Memória, Desigualdade e Políticas Culturais / Outros Tempos / 2018
A Sérgio Figueiredo Ferretti – In Memoriam
O presente número da Revista Outros Tempos inclui o dossiê temático Memória, Desigualdade e Políticas Culturais e se relaciona à XVIII Fábrica de Ideias, ocorrida em São Luís entre 18 e 31 de março de 2017, coordenada pelos organizadores deste número e por Sérgio Figueiredo Ferretti, que falecera aos 23 de maio do corrente ano e a quem dedicamos este dossiê In Memoriam.
Com o tema Patrimônio, Desigualdade e Políticas Culturais, a XVIII Fábrica de Ideias conectou uma série de iniciativas, consistindo num seminário internacional de pesquisa e pós-graduação, apresentando-se tanto como uma disciplina acadêmica planejada e ministrada de forma interinstitucional com alto potencial de internacionalização quanto como um seminário avançado com momentos de abertura ao público. A XVIII Fábrica de Ideias resultara de parceria entre a Universidade Estadual do Maranhão, através do Programa de Pós-Graduação em História, a Universidade Federal do Maranhão, por meio dos Programas de Pós-Graduação em Políticas Públicas e em Ciências Sociais, e a Universidade Federal da Bahia, através do Centro de Estudos Afro-Orientais e do Programa de Pós Graduação em Estudos Étnicos e Africanos, e ainda o Governo do Estado do Maranhão, representado pela Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação, e pela Secretaria de Igualdade Racial.
Assim, a maior parte dos artigos aqui reunidos foi proposta por profissionais que participaram dessa Fábrica de Ideias, que envolveu pesquisadores, docentes e discentes de programas de pós-graduação de diferentes instituições do Brasil e do exterior em torno do tema do patrimônio e das políticas culturais em conexão com a questão da diversidade e da desigualdade. Assim, a Revista Outros Tempos e a Fábrica de Ideias apresentam este número cujo dossiê é iniciado por um estudo de Dmitri Van Den Bersselar, que analisa as relações entre cristianismo, cultura igbo tradicional e transformação cultural e identitária, a partir de interpretação baseada em entrevistas realizadas na Nigéria, jornais nigerianos locais, revistas missionárias e correspondência original dos missionários da Church Missionary Society (CMS). O autor aborda o impacto do cristianismo sobre o debate nigeriano acerca da identidade igbo. Para ele, a cultura igbo tradicional e não cristã foi definida por e em resposta aos debates da missão cristã sobre a conversão e o comportamento dos cristãos igbos. Além disso, a identidade igbo veio a coincidir com o cristianismo e isso resultou em uma apreciação renovada da religião “tradicional” local como herança e não como “paganismo”.
A luta de memória em Moçambique é a questão central de Livio Sansone, segundo o qual, os conflitos e as contradições na biografia de Eduardo Chivambo Mondlane (1924-1969) antecipam e dramatizam vários temas de debate de grande atualidade naquela que poderia ser chamada de luta pela e luta de memória em Moçambique, ou seja, a releitura, a partir de vários e conflitivos pontos de vista, da história recente e dos regimes de memória que se estabeleceram. Sansone observa que, em Moçambique, como em vários países africanos, estes regimes de memórias preveem a criação e manutenção do status de imortalidade para algumas figuras centrais na narrativa da nação. O autor enfrenta uma das questões centrais da reconstrução de biografias, aquela da agência: até que ponto a vida do indivíduo determina seu contexto ou é determinada pelo contexto? A relevância e a atualidade de um estudo sobre Eduardo Mondlane se observaria, segundo Livio Sansone, em pelo menos duas direções: de um lado, em Moçambique e nos outros países da África onde estão se dando estas lutas de memória; de outro lado, nas próprias ciências sociais, onde há um renovado interesse pela interação entre formação em ciências sociais, luta anticolonial e construção de uma moderna e nova liderança política, de caráter pós-populista, na África contemporânea.
