Os estudos e a reflexão sobre a memória social e as relações entre História e Memória constituem área relativamente recente dos estudos históricos. Como propõe Josephina Cuesta, em um balanço sobre a questão, diferentemente de outros cientistas sociais, que, desde o início do século XX, incorporaram os temas da memória ao seu repertório de discussões, seria somente a partir da década de 1960 que os historiadores passam a abordar de forma mais sistemática as questões políticas, teóricas e metodológicas postas nesse campo.
Não obstante, nas últimas três décadas, e em grande parte acompanhando as demandas sociais, a memória emerge como um campo profícuo da reflexão histórica, e a área registra uma notável expansão de estudos internacionais e também nacionais sobre as relações entre Memória e História. Indagações sobre a matéria própria da memória social, seus modos de produção e transmissão, as questões da lembrança e do esquecimento, a natureza dos testemunhos, a memória como campo de disputas e o papel da memória nas disputas sociais informam o estudos de diferentes temáticas. Pesquisas sobre a construção e a institucionalização de identidades nacionais e comunitárias, o papel das comemorações e da invenção de tradições, o papel dos símbolos e lugares de memória em diferentes situações e contextos, bem como sobre os processos de institucionalização de memórias e lutas sociais articulam-se à reflexão de campos diversos, tais como os da História Social e Cultural, da nova História Política, da História Pública e da chamada História do Presente. A expansão das fontes estudadas, festas, símbolos diversos, monumentos, calendários, artes gráficas e visuais, fotografia, pintura, publicidade e, principalmente as fontes orais, faz emergir uma pluralidade de sujeitos, questões e temas.
Para o que aqui nos interessa, vale também notar que a emergência de preocupações culturais e políticas voltadas para a discussão de memórias relativas ao passado recente é um fenômeno que ganha força na contemporaneidade em alguns países da Europa, sobretudo após a queda do Muro de Berlim, bem como em vários países da América Latina, após a experiência de ditaduras recentes.
De acordo com essas informações da Anistia Internacional, desde os anos de 1970, mais de 40 comissões da verdade ou similares foram estabelecidas ao redor do mundo, a maioria delas nos últimos 20 anos. A grande parte dessas comissões, propostas sob a visão da justiça de transição e visando à luta contra a impunidade e ao estabelecimento de procedimentos de reparação a vítimas de processos de violência institucional, propugnou pelo estabelecimento de mecanismos nacionais efetivos para a documentação da verdade sobre o arbítrio e os crimes perpetrados, propondo também a socialização do conhecimento sobre razões e circunstâncias que levaram às violações de direitos humanos nas situações sob investigação.
É significativo assinalar que, com essas comissões, muitos desses países assumiram como tarefa e dever de Estado a recuperação, a preservação e a publicização da documentação sobre os períodos de violência institucionalizada. Nesses anos, particularmente na América Latina, identificaram-se movimentos de grande vitalidade na área, os quais se articularam a importantes lutas políticas contra o arbítrio e a impunidade, bem como àquelas pelo direito à verdade e à memória. Em vários desses países, as lutas tiveram / têm como dimensão importante a organização de suportes de memória da repressão e da resistência produzidos nos períodos ditatoriais, dando origem ao desenvolvimento de inúmeros projetos e à organização de instituições diversas voltadas para a ação, a pesquisa e a reflexão sobre a história desses períodos.
No Brasil, passados mais de 50 anos do Golpe de 1964, a discussão pública sobre os anos da ditadura brasileira e da transição ainda é profundamente marcada pela herança autoritária imposta pelo pacto conservador da abertura, que propõe o perdão institucional aos responsáveis pelo terror de Estado e que se manifesta na prática cotidiana e contínua da violação de direitos humanos de nossa sociedade. Apesar disso, há de se reconhecer que, no decorrer da última década, principalmente a parir da aprovação do PNDH-III, em 2009, e da Lei Geral de Acesso à Informação e da Comissão Nacional da Verdade, em 2011, as questões propostas pelas articulações entre memórias da ditadura, história e cidadania ganharam força crescente no debate público em diferentes espaços da sociedade brasileira.
