espaços urbanos, as atividades de serviços e de comércio no eixo conurbado entre os municípios de Maringá e Sarandi, no Paraná. Finalmente, Heloise Vargas de Andrade e Jacira Helena do Valle Pereira Assis, partindo de um recorte temporal mais recuado (décadas de 1930 a 1960), analisam os percursos formativos de alguns intelectuais matogrossenses, com ênfase nas formas como representaram sua passagem pelo ensino secundário.

É, portanto, com essa rica gama de temas e problemas, predominantemente abordados de maneira questionadora e intensamente comprometida com a compreensão de processos históricos da contemporaneidade, que a revista PerCursos inicia suas edições de 2020. À leitura!


Organizadora

Janice Gonçalves – Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. Editora-Chefe.


Referências desta apresentação

GONÇALVES, Janice. Editorial. PerCursos. Florianópolis, v. 21, n. 45, p. 01 – 04, jan./abr. 2020. Acessar publicação original [DR]

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Mudanças climáticas e problemas ambientais |  PerCursos | 2020

Mudanças climáticas e problemas ambientais |  PerCursos | 2020, GONÇALVES Janice (Org d), Percursos (Prd), Mudanças Climáticas, Problemas Ambientais

No livro The Uninhabitable Earth: A History of the Future − publicado em 2019 e no mesmo ano traduzido para o português e editado no Brasil −, o jornalista estadunidense David Wallace-Wells, com base em projeções científicas de um aquecimento global de 4º a 4,5ºC até o ano 2100, discorreu sobre os problemas necessariamente gerados por essa provável alteração. Com variações conforme distintos pontos do globo, podem ser vislumbradas diversas catástrofes: derretimento de calotas polares; ondas de calor com grande poder letal; secas; incêndios florestais; enchentes; crises alimentares e sanitárias; intensas imigrações provocadas pela impossibilidade de sobrevivência nas novas condições do ambiente. O jornalista não se furtou a arrolar decisões urgentes a tomar: “um imposto de carbono e o aparelhamento político para eliminar agressivamente a energia suja; uma nova abordagem de práticas agrícolas e uma guinada na dieta mundial de carne e laticínios; e investimento público em energia verde e captura de carbono.” (WALLACE-WELLS, 2019, p. 276). Contudo, na atual ordem econômico-política mundial, qual a probabilidade de que essas decisões sejam tomadas e efetivadas, em larga escala?

O ano de 2020, muito fortemente marcado pela pandemia de Covid-19, mas também por incêndios de matas e florestas na Austrália, nos EUA e em países da América do Sul (especialmente no Brasil e na Bolívia), parece indicar que talvez não sejam necessários 80 anos para que nos encontremos em uma “Terra inabitável”. Afinada com as preocupações motivadas por esse grave cenário, a segunda edição da revista PerCursos, em 2020, traz o dossiê “Mudanças climáticas e problemas ambientais”. Os seis artigos que compõem o dossiê articulam pesquisadores vinculados a instituições do nordeste, do sudeste e do sul do Brasil.

O desafio de promover o desenvolvimento sustentável, aliado ao planejamento urbano, é sublinhado no primeiro artigo, de autoria de Rylanneive Leonardo P. Teixeira, Zoraide Souza Pessoa, Ana Célia B. Araújo e Eric M. Soares Dias; para os autores, é preciso criar, nas cidades, estratégias de adaptação às mudanças climáticas que, pautadas na sustentabilidade, promovam “justiça ambiental e menor vulnerabilidade”. O planejamento urbano e a sustentabilidade também são valorizados no artigo de Samantha Jandrey e Juarês José Aumond; os autores apresentam previsões de impacto das mudanças climáticas sobre a orla marítima do município catarinense de Itapema, tendo em vista que o aumento do nível do mar afetará áreas densamente edificadas, bem como áreas de mangues e restingas.

As transformações que impactam o clima têm sido admitidas, observadas, medidas e estudadas, embora não haja consenso quanto às suas razões – afinal, qual o grau de responsabilidade das ações humanas nessas mudanças? Além disso, vivemos um momento histórico em que até mesmo noções científicas basilares são acintosamente postas em xeque, e as mudanças climáticas não escapam do negacionismo. Nesse sentido, tem particular interesse o artigo de Mathias Lengert, Rosiane Zavonello e Cláudia Herte de Moraes, que abordam, na perspectiva da Análise do Discurso, 47 reportagens sobre mudanças climáticas, veiculadas em 2016 por dois jornais brasileiros de grande circulação: Folha de S. Paulo e O Globo. Entre os resultados da análise está a detecção, na cobertura jornalística do tema feita por esses dois veículos de imprensa, de uma ênfase maior no discurso científico (e, consequente, do recuo quanto ao espaço destinado às posturas negacionistas ou céticas).