Antonio Motta discute, a partir do campo do patrimônio e dos museus, o cenário contemporâneo dos direitos e das políticas culturais no Brasil e suas implicações na esfera pública. Para o antropólogo, no período de 2003 a 2016, os usos da cultura na esfera pública brasileira estiveram associados a processos de construção democrática. Nesse período, algumas ações culturais do Estado brasileiro podem ser tomadas como exemplos das transformações ocorridas em sua relação com a sociedade civil num contexto de criação ou ampliação de espaços de participação política e de redefinição do papel do Estado. O autor destaca que no âmbito das políticas culturais, o campo do patrimônio e dos museus também pode ser visto como agente de lutas sociais e políticas dos grupos étnicos, ao favorecer a sua mediação com a sociedade nacional e o Estado, servindo de canal institucional para o agenciamento de direitos e políticas na esfera pública. Antonio Motta destaca também que diferentes tipos de mobilizações políticas deram origem a criação de museus, como museus comunitários, museus territoriais, ecomuseus, museus indígenas, museus digitais, dentre outros, de modo que os museus já não podem e não devem mais falar em nome dos “outros”, nem tampouco representar esses “outros” sem consultar previamente o que “eles” pensam e como “eles” devem se ver, agir e se representarem, “eles” próprios, nos espaços museógrafos. O autor salienta ainda que embora os avanços no campo da cultura e de suas políticas sejam inegáveis, muitas das mudanças anunciadas e desejadas ainda não foram realizadas, restando ainda confinadas no campo semântico da boa retórica sobre a “cultura como recurso” ou “a cultura com direito”, apresentando-se como desafio a ser enfrentado por antropólogos, historiadores e demais profissionais uma maior participação e intervenção na esfera pública e em suas decisões políticas.
Objetivando refletir sobre memória, samba e políticas culturais a partir dos resultados obtidos com o projeto de pesquisa “Museu Afrodigital Rio: memória entre gerações nos quintais do samba da Grande Madureira” desenvolvido pelo Museu Afrodigital Rio (http: / / www.museuafrorio.uerj.br / ), no período de 2012-2016, Maria Alice Rezende Gonçalves e Maurício Barros de Castro observam que esse projeto de pesquisa dedicou-se a investigar os rituais e tradições que permeiam os festejos realizados nos quintais das casas das “tias” do samba, das mães de santo, dos jongueiros e das cozinheiras da culinária afrorreligiosa na Grande Madureira, região da cidade do Rio de Janeiro. Trata-se de uma região, destacam os autores, que concentra um grande número de manifestações e associações de matriz africana. Os autores concluem que o quintal é espaço de sociabilidade e local privilegiado de convívio e realização de práticas que vão do profano ao religioso, e que, de algum modo, ainda trazem memórias de gerações passadas.
As lutas de memória na África contemporânea também constitui o campo de análise de Antonio Evaldo Almeida Barros. O autor observa que John Langalibalele Mafukuzela Dube (1871-1946), fundador do Congresso Nacional Africano em 1912, tornarase uma figura central da história e memória sul-africana moderna. Suas realizações são bem conhecidas por aqueles que têm se interessado por sua vida e obra. Ao mesmo tempo, os modos como ele vêm sendo apropriado e visto do final do século XIX até os dias atuais têm relação direta com os projetos de nação e sociedade sul-africana dominantes. De um lado, há aqueles que tendem a identificar Dube como colaborador da implementação da segregação sul-africana. De outro lado, há aqueles que posicionam John Dube como personagem central das lutas históricas contra a segregação racial, inscrevendo-o, como ocorre paradigmaticamente nos dias atuais, como uma espécie de herói sul-africano – esta tendência pode ser observada em diferentes décadas e situações, como nas representações sobre Dube produzidas por sua família e grupo social nos anos 1970 no âmbito dos izibongos que lhe foram dedicados, e que são objeto central deste artigo. Conclui o autor que num jogo de lutas de memória, este padrão interpretativo tornar-se-ia claramente dominante na África do Sul pós-Apartheid, particularmente no contexto de invenção da África do Sul como Rainbown Nation.