Desde então, assim como os demais espaços sociais, as universidades e a produção acadêmica têm sido insistentemente confrontadas e interpeladas por diferentes agentes sociais, e têm respondido a essas demandas. Nos últimos anos, nas diversas áreas das Ciências Humanas, a produção acadêmica sobre o período da ditadura cresceu vigorosamente em quantidade e qualidade. Particularmente no campo das relações entre Historia e Memória, há de se indicar que a historiografia sobre o período tem avançado significativamente, assumindo a pesquisa e a reflexão sobre uma grande diversidade de temas, questões, espaços, práticas e vozes antes inaudíveis ou invisibilizadas, e que nos aproximam muito mais de uma História Social e Política sobre o período e de suas repercussões na vida contemporânea. Há ainda que destacar a criação em várias universidades do país de Comissões da Verdade universitárias assim como o envolvimento de muitos professores nos trabalhos de pesquisa das várias comissões estaduais e na comissão nacional. Também a PUC-SP criou sua Comissão da Verdade que durante os últimos dois anos atuou articulada à outras comissões e buscou contribuir para a pesquisa e a reflexão histórica sobre aqueles anos de exceção. Este número da Projeto História articula-se tanto à discussões recentes propostas pelo Departamento de História como aos trabalhos da Comissão da Verdade da universidade.
Buscando contribuir para esse debate, este número da revista Projeto História aborda as relações entre Memória, Ditaduras e Direitos. A proposta é a que a divulgação de pesquisas e reflexões em circuitos mais amplos nos ajude a aproximar o trabalho de historiadores da importante agenda pública trazida pelas lutas em favor do direito à memória, à verdade e à justiça em nosso país. Busca também salientar a importância da reflexão histórica em um terreno no qual sentidos e significados encontram-se ativamente em disputa na sociedade brasileira na atualidade.
A revista traz a contribuição de historiadores e outros cientistas sociais que exploram diferentes ângulos da questão em relação à ditadura no Brasil e também em outros países da América do Sul e da Europa.
Os artigos de Ana Maria Sosa González e Enrique Padrós remetem às discussões sobre as ditaduras nos países do Cone Sul. O estudo de González nos propõe uma avaliação comparativa das políticas de memória implementadas recentemente no Uruguai e no Brasil, apontando seus caminhos e estratégias, bem como suas relações com políticas de afirmação dos direitos humanos nesses países. Ao discutir a atuação de historiadores e outros cientistas sociais nesse processo, aponta desafios atuais enfrentados nessa aproximação entre a academia e esses processos políticos. O artigo de Padrós, por sua vez, com base em pesquisa detalhada na documentação e em entrevistas de militantes do CLAMOR – Comitê pelos Direitos Humanos no Cone Sul, grupo que atuou com sede em São Paulo entre os anos de 1978 e 1991, aborda as situações de violação de direitos e violências perpetradas pelas ditaduras recentes em diversos países da América do Sul no contexto da atuação no Comitê e suas ações de denúncia do arbítrio e de auxílio e solidariedade aos perseguidos políticos nesses regimes no Cone Sul. O texto examina as lutas de resistência empreendidas pelo CLAMOR e pela rede de solidariedade constituída por entidades de defesa dos direitos humanos à qual o Comitê se articulava, como também aponta a dramática situação dos exilados e perseguidos políticos na região naquele período. Aqui, vale lembrar, que este precioso acervo do CLAMOR, nominado Memória do Mundo pela UNESCO , encontra-se aberto à consulta pública no CEDIC – Centro de Documentação da PUC-SP – e por sua importância para o período sugere inúmeras outras abordagens sobre as ditaduras no Cone Sul.
Como indicado anteriormente, a atuação da Comissão Nacional da Verdade no Brasil, entre 2012 e 2014, constitui marco importante no desenvolvimento das lutas pelo direito à memória, à verdade e à justiça no país, e seu encerramento recente coloca inúmeras questões sobre os desdobramentos desse processo na conjuntura em que vivemos. Procurador atuante na área e estudioso dos direitos humanos, Marlon Weichert apresenta, em seu artigo, um minucioso resumo do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade tornado público em dezembro de 2014. Além de descrever de forma densa e sintética os principais conteúdos, conclusões e recomendações do relatório, realiza um balanço sobre as dificuldades enfrentadas pela Comissão. O artigo também propõe uma avaliação fundamental e instigante sobre as expectativas e os desafios que a CNV não conseguiu atender, e examina as contribuições que seu relatório trouxe para o processo de justiça de transição brasileiro.
