Não é tarefa simples explicar a escolha do título que nomeia este dossiê especial ao qual Ars dedica sua 35ª edição, tampouco dar conta da singularidade de que o termo membrana aí se reveste, uma vez que uma definição descontextualizada não atenderia às expectativas desta proposta. As duas principais referências que nos levaram a tal enunciado remontam aos anos 2000. A primeira é o livro The postdigital membrane – imagination, technology and desire1, de Robert Pepperel2 e Michael Punt. Para estes autores, membrana seria um conceito capaz de abranger tanto o estado contínuo da realidade – que não deveria ser sacrificado por conveniências conceituais – quanto as mudanças que vêm ocorrendo com a digitalização da informação. Adjetivaram ainda o conceito como membrana pós-digital, apesar de reconhecerem tratar-se de título polêmico, pois procuravam naquele momento reconhecer o estado da tecnologia e a necessidade de novos modelos conceituais que pudessem descrever/reconhecer as intersecções entre arte, computação, filosofia e ciência sem se deixar driblar por binarismos, determinismos ou reducionismos. A metáfora utilizada pelos autores refere-se a uma membrana biológica, que dá forma a fenômenos complexos, ao mesmo tempo que possibilita continuidade e trânsito entre eles. Seria algo como uma malha transparente capaz de conectar, dividir, separar e, ao mesmo tempo, integrar elementos3.
A segunda referência é o livro Information arts: intersections of art, science, and technology de Stephen Wilson4. Neste compêndio, o autor oferece uma pesquisa abrangente de artistas que trabalham nas fronteiras entre arte, investigação científica e tecnologias emergentes. Wilson, no prefácio de seu livro, relata que, em seu último ano na Antioch College (detalhe: cursava faculdade na área de Humanidades/ Ciências Sociais, em 1967, em Yellow Springs, Ohio, EUA), resolveu que, para fazer seu trabalho de conclusão, iria aprender como o rádio funcionava, mesmo não tendo nenhum conhecimento técnico prévio. Por fim, aprendeu algumas coisas que seriam até mais importantes:
That the mystification of science and technology was unjustified; that scientific principles were understandable, just like ideas in other fields; and that technological imagination and scientific inquiry were themselves a kind of poetry – a revolutionary weaving of ideas and a bold sculpture of matter to create new possibilities.5
Pensamos ainda hoje que ciência e tecnologia estão restritas a especialistas; entretanto, Wilson, já naquela época, demonstrou como todas as áreas fazem parte de um mesmo fluxo cultural, e que precisamos aprender a apreciar e produzir ciência e tecnologia da mesma forma que fazemos literatura, música e artes. Seguindo este princípio, Wilson – artista, pesquisador em arte e novas tecnologias e professor – apresenta, em seu livro, artistas que começaram a se envolver com o mundo da pesquisa científica e tecnológica – não apenas para usar seus aparelhos –, mas enquanto possibilidade poética e criativa.
Entretanto, estas são questões que nascem de preocupações muito anteriores – e isto é importante ressaltar, pois o conceito de membrana aqui utilizado se construiu no tempo. Não é intenção nos estendermos neste ponto, mas podemos citar “Grids”, de 1979 6, onde Rosalind Krauss7 reconheceu a grade8 como emblemática da própria modernidade. Há um poder místico na grade, salienta Krauss, que nos coloca na ambivalência entre a relação com a ciência e lógica por um lado, e a ilusão e ficção por outro9. E, apesar de explicitar uma organização espacial, lida também com questões temporais, acomoda contradições, pontos de vista paradoxais, alíneas que se opõem mutuamente e que se impõem de forma simultânea e com igual intensidade. Desta forma, a partir da grade, manifestam-se as relações entre arte e ciência, dinâmico e estático, simples e complexo, mantidas por algum tipo de suspensão lógica. É ainda repetição, padrão (pattern/default) e unidade significante. A grade remete às estruturas multivalentes, multidimensionais, com forças centrífugas e centrípetas, estendendo-se em todas as direções, ao infinito10. Neste sentido, a grade é separação e integração, é também fragmento, pedaço recortado de um tecido infinitamente maior, que expande sistemas sígnicos, ao mesmo tempo que organiza a realidade por meio de unidades discretas. Entendida como malha tridimensional, a grade é ainda modelo teórico. Já se começa a perceber, por meio de Krauss, um princípio ordenador capaz de dividir, ao mesmo tempo que integra espaços, ambientes e estruturas adjacentes, e que, em certo sentido, passa a delinear uma noção singular de interface.
No Brasil, Walter