Memória e História da Mídia/Estudos Históricos/2023
Waly Salomão dizia que “a memória é uma ilha de edição”. Essa frase apresenta a principal característica da memória, que é o fato de ser seletiva. Selecionar, nesse sentido, significa evidenciar determinado fato ou evento em detrimento de outros, pois, obviamente não lembramos de tudo, mas também não esquecemos de nada. E as escolhas do que queremos lembrar ou esquecer derivam do contexto e dos eventos engendrados nos processos históricos. Como em qualquer estudo nas Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, a construção das narrativas sobre as mídias também se baseia no preceito fundamental de que a memória se alimenta e é alimentada pelos processos históricos. Nesse sentido é lícito afirmar que a memória das mídias será sempre um recorte de uma determinada realidade, em um determinado tempo e espaço. Os estudos e análises apresentadas neste dossiê mostram que o tema da memória está em consonância com as discussões da atualidade na comunicação contemporânea e que urge cada vez mais estudarmos esse fenômeno.
Recebemos, ao longo do processo de avaliação, 36 artigos sobre o tema história, memória e mídia. O volume e a qualidade dos trabalhos demonstram que a temática, com a possibilidade de reflexões inovadoras e transdisciplinares, tem sido estudada com mais frequência nas Universidades e Centros de Pesquisa, o que justifica plenamente a ampla divulgação dos resultados das investigações e o fortalecimento dos diálogos entre essas áreas do conhecimento. O nosso maior desafio foi a escolha dos artigos que iríamos selecionar, para que o dossiê pudesse abranger uma maior diversidade de temas e de mídias, temporalidades e espacialidades, e evidenciassem a produção acadêmica de instituições diversas, públicas e privadas, das várias regiões do Brasil. O resultado nos pareceu muito satisfatório e revela a potência de autoras e autores, capazes de fazer reflexões criativas, inovadoras e instigantes sobre história, memória e mídia.
O primeiro artigo do dossiê “We the Narodniks: Russian populism, political propaganda, and the press in the 19th Century” aborda a propaganda russa na imprensa do século XIX. Rafiza Luziane Varao Ribeiro Carvalho trabalha a partir de perspectiva histórica, teórica e não empírica para traçar o surgimento e delimitar as características do movimento Narodnik, buscando compreender como foram por ele utilizadas a propaganda e a imprensa, a partir de um personagem, Alexander Herzen, apontado pelos historiadores como o pai do populismo russo. A autora acredita que o uso que o movimento oitocentista faz da imprensa e da propaganda ajuda-nos a interpretar o populismo do século XXI.
“Memórias improváveis ou impossíveis? Restos de vida em diálogos comunicacionais” investiga os jornais do século XIX e revela como a mídia impressa foi instrumento indispensável para narrar o inenarrável, e, assim, reinscrever os anônimos e inomináveis, neste caso, os escravos encarcerados, na memória e na história. A autora, Marialva Barbosa, reflete que “o comunicacional, ao se constituir como fluxo possível do memorável, se apresenta como possibilidade de produzir outros sentidos para o passado”. As fontes documentais entrecruzadas à imaginação do passado possibilitam a experiência do “poderia ter sido”.
“Para se ver na vitrine: o uso da história oral e as arqueologias das mídias nas pesquisas sobre o cinema pioneiro”, de Marilice Amábile Pedrolo Daronco e Cássio Tomaim, combina metodologias multidisciplinares para investigar o “Cinema de Vitrine”, exibições feitas nos anos de 1930, no interior do Rio Grande do Sul, pelo fotógrafo ucraniano Sioma Breitman (1930-1980), na vitrine de seu estúdio fotográfico, a Casa Aurora. Ao construir uma narrativa sobre uma mídia até então desconhecida, deslocando o olhar para longe dos grandes centros, o artigo contribui para uma reescrita da história do cinema no Brasil, revelando um novo modo de exibição, no início do século XX.
As trajetórias dos jornalistas-escritores Nelson Rodrigues, Carlos Heitor Cony, Antonio Callado, Clarice Lispector, Fernando Sabino e Otto Lara Resende são analisadas no artigo “Jornalismo e literatura remodelados: estudo de um grupo de intelectuais das camadas médias (1940-1960)”, de Jefferson José Queler. Oriundos dos setores médios, estes intelectuais se lançaram na profissão de escritor, entre as décadas de 1940 e 1960. A questão colocada pelo autor é de que é possível que a produção ficcional deles esteja relacionada a estratégias de seu grupo social, compostas por relações tanto modernas quanto tradicionais, para evitar rebaixamentos sociais e impulsionar sua ascensão no âmbito do jornalismo e das letras em geral.
“‘Só a cirurgia plástica pode ‘consertar’ o seu nariz’: racismo e eugenia na coluna Elegância e Beleza de O Cruzeiro na década de 1940”, de Júlio César Chances e Igor Sacramento, produz o que os autores denominam de uma arqueologia do fenômeno das cirurgias plásticas a partir das recomendações de beleza da revista O Cruzeiro, publicação que era o carro-chefe dos Diários Associados, na década de 1940. No material analisado, identifica-se a existência do discurso de aprimoramento racial defendido pelo movimento eugenista brasileiro. Os autores analisam as formas de propagação da ideologia de dominação racial branca nos enunciados de beleza, destacando o caráter sutil das propostas de ocultamento das fisionomias negras e indígenas no início do século XX.