Dada a sua importância na configuração das relações de poder em nosso país, a presença e a atuação dos meios de comunicação nos processos de disputa em torno das memórias sobre a ditadura, bem como nos processos da transição, têm mobilizado fortemente a reflexão sobre os processos de constituição e a instituição de memórias sobre o período. Nesse campo, destacam-se, particularmente, as análises da imprensa como força social que atua na produção de hegemonia, articula uma compreensão da temporalidade, propõe marcos e diagnósticos do presente e que, a todo o tempo, propõe a afirmação de sentidos selecionados e a ocultação de outros. Dentro dessa perspectiva, a atuação da imprensa e os seus impactos nos processos de afirmação e transmissão de memórias da ditadura civil-militar no Brasil, a sua atuação como espaço de legitimação ou oposição aos regimes, são aqui tratadas sob diferentes ângulos e veículos.
O texto de Carla Luciana da Silva, com base na análise da revista VEJA em 1969 / 70 e 2014, problematizando a relação entre a imprensa, a memória histórica, as práticas discursivas e a produção da hegemonia, analisa como a revista atua na conformação e atualização de consensos sobre a repressão, a violência e a presença de opositores do regime, dos trabalhadores e dos movimentos sociais na cena política do país.
Percorrendo uma trajetória similar, a discussão proposta pelo artigo de Luiz Antonio Dias e Rafael Lopes Sousa, que destaca a pesquisa realizada nos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, tem como eixo central o Golpe de 1964. Analisando a recepção pelos dois jornais ao golpe civil militar de 1964, em momentos de sua efetivação, e depois em tempos de sua “comemoração” ou “rememoração”, nas efemérides de 2014, desenvolve argumentos sobre a reescrita do passado por aqueles jornais e desvenda seus argumentos e caminhos de justificação e legitimação daqueles eventos no presente.
Por outro lado, o artigo de Maria Izilda Santos Matos, tematizando a questão do exílio político e as ações de oposição ao regime salazarista no Brasil, problematiza como a imprensa pode se constituir em espaço de articulação e manifestação de propostas críticas e dissidentes. Em meio ao estudo da presença portuguesa em São Paulo (1920 / 70), destaca as experiências de um grupo de portugueses que, no exílio, levou à frente ações de oposição ao regime salazarista tendo como canal de expressão política o jornal Portugal Democrático.
Encerrando a seção de artigos, o texto de Marijane Lisboa, ao discutir pesquisas recentes sobre aspectos até hoje negligenciados da memória coletiva do genocídio nazista e os percursos da memória coletiva a seu respeito em situações específicas, nos situa na memória como campo de disputa móvel, que implica recordação, esquecimento e manipulação em momentos e situações históricas diversas. Destacando os desafios de se lidar com memórias sensíveis e traumáticas, propõe a reflexão crítica sobre os usos e os abusos da memória, bem como sobre a promoção de políticas de memória que sirvam à construção de sociedades democráticas.
Finalmente, na composição deste número da revista, cumpre salientar as contribuições trazidas por pesquisas em andamento sobre o período. Também abordando as relações entre imprensa e memória, tendo como material de pesquisa o jornal argentino Clarín, a pesquisadora Micaela Iturralde analisa a posição editorial e as estratégias discursivas desse periódico frente às violações dos direitos humanos, e indaga sobre tratamento dado pelo jornal às questões da violência política e aos “desaparecidos” durante a ditadura militar na Argentina (1975-1983).
Problematizando as políticas de segurança e as ações dos agentes do Estado, a questão da violência institucional e da violação dos direitos humanos também é discutida por Tiago Santos Salgado, em sua pesquisa sobre a Venezuela em períodos mais recentes.
Ao final, o texto de Viviane Tessitore relata a pesquisa sobre a história do projeto Brasil: nunca mais, que mapeou a repressão política durante a ditadura militar no Brasil, a partir dos processos contra presos políticos no início da década de 1980, e que se desenvolve no interior do projeto Brasil: Nunca Mais Digital, o qual, trazido a público recentemente, viabilizou a consulta virtual àquele valioso acervo sobre a repressão durante a ditadura no Brasil.
Heloisa de Faria Cruz
CRUZ, Heloisa de Faria. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 50, 2014. Acessar publicação original [DR]
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