Keith Barbosa e James Roberto Silva nos levam para o campo dos processos de reinvenção da história, da memória e do patrimônio no âmbito arquivístico, destacando que o retorno aos arquivos históricos torna-se uma tarefa fundamental para os pesquisadores que pretendem tornar visível a história das populações negras. Objetivando apresentar o tema da escravidão e suas potencialidades de pesquisa no quadro dos documentos históricos do judiciário amazonense, composto por milhares de processos judiciais, os autores observam que os registros históricos mapeados e reunidos no Arquivo do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas revelam uma complexa e multifacetada realidade cotidiana, envolvendo cativos em situações às vezes insuspeitadas. Ao cotejarem os registros da justiça contendo processos contra escravos, africanos livres e outros indivíduos, observam que esse material oferece indícios valiosos sobre as especificidades da escravidão no Amazonas. Os autores enfatizam ainda que as narrativas e memórias resgatadas podem instigar a recuperar a história de homens e mulheres que vivenciaram experiências complexas entre a escravidão e a liberdade. Argumentam ainda que, para além das histórias individuais ou coletivas que foram marcadas pela experiência do cativeiro, a sistematização / organização do acervo histórico do Tribunal de Justiça apresenta um desafio ainda mais complexo: romper os silêncios sobre a temática e impulsionar o desenvolvimento de novas pesquisas.
As conexões entre memórias, narrativas e cidades constituem o foco de Sandra de Cássia Araújo Pelegrini e João Paulo P. Rodrigues, que apresentam narrativas que trazem à tona heranças culturais dos habitantes e histórias que marcaram o desenvolvimento da cidade de Ivatuba, no Paraná. Segundo os autores, a análise e a coleta de depoimentos orais, a realização de entrevistas, a seleção de fotografias e de documentos textuais de diversas tipologias possibilitara esmiuçar histórias sobre o processo de emancipação política e de crescimento da cidade, sem negligenciar a apreensão das múltiplas facetas do viver humano em novas fronteiras.
Fladney Francisco da Silva Freire, por sua vez, tem como perspectiva lançar notas sobre o complexo contexto do Terecô no Maranhão, tratando de questões como território, identidade, processos históricos de cerceamento de práticas religiosas, conflitos, pensando diversas articulações no município de Bacabal, interior do Estado do Maranhão. O Terecô, afirma o autor, é uma das religiões afro-brasileiras do Maranhão, que se difundiu na região central, mas também nos estados do Pará e Piauí. O autor chama atenção para o fato de que, se, até os dias atuais, continua a haver uma espécie de expectativa de que o Terecô e outras religiões de origem africana ou indígena, tenham como característica visível a simplicidade, a casa de palha, o chão batido, as roupas simples, este cenário vem se transformando nos últimos anos, pois é possível observar um movimento intenso de inclusão de elementos do chamado mundo “moderno”, o que impacta a construção predial dos terreiros, suas formas de celebração, incluindo o vestuário, e suas formas de difusão, com a proliferação das mídias digitais. O autor conclui que os terreiros têm acompanhado as novas realidades do mundo social, o que os leva a serem protagonistas de suas histórias, memórias e narrativas local, nacional e globalmente definidas.
Chérif Keita integra este dossiê com um excelente estudo de caso. Keita reflete sobre a relevância de seu usar filmes no processo de reconstrução nacional da África do Sul pós-Apartheid. O autor argumenta que os filmes têm o potencial de reconectar a África do Sul atual aos seus primeiros heróis, atualmente esquecidos, que lutaram pela liberação, contra a segregação e o apartheid.