Os danos e desastres ambientais são salientados nos três demais artigos do dossiê, sendo que em dois deles ganha relevo o tema da vulnerabilidade socioambiental. Eduardo Schmidt Longo e David Valença Dantas, mobilizando ferramentas do geoprocessamento, apresentam uma proposta de identificação de áreas especialmente vulneráveis a conflitos e riscos socioambientais. Como indicativos do potencial do método, são apresentados os dados obtidos a partir de sua aplicação em uma área do município de Florianópolis, em Santa Catarina: o distrito do Campeche. Já José Lidemberg de Sousa Lopes e Leandra Lourenço Domingos tomaram como ponto de partida, na pesquisa que gerou o artigo, casos concretos de enchentes em Alagoas e, mais especificamente, o desastre socioambiental causado pelo transbordamento da bacia do Rio Mundaú, em 2010, no município de União dos Palmares, Alagoas. Entre as contribuições da pesquisa está a elaboração de um mapa de transbordamento do rio Mundaú, que poderá orientar as administrações municipais na gestão do território.

Fechando o dossiê, o artigo de Luana Fernandes dos Santos e Tatiana Dahmer Pereira e de Azeredo articula desastres ambientais à pandemia de Covid-19, tendo em vista o que é designado como “colapso do capital”. Na perspectiva das autoras, há que se considerar os desastres ambientais como processos social e historicamente situados; assim, para melhor compreender a pandemia de Covid-19, cabe analisar o processo que a gerou, explicitando sua estreita relação com a produção e reprodução capitalista.

Além dos artigos que compõem o dossiê, esta edição da revista PerCursos contempla seis outros artigos e uma resenha. Tal como ocorre no dossiê, os artigos de perfil temático variado foram elaborados por autores cujos vínculos institucionais remetem a diferentes regiões do país: nordeste, centro-oeste, sudeste e sul. Caracterizam-se ainda por diversidade temática e disciplinar, de modo a estimular diálogos entre História, Psicologia, Geografia e Arquivologia.

Quatro autores − Ronan da Silva P. Gaia, Alice da Silva Vitória, Cristina Aparecida Silva e Fabio Scorsolini-Comin – analisam dimensões da masculinidade negra no Brasil, vislumbradas no rap “Jesus chorou”, composto por Mano Brown, do grupo Racionais MC’s. Pedro Henrique C. Fernandes e Guilherme Ferrari Oliveira apresentam as contribuições da geografia eleitoral e do voto para pensar as relações de poder em municípios do norte central do Paraná, entre 1947 e 2016.

Leonardo Baptista examina aspectos da trajetória da Delegacia de Ordem Política e Social no Espírito Santo, durante a ditadura militar, sobretudo a partir de documentação de arquivo referente às décadas de 1970 e 1980. Dos desafios de interpretação da documentação de arquivo do DOPS/ES, passamos àqueles de tratamento dos documentos arquivísticos digitais, abordados em artigo elaborado por Henrique Machado dos Santos, Fabiana Ciocheta Mazuco e Daniel Flores. Autores referenciais como Caio Prado Junior, Celso Furtado e Florestan Fernandes são revisitados por Leônidas de Santana Marques, que em seu artigo busca destacar o legado desses intelectuais para pensar a categoria de “desenvolvimento”; são apresentados, em grandes traços, momentos e argumentos fundamentais do pensamento de Prado Jr., Furtado e Fernandes, tendo em vista sua compreensão dos processos históricos de desenvolvimento capitalista, a partir do caso brasileiro.

Lana de Souza Cavalcanti, Marquiana de Freitas V. B. Gomes e Vanilton Camilo de Souza, por sua vez, discutem uma experiência colaborativa de produção de material didático (sobre o “território goiano”) na qual se intentou favorecer o protagonismo de professores e alunos que seriam seus futuros usuários; afirma-se ainda, no artigo em questão, uma “Geografia Escolar”, que imbricaria conhecimentos próprios da Geografia com as demandas e especificidades do contexto escolar.

Completa a edição a resenha de Maurício Silva sobre o livro A descolonizar las metodologías: investigación y pueblos indígenas, da pesquisadora neozelandesa Linda Tuhiwai Smith. Originalmente publicado em 1999, em inglês, tendo como referência principal as pesquisas e atividades da autora voltadas para o povo maori, o livro foi traduzido para o espanhol e publicado no Chile em 2016, pela editora Lom. A editora Lom tem se destacado na edição de publicações que buscam valorizar os povos originários; aliás, lom é uma palavra da língua dos yámanas (ou yaganes), habitantes da Terra do Fogo, e significa “sol”. Que a afirmação solar da perspectiva decolonial inspire reflexões luminosas, nesses tempos tão sombrios para Gaia! Janice Gonçalves Editora-Chefe


Referência

WALLACE-WELLS, David. A terra inabitável: uma história do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.


Organizadora

Janice Gonçalves – Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. Editora-Chefe.

Referências desta apresentação

GONÇALVES, Janice. Editorial. PerCursos. Florianópolis, v. 21, n. 46, p. 01 – 04, maio/ago. 2020. Acessar publicação original [DR]

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Utopias e distopias na contemporaneidade | PerCursos | 2020

Utopias e distopias na contemporaneidade | PerCursos | 2020, GONÇALVES Janice (Org d), Percursos (Prd), Utopias, Distopias

Na abertura do filme “Arquitetura da destruição”, lançado em 1989, vê-se a sequência de imagens aéreas de uma pequena povoação, em meio à paisagem predominantemente natural. No desdobrar das imagens idílicas, o narrador anuncia uma característica fundamental do projeto nacional-socialista: a de ser um sonho de harmonia, pureza, força e beleza, em reação à ordem percebida como existente, na qual esses valores supostamente se degradavam e estariam às portas da aniquilação. Era preciso combater aqueles que ameaçavam esses valores e impediam a realização do sonho. Como se sabe, o que daí derivou concretizou-se como terrível pesadelo, vivido em vigília.

Visões acerca de um estado de coisas ideal, sonhado e desejado, que proporcionaria o bem viver, estão associadas às utopias. São traduzidas, às vezes, por projeções de um mundo de liberdade, igualdade, justiça, felicidade; outras vezes, associadas à prosperidade, segurança, ordem, harmonia. Já as distopias – etimologicamente, lugares ruins, hostis, doentios, imperfeitos, como destacou o historiador britânico Gregory Claeys (2017, p. 4) – configuram a negação da felicidade, ao inverter os termos valorizados nas utopias ou ao lê-los em outra clave. Assim, as projeções distópicas costumam ser caracterizadas por desigualdade, injustiça, ausência de liberdade; aquilo que, na perspectiva utópica, poderia ser considerado ordenado e harmonioso, nas distopias mostra dimensões controladoras, autoritárias, opressivas.

Seriam utopia e distopia faces de uma mesma moeda – a utopia, para uns, sendo necessariamente distopia para aqueles que não se coadunassem com o projeto utópico? Qual o lugar do dissenso e da diferença, nas utopias? Uma utopia pode ser excludente e antiética? Seria a distopia a realização mal concebida ou mal sucedida de um projeto utópico – com origem em uma mesma receita, mas com dosagens diferentes de seus componentes, remédio tornado veneno?

Dialogam em alguma medida com essas questões gerais os seis artigos que compõem o dossiê “Utopias e distopias na contemporaneidade”. Foram elaborados por autores vinculados a instituições das regiões sudeste e sul do Brasil, além de Portugal. Nos dois primeiros textos – os artigos “Enfrentando distopias contemporâneas” e “Democracia colapsada e alternativas às utopias do capitalismo pandêmico” – discute-se o tema do dossiê em articulação com o cenário da pandemia causada pelo novo coronavírus (o Sars-CoV-2), tendo em vista ainda situações críticas geradas, na atualidade, por projetos neoliberais em curso e pelo fortalecimento de correntes e movimentos políticos antidemocráticos. As distopias, em especial, são enfocadas nos três artigos seguintes, sobretudo entendidas como gênero narrativo. São examinadas algumas de suas expressões na literatura, na música, nas Histórias em Quadrinhos – especificamente, no romance “O conto da aia” / The Handmaid’s Tale (de Margaret Atwood), no disco “Animals” (do grupo de rock Pink Floyd) e na HQ “Judge Dredd” (de John Wagner e Carlos Ezquerra, trabalho que também ganhou adaptações para o cinema). O artigo que encerra o dossiê apresenta a “utopia decolonial”, conformada a partir das ideias e perspectivas decoloniais de Walter Mignolo e Enrique Dussel.

Esta terceira e última edição da revista PerCursos em 2020 ainda disponibiliza, para leitura, seis artigos fora do dossiê, além de uma entrevista. Seus autores estão vinculados a instituições das regiões sul, sudeste e nordeste do Brasil e abordam temas variados, que transitam pelos campos da Literatura, da Psicologia, dos estudos referentes ao meio ambiente, da Educação e da História. Mais especificamente, envolvem, no primeiro artigo, reflexões sobre um conto em que a escritora brasileira Marília Arnaud põe em causa a condição feminina, a sexualidade e a velhice; segue-se, no segundo, a discussão, com base em dados de pesquisa e diálogo com bibliografia de referência, sobre formas de lidar com o autismo no ambiente familiar. O terceiro e o quarto desses artigos têm em comum as questões ambientais no Brasil: em um deles, aborda-se privilegiadamente o tratamento da natureza como recurso explorado e apropriado pelo capital (indicando-se uma linha de continuidade entre a dominação colonial portuguesa e a contemporaneidade); em outro, enfocam-se as consequências negativas da industrialização do campo e as possibilidades de alteração desse quadro, a partir de experiências implicadas na noção de multifuncionalidade agrícola. Os dois últimos artigos têm em comum a questão do ensino, quer refletindo sobre uma experiência de estágio em turma de alunos do ensino fundamental (na qual as atividades giraram em torno dos temas “água” e “biodiversidade aquática”), quer sobre o lugar da chamada “PréHistória” nos livros didáticos brasileiros de História.