O Brasil dos emblemáticos anos 1960 volta à tela com a polêmica sobre o uso da cor. É esta a questão debatida por André Esteves no artigo “O processo da cor no cinema brasileiro moderno: aspectos técnicos e estéticos”. Com rigor, e um texto recheado de informações curiosas, Leonardo Esteves vai mostrar os bastidores da produção cinematográfica da época em que cinemanovistas e diretores alinhados a uma arte mais próxima ao tropicalismo debatiam os sentidos do uso da cor. Embate menos espetacularizado do que a batalha entre os que iam às ruas para combater as guitarras elétricas, este artigo revela as disputas técnicas e estéticas no audiovisual, e traz uma reflexão inovadora sobre a historiografia do cinema brasileiro.
O artigo “Trilogia de terror (1968): folk horror na transição do rural ao urbano no cinema brasileiro” de Laura Cánepa e Fábio Raddi Uchôa discorre sobre a narrativa do cinema de terror para falar sobre o processo de transição entre o passado rural e a realidade urbana no Brasil, a partir da década de 1960. O artigo sobre o filme, que reuniu três dos mais destacados diretores paulistas na época, José Mojica Marins, Ozualdo Candeias e Luís Sérgio Person, destaca como a película é original ao funcionar como alegoria do país que, sob a batuta da ditadura civil-militar, queria se reconhecer moderno.
Eduardo Amando de Barros Filho discutirá as políticas de comunicação durante a ditadura militar, ao refletir sobre a expansão da TV comercial, em um ambiente onde o nacionalismo tenderia a privilegiar o modo de negócio público. “‘Se não nos unirmos a televisão estará estatizada’: empresários das comunicações e ditadura militar no Brasil” é o título do artigo, que tem como objetivo esclarecer a reação dos empresários televisivos diante das pressões para que a televisão se adequasse aos objetivos do regime militar. O autor utiliza-se de material dos periódicos de grande circulação no período, confrontados com os estudos históricos sobre televisão e ditadura militar.
O artigo de Mario Abel Bressan Júnior, Leonardo Alexsander Lessa e Valdemir Soares dos Santos Neto, “Pensar a memória televisiva e o laço social na era do streaming: um olhar para a plataforma Globoplay”, oferece uma nova mirada sobre o laço social construído entre a televisão, mídia ainda hegemônica no Brasil, e os telespectadores, que hoje assistem à TV em múltiplas telas e de forma muito mais livre, porque não são mais escravos da grade de programação. No recorte do tema, que é objeto deste artigo, os autores se debruçam sobre a questão da memória e da nostalgia, pensando sobre a afetividade que fideliza a audiência, quando o assunto é a teledramaturgia.
“Memórias sensíveis da guerra e a percepção da História em narrativas de jogos de videogames”, de Christiano Brito Monteiro dos Santos, Rafael Zamorano Bezerra e George Leonardo Seabra Coelho, coloca em debate as narrativas contemporâneas que revigoram a maneira de se pesquisar e ensinar História. O artigo analisa a apropriação de fatos históricos pelos indie games, como “This War of Mine”, baseado na Guerra da Bósnia (1992-1996), e “The Valiant Hearts”, sobre a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Os autores defendem que: “Esses games rompem com o mainstream que aborda o tema da guerra pelo viés monumental e laudatório”. Assim, essas narrativas possibilitam o foco na vivência civil, nas miudezas do quotidiano, em pontos de vista antes desprezados, ou pouco contemplados nas mídias hegemônicas.
A memória é um tema interdisciplinar e, desde os anos 2000, tem aumentado a produção de estudos sobre este assunto nos mais variados campos de conhecimento. Destacamos também o aumento de estudos sobre a história da mídia no Brasil, tanto nas pós-graduações em Comunicação como nas pós-graduações em História. Conhecer as histórias da mídia impressa, radiofônica, audiovisual e digital é fundamental para entendermos os processos históricos contemporâneos. A produção desse tipo de pesquisa hoje demonstra a importância desse debate no campo das Humanidades e das Ciências Sociais Aplicadas. Nesse sentido, este dossiê se interessa particularmente pelos estudos que discutem o papel das mídias no processo histórico brasileiro contemporâneo.
Organizadores
Christina Ferraz Musse – Universidade Federal de Juiz de Fora – Juiz de Fora (MG), Brasil. Graduada em Comunicação Social pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro; mestre e doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); pós-doutora em Estudos das Práticas e Culturas da Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS); e presidenta da Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia (Alcar). E-mail: cferrazmusse@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-1172-5993
Rosali Henriques – Museu da Pessoa – São Paulo (SP), Brasil. Licenciada e bacharel em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF); mestre em Museologia pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias; doutora em Memória Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); pós-doutora em História pela Universidade de Coimbra; e doutoranda em História pela Universidade Nova de Lisboa, em regime de cotutela com a UFJF. E-mail: rosalih@gmail.com https://orcid.org/0000-0003-1688-0447
Referências desta apresentação
MUSSE, Christina Ferraz; HENRIQUES, Rosali. História e Memória da mídia na pesquisa contemporânea brasileira. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 36, n. 78, p. 1-5, jan./abr. 2023. Acessar publicação original [DR/JF]