O entrevistado desta edição é o Prof. Dr. Sérgio Figueiredo Ferretti (1937-2018). Em 24 de março de 2018, dois meses antes de seu falecimento, Prof. Ferretti concedera a presente entrevista a Marilande Martins Abreu e Antonielton Vieira da Silva. Ferretti era graduado em História (UB-UFRJ / 1962) e Museologia (MHN / UNIRIO / 1962), especialista em Sociologia do Desenvolvimento (UCL Bélgica, 1964 / 66), mestre em Ciências Sociais / Antropologia (UFRN / 1983) e doutor em Antropologia Social (USP / 1991). Professor Emérito da Universidade Federal do Maranhão e Bolsista de Produtividade do CNPq, Sérgio Ferretti pesquisou religiões de matriz africana e manifestações da cultura popular e negra durante mais de 40 anos no Estado do Maranhão, e formou muitas gerações de pesquisadores dedicados ao estudo de expressões da cultura e da religião, e da luta por igualdade e inclusão social e cultural, sendo vasta sua produção acadêmica. Nesta entrevista, o Professor Ferretti fala sobre o campo dos estudos das práticas religiosas de matriz africana e cultura popular no Estado do Maranhão, o que coincide com sua própria vida, especialmente a partir dos anos 1960.
“As Tramas da Patrimonialização da Cultura” é o título da resenha de Wheriston Silva Neris sobre a obra “As Faces de John Dube: Memória, História e Nação na África do Sul” (2016), de autoria de Antonio Evaldo Almeida Barros. Wheriston Neris observa que a reconstituição progressiva das diferentes estratégias, tramas de competição política e batalhas pela memória da nação sul-africana contemporânea constituídas em torno do legado e da biografia de uma de suas figuras centrais, John Langalibalele Mafukuzela Dube (1871-1946), constituem o objeto principal da obra. O livro, destaca Wheriston Neris, constitui um convite etnográfico, interdisciplinar e bem documentado para acompanhar o autor na aventura da exploração das artimanhas da nação e da memória no contexto sul-africano, explorando o contínuo, complexo e multifacetado processo de reconstrução biográfica d’As Faces de John Dube. Conclui o resenhista que sem prender-se a uma visão puramente celebratória a respeito da construção da Rainbow Nation e mobilizando uma pluralidade de fontes com aportes teóricas, o livro consegue, antes de qualquer coisa, demonstrar as múltiplas tensões, simbólicas e sociais, por meio das quais a nação é fabricada e representada na contemporaneidade.
Este número da Revista Outros Tempos é completado ainda com dois textos na sessão de artigos livres. O primeiro é de autoria de Mariléia dos Santos Cruz, e enfoca o professor e jornalista negro José do Nascimento Moraes (1882-1958) que, segundo a autora, destacou-se escrevendo crônicas, contos e poesias nos principais jornais maranhenses da primeira metade do século XX. A autora argumenta que Nascimento Moraes era um defensor da promoção da escolarização para os pobres e constantemente debatia os problemas políticos, sociais e educacionais maranhenses, devendo ser caracterizado como um intelectual da educação, uma vez que na sua trajetória profissional deixou vasta contribuição sobre temáticas relativas ao campo.
No segundo artigo, Arkley Marques Bandeira apresenta uma síntese de parte dos resultados obtidos na sua tese de doutorado, que tratou dos processos pré-coloniais relacionados à ocupação humana na Ilha de São Luís, no Maranhão, em sua longa duração. A pesquisa centrou-se em métodos da arqueologia para investigar cinco sítios arqueológicos, os sambaquis do Bacanga, Panaquatira e Paço do Lumiar e os sítios cerâmicos Vinhais Velho e Maiobinha I. Os resultados da pesquisa permitiram reconhecer os processos de formação do registro arqueológico, a espacialidade dos sítios e o contexto deposicional dos antigos assentamentos de diversos povos que ocuparam a Ilha de São Luís, desde 6.600 anos atrás, estendendo-se até os primeiros séculos do Brasil colonial.
Desejamos a todos(as), excelente leitura!
Antonio Evaldo Almeida Barros
Livio Sansone
BARROS, Antonio Evaldo Almeida; SANSONE, Livio. Apresentação. Outros Tempos, Maranhão, v. 15, n. 25, 2018. Acessar publicação original [DR]