Encerra a edição, a entrevista concedida por Sara Beatriz Guardia à professora Carmen Susana Tornquist, do Centro de Ciências Humanas e da Educação da UDESC. Peruana, a entrevistada é professora e pesquisadora vinculada à Universidad de San Martín de Porres, em Lima, além de diretora do Centro de Estudios La Mujer en la Historia de América Latina (CEMHAL) e diretora da cátedra José Carlos Mariátegui. Na entrevista − realizada em espanhol e assim transcrita −, Sara Beatriz Guardia apresenta aspectos de seus estudos e algumas de suas publicações.

À leitura!


Referências

ARQUITETURA da destruição. Direção de Peter Cohen. São Paulo: Versátil Home Vídeo, 2006. 1 DVD (121 min.).

CLAEYS, Gregory. Dystopia: a Natural History – A study of modern despotism, its antecedents, and its literary diffractions. Oxford: Oxford University Press, 2017.


Organizadora

Janice Gonçalves – Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. Editora-Chefe.

Referências desta apresentação

GONÇALVES, Janice. Editorial. PerCursos. Florianópolis, v. 21, n. 47, p. 01 – 03, set./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]

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Os estudos decoloniais centrados nas filosofias indígenas ameríndias | PerCursos | 2021

Os estudos decoloniais centrados nas filosofias indígenas ameríndias | PerCursos | 2021, BRIGHENTI Clovis Antonio (Org d), LACERDA Rosane Freire (Org d), FEITOSA Saulo Ferreira (Org d), Percursos (Prd), Estudos Decoloniais, Filosofias Indígenas Ameríndias

Este dossiê foi organizado por docentes que atuam com a temática indígena; o historiador Clovis Antonio Brighenti (UNILA), a advogada Rosane Freire Lacerda (UFPE) e o bioeticista Saulo Ferreira Feitosa (UFPE). A escolha do título, Os estudos decoloniais centrados nas filosofias indígenas ameríndias, tem como propósito promover diálogos inter epistêmicos que possibilitem uma interação entre os sistemas tradicionais de conhecimentos indígenas e os conhecimentos acadêmicos produzidos a partir de pesquisas científicas. Nesse sentido, espera-se que ele contribua com os processos de contestação e insubmissão à colonialidade do saber, na medida em que possibilite a visibilização de outros modos de existência construídos com base em filosofias próprias dos povos originários da América Latina e do Caribe.

Os artigos aqui reunidos têm em comum as novas abordagens possibilitadas pelas teorias decoloniais, a partir das perspectivas dos povos indígenas expressas em seus sistemas de vida: seus saberes, suas práticas, relações socioeconômicas, relações socioambientais e espirituais − enfim, um conjunto de conhecimentos específicos e diferenciados.

O Dossiê é resultado das reflexões do Curso de Extensão em Histórias e Culturas Indígenas, no qual os organizadores são docentes, ofertado anualmente pela Universidade Federal da Integração Latino-americana, em parceria com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a um público bastante diversificado, mas que tem como foco a atuação com a temática indígena no seu campo de pesquisa e ação.

Os estudos decoloniais ganharam importante espaço nas produções acadêmicas nas últimas décadas, estabelecendo novas e profundas viradas epistêmicas ao assumirem um posicionamento crítico à colonialidade do poder, do saber e do ser. São produções que questionam a dominação colonial e propõem uma nova forma de pensar e de relacionar-se com as epistemologias dos povos originários, a partir de novos lugares e de outros valores, rompendo com a dominação histórica e o racismo epistêmico.

Os saberes dos povos indígenas são centrais nesse processo porque, além da rica diversidade, estão ancorados em experiências milenares que se formaram a partir das próprias ciências nativas, de experimentos e vivências com o ambiente latino-americano, ou seja, gestados no Território da Abya Yala, conforme é denominado por alguns povos esse espaço continental. Ao longo da história dos últimos 529 anos da invasão Ibérica no continente, os saberes dos povos originários não foram considerados, exceto aqueles usurpados para serem transformados em mercadoria. Ocorreu o processo que o professor Boaventura de Sousa Santos definiu como epistemicídio, ou seja, tentativas de eliminação e substituição dos saberes nativos.

Apesar da violência histórica, os povos originários resistiram na defesa de seus modos de existir, tanto na luta para assegurar seus territórios físicos, as terras tradicionalmente ocupadas, quanto na defesa de seus territórios epistêmicos. O presente dossiê revela o grande desafio que é conhecer e dialogar com a pluralidade de saberes dos povos indígenas, o que poderá servir como apontamento para a superação de diversas mazelas humanitárias decorrentes do projeto colonial europeu que pretendeu subjugar e homogeneizar os saberes Outros. São temas que partem do pressuposto da interculturalidade e interdisciplinaridade não apenas nas áreas da antropologia e história, mas nas diversas áreas do conhecimento.

No primeiro artigo, Do encobrimento da memória e do outro: uma analítica acerca dos relatos da colonização, os autores traçam uma análise do processo de colonização, pelo qual surge a figura do “índio” e toda sua carga generalizante e pejorativa. Atividade necessária para o colonialismo a fim de descaracterizar a humanidade e diversidade dos povos indígenas e justificar o mito da modernidade. Na sequência, vem o artigo Un pueblo y una clave para filosofar, no qual os autores propõem romper com os parâmetros da modernidade e pós-modernidade e buscar novas atitudes decoloniais através da experiência de “inserção e enculturação” ou indigenização, a fim de superar os paradigmas racionais dominantes e acessar o “ayxa sk” ujol, ou seja, usar mais o coração e a percepção e menos a razão manifestada pelo cérebro.

No artigo Espelho espelho meu… a ferida narcísica de um colonialismo falocêntrico, a autora propõe a criação de uma nova linguagem decolonial a fim de reconstruir a noção de conhecimento. Para ela, foi o sistema patriarcal moderno que colonizou, ao longo da história, as narrativas e as línguas nativas que, segundo ela, são intraduzíveis para os colonizadores, sendo a língua um ideal regulatório. A partir do pensamento feminista decolonial, propõe a criação de uma nova linguagem, fugindo das restrições gramaticais que perpassam o gênero, a sexualidade e a racialidade. Por fim, defende que escrever é, portanto, um ato de resistência. Por sua vez, o artigo Filosofia de uma pessoa coletiva faz uma análise das obras do filósofo indígena Ailton Krenak, a fim de problematizar a ideia de sujeito coletivo ou pessoa coletiva. Para o autor, é necessário questionar o senso comum ocidental que considera o labor filosófico como algo que se realiza individualmente. Propõe também uma crítica às noções de ancestralidade, memória e tradição ao compreender como o filósofo Krenak sugere outra forma de se relacionar com temas da Filosofia.

Em Interculturalidade, colonialidade e povo Guarani – a busca da Terra sem Males, os autores convidam a uma reflexão sobre os processos de colonização sofridos pelos povos indígenas da América Latina, em particular o povo Guarani. Registram as contribuições de Néstor Garcia Canclini e Clifford Geertz para pensar a interculturalidade e suas relações. Como análise prática, trazem a contribuição do povo Guarani e sua concepção mística/religiosa da “busca da Terra sem Males”.

O debate sobre a memória é a proposta do artigo Narrativas savantes construindo os territórios dos povos tradicionais no semiárido alagoano, em que a autora analisa as narrativas orais do povo Xukuru-Kariri na cidade de Palmeira dos Índios (AL), destacando que o exercício de cultivar a memória dentre os povos indígenas agrega principalmente a função de educar. O artigo destaca também que na arte de educar emergem as experiências pretéritas que contribuíram para a recuperação do antigo território (outrora ocupado), também usado nos exercícios das atividades cotidianas, dos rituais funerários, das correrias contra os invasores, contra a seca, contra a fome. Conclui afirmando que falar em narrativa histórica e memória dos esquecidos é invocar a presença do passado, que não podendo ser retomado em sua totalidade, retoma a relação interétnica e os desafios da alteridade.

Através do artigo Pensamento indígena e conhecimento histórico: reflexões acerca das funções do ensino de história, o autor faz uma reflexão sobre possíveis diálogos entre a produção teórica de autores indígenas e o ensino de história. O artigo traz uma reflexão acerca do ensino de história indígena com base nas discussões apresentadas pela educação histórica, focando na perspectiva das narrativas indígenas e suas contribuições para a historiografia e o ensino. Na sequência, o artigo Filosofias indígenas: fractalidade como ferramenta de conhecimentos tradicionais busca compreender a complexidade do pensamento indígena da não exclusão e multiescalaridade, permitindo espaço para os contraditórios, ao passo que a filosofia não ameríndia, dos povos egípcios, helenos, persas, fenícios e romanos, que deram a base para o pensamento europeu, fundamentarem-se na perspectiva compactada por Aristóteles no princípio da não contradição, que afirma nada poder ser e não ser ao mesmo tempo.

O artigo Comunidade indígena Fuduwaadunha: vida e convivência na região de Auaris – Terra Indígena Yanomami – Roraima analisa a prática da gestão territorial das comunidades Ashikamau e Fuduwaadunha da região de Auarís, na Terra Indígena Yanomami, em Roraima. Traz ao debate as mudanças impostas pelos agentes externos – Funai, missões evangélicas, pelotão de fronteira e Funasa – a fim de compreender as mudanças impostas à gestão do território nos tempos atuais, considerando o crescimento populacional e demandas por produção e extração de alimentos. Na mesma perspectiva de pensar os desafios das gestões territoriais e os impactos do mundo externo, o artigo Entre mundos: a colonialidade no rompimento da barragem de fundão em Mariana/MG. sentidos e percepções dos Krenak analisa os impactos do crime ambiental e humano provocados pela empresa Vale do Rio Doce. A partir do depoimento de lideranças do povo Krenak, os autores analisam os desafios para os Krenak, não apenas na dimensão econômica, mas também na perspectiva da identidade, da sociabilidade, da religiosidade e da medicina tradicional. Para os autores, os depoimentos demonstram que o crime não foi um fato isolado, mas o capítulo de um processo histórico de violências impostas pelo colonialismo.

Na sequência, o Dossiê incorporou o artigo sobre as práticas medicinais indígenas e os preconceitos revelados sobre os mesmos. Com o título Entre as (re)existências da cura xamânica na região amazônica e o cientificismo colonial: Um olhar discursivo sobre o silenciamento vivenciado pelos povos originários, o artigo aborda a temática da eficácia simbólica do Xamanismo, na busca da cura dos sujeitos envolvidos, bem como levanta questões sobre o silenciamento desses sujeitos originários em favor das práticas de cura cientificistas. Tendo como proposição teórico-metodológica a análise do discurso, as autoras analisam a prática xamânica na contemporaneidade, sua experimentação, os preconceitos e a subjugação frente às práticas de cura trazidas pelo colonialismo, com seu cientificismo e suas religiões. Na mesma perspectiva do artigo acima, Pesquisa ação e possibilidades de interculturalidade crítica e decolonização da prática acadêmica: comunidade Kanhgág (Kaingang) Por Fi Ga /RS/Brasil analisa o preconceito acadêmico com relação às práticas indígenas. Com base em estudos, os autores analisam que mesmo depois da publicação da Lei 11.645/2008, os cursos pedagógicos e de licenciaturas nas universidades não refletem as histórias e contribuições ameríndias na construção do país. Propõem, então, a participação efetiva das comunidades indígenas nos centros de ensino. Sugerem que as academias se abram para aprender outras epistemologias com as comunidades, construindo espaços que realmente funcionem a partir delas próprias, valorizando assim os conhecimentos indígenas.

Com o artigo Corpo político e crítica decolonial: a 1ª Marcha das Mulheres Indígenas, a autora traz ao cenário a análise da 1ª Marcha das Mulheres indígenas, ocorrida em agosto de 2019, na cidade de Brasília/DF. O tema é analisado a partir da crítica decolonial à violência de gênero e étnica que as mulheres indígenas experienciam. Faz apontamentos sobre as imagens e os discursos construídos por mídias tradicionais e alternativas, bem como entrevistas realizadas por mulheres indígenas que participaram desse movimento. Por fim, o último artigo, Resurgence: caminhos para descolonização no pensamento de Taiaiake Alfred, traz a contribuição do pensamento indígena através do conceito de Resurgence, elaborado por Taiaiake Alfred, um dos mais importantes pensadores indígenas do Canadá. Para o autor, a definição de Alfred sobre Resurgence é uma estratégia de rompimento com as relações coloniais de poder que incidem sobre a capacidade dos Povos Indígenas viverem e se desenvolverem de acordo com os seus próprios sistemas de pensamento.


Organizadores

Clovis Antonio Brighenti – Universidade Federal da Integração Latino-Americana – UNILA.

Rosane Freire Lacerda – Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.

Saulo Ferreira Feitosa – Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.


Referências desta apresentação

BRIGHENTI, Clovis Antonio; LACERDA, Rosane Freire; FEITOSA, Saulo Ferreira. Apresentação. PerCursos. Florianópolis, v. 22, n. 48, p. 04 – 09, jan./abr. 2021. Acessar publicação original [DR]

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Patrimônio e Resiliência: perspectivas frente às mudanças climáticas | PerCursos | 2021

Patrimônio e Resiliência: perspectivas frente às mudanças climáticas | PerCursos | 2021, CAMPOS Luana Cristina da Silva (Org d), CARVALHO Aline Vieira de (Org d), Percursos (Prd), Patrimônio, Resiliência, Mudanças Climáticas

Em 06 de Agosto de 2021, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) finalizou a primeira parte do Sexto Relatório de Avaliação (AR) sobre as Mudanças Climáticas na contemporaneidade e as perspectivas de nosso futuro. Chamado de “A base das ciências Físicas”, o relatório teve baixa visibilidade midiática no Brasil, mas entre alguns setores sociais tem despertado discussões motivadas pelas conclusões e prognósticos aterradores. O relatório aponta que a emergência climática é um “fato”, ou seja, que é um ponto de convergência entre pesquisas e pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento e vindos de variadas instituições e nacionalidades. Esse “fato” atesta que estamos muito próximos de um ponto sem retorno – tipping points – no que diz respeito aos danos causados pelas mudanças climáticas sobre a vida e os complexos (e delicados) sistemas que a envolvem no planeta Terra. Em outras palavras, não há retorno dos severos e permanentes danos ao clima do planeta com efeitos em todos os aspectos da vida na terra, incluindo os elementos socioculturais.

Diante desse cenário, o Comitê de Mudanças Climáticas e Patrimônio do ICOMOSBR, juntamente com a Revista PerCursos, em seu 22º volume, apresenta o dossiê “Patrimônio e Resiliência: perspectivas frente às mudanças climáticas” como forma de colaborar no debate sobre o estado da arte, os efeitos, as causas, as consequências e as possibilidades da preservação do patrimônio cultural, das diversas categorias, frente às mudanças climáticas.

O primeiro artigo do Dossiê nos aponta a dimensão da temática ao abordar “algumas questões teóricas relacionadas às políticas de patrimônio em tempos de emergência climática e à pluralidade de significados e valores que perpassam essas políticas” (LOWANDE; CORRÊA, 2021). Apresentado pelo Dr. Walter Francisco Figueiredo Lowande e pela graduada Jaíne Diniz Corrêa, ambos da UNIFAL-MG, o artigo traz o tombamento da Ponte das Amoras, que liga os municípios de Alfenas e Campos Gerais sobre o trecho alagado do rio Sapucaí, pela Usina Hidrelétrica de Furnas.

A Dra. Natália Biscaglia Pereira (UFFS) e os acadêmicos Pâmela Pasini (UFFS) e Eduardo Müller Bittencourt (UDESC) apresentam uma visão ampla do tema com o artigo “Impacto das mudanças climáticas no contexto do patrimônio cultural de cidades europeias e brasileiras: breve panorama de estudos sobre o tema entre 2000 e 2020” com especial foco para a conservação e restauro, objetivando

uma revisão narrativa da literatura de artigos científicos e bibliografia de referência sobre o tema do impacto das mudanças climáticas no âmbito patrimonial, comparando criticamente o caso brasileiro com o contexto internacional, sobretudo europeu. (PEREIRA et al., 2021)

A preocupação com a acessibilidade é o foco do artigo “Comunicação visual acessível das mudanças climáticas e seus impactos sobre o patrimônio cultural arqueológico”, que visou “mapear como a estratégia proposta pelo Programa Climate Visuals, desenvolvido e elaborado pela Climate Research, pode ser adaptada ao contexto brasileiro, promovendo o acesso ao seu conteúdo também a pessoas com deficiência visual” (TIZUKA; RIBEIRO, 2021). Segundo as autoras, a Doutoranda Michelle Mayumi Tizuka e a Msc. Aline dos Santos Ribeiro,

essa é uma primeira abordagem para nortear os próximos passos de construção de um material digital que realize uma comunicação visual não apenas atraente, mas também acessível, das mudanças climáticas e seus impactos sobre o Patrimônio Cultural Arqueológico. (TIZUKA; RIBEIRO, 2021)

O cenário sobre o patrimônio mundial diante dos efeitos das mudanças climáticas foi tratado pela Dra. Sílvia Helena Zanirato (USP) no seu artigo “O patrimônio mundial em território brasileiro: vulnerabilidades à conservação em um cenário de mudanças climáticas”. O artigo buscou

considerar os riscos colocados ao patrimônio mundial em solo brasileiro decorrentes da variabilidade climática. Com esse propósito foram referidos os efeitos esperados pelas variabilidades climáticas nos diferentes biomas que ocorrem no país e as vulnerabilidades que já se colocam aos bens culturais e naturais no país. As vulnerabilidades atuais tendem a se agravar considerando os cenários futuros, o que leva a pensar nos desafios de controlar essas vulnerabilidades que envolvem não apenas fatores climáticos, como decisões de ordem social, técnica e política a serem enfrentadas. No contexto de mudanças climáticas cada vez mais acentuadas, há a necessidade urgente de identificar estratégias de adaptação bem-sucedidas. A urgência do apelo à ação não é um exagero. (ZANIRATO, 2021)

O patrimônio urbano é objeto do artigo “Urbanismo regenerativo e patrimônio: caminhos para uma abordagem da resiliência urbana sensível ao lugar”, através do aprofundamento do conceito de urbanismos regenerativo, apresentado pela Dra. Carina Folena Cardoso Paes (UFG) como “fundamentos para a construção de um processo reflexivo na tomada de decisão em ações de renovação urbana com objetivos de resiliência aos impactos promovidos pelas mudanças climáticas” (PAES, 2021). O artigo é proposto como um exercício de reflexão que se relaciona com questão de identidade, preexistência, paisagem, entre outras.

A contribuição internacional do dossiê fica a cargo do artigo “La necesidad de resiliencia en las ciudades frente el reto del cambio climático”, da Doutoranda Isabela Beatriz Rufato Machado, da Universidade de Salamanca – Espanha, que trata a questão do urbanismo resiliente como relevante quando dos riscos de desastres como parte dos desafios das mudanças climáticas. Sendo parte de uma perspectiva normativa, o artigo debate como

a resiliencia urbana se establece como una solución parcial frente al riesgo de desastre, proponiendo también una mayor concientización sobre las potenciales consecuencia derivadas del cambio climático, exponiendo datos preocupantes de los índices de cambios globales en la temperatura, aumento del nivel del mar, deshielo, etc. (MACHADO, 2021)

A perspectiva rupestre é apresentada pelo artigo “As representações faunísticas na arte rupestre do Parque Nacional da Serra da Capivara como indicadores de mudanças climáticas e resiliência”, submetido pelas Dras. Luana Campos (UEG) e Cristiane de Andrade Buco (IPHAN), no qual é proposta “uma metodologia de abordagem dupla, pautada na análise por fragmentação e por intersecção, como forma de compreender a complexidade das relações clima/patrimônio na região do Parque Nacional Serra da Capivara” (CAMPOS; BUCO, 2021), com especial foco nas informações possíveis de serem aferidas através de sítios rupestres do parque.

Por outra perspectiva, a relação entre as mudanças climáticas, o patrimônio alimentar e a agrobiodiversidade é tratada no artigo apresentado pelas Dras. Cristina Fachini e Aline Viera de Carvalho, ambas da UNICAMP e pelo Dr. Rafael Moreno Rojas, da Universidade de Andalucía – Espanha. Com o título “Mudanças climáticas, patrimônio alimentar e agrobiodiversidade: aprendizados para resiliência”, o artigo visa “apresentar como a cultura alimentar de diferentes grupos sociais aporta aprendizados para resiliência em relação às mudanças climáticas” (FACHINI et al., 2021), fazendo um estado da arte da questão como forma de abordar os processos de adaptações diante das mudanças climáticas.

Ocupando-se das relações entre cultura e meio ambiente, o artigo “Cultura, natureza, materialidade e imaterialidade: inter-relações nas políticas patrimoniais”, de autoria da Msc. Monica Marlise Wiggers, não trata especificamente das mudanças climáticas, mas busca “como instigar os gestores públicos e pesquisadores a incorporarem as condições sociais e ambientais nas discussões” (WIGGERS, 2021) sobre os instrumentos legais, em meio a um cenário em que

Observa-se, atualmente, uma intensa transformação de todas as ordens e escalas nas mais diversas paisagens: áreas de florestas são convertidas em campos, áreas de campos nativos em florestas plantadas, e ambos dão lugares a cidades, as quais também se transformam de maneira extremamente dinâmica. Estas alterações são drásticas, exigindo que os instrumentos voltados à proteção do Patrimônio Cultural se adaptem a esse cenário. (WIGGERS, 2021)

Por fim, cabe salientar que os impactos causados pelos efeitos das mudanças climáticas sobre o patrimônio cultural estabelecem uma estreita relação com o conceito de resiliência, em seus diferentes sentidos, pois resiliência enquanto verbo de resistência frente às mais distintas ameaças, pode caracterizar tanto os resultados do patrimônio enquanto produto de diferentes alternâncias climáticas/ambientais ao longo do tempo, quanto a sobrevivência desse aos efeitos danosos dos eventos extremos, característico desses períodos de mudanças no regimento atmosférico. Por outra perspectiva, o patrimônio, como materialização de memórias construídas, atua com estoicismo para o grupo representado por ele. O tema é urgente e sua discussão traz a lucidez científica necessária para pensarmos em nossas escolhas e nossa construção de um presente e um futuro possível.

Boa Leitura,


Organizadores

Luana Cristina da Silva Campos – Comitê sobre Mudanças Climáticas do ICOMOS-BR http://orcid.org/0000-0001-5985-1756

Aline Vieira de Carvalho – Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP https://orcid.org/0000-0001-7380-5940


Referências desta apresentação

CAMPOS, Luana Cristina da Silva; CARVALHO, Aline Vieira de. Apresentação. PerCursos. Florianópolis, v. 22, n. 49, p. 05 – 09, maio/ago. 2021. Acessar publicação original [DR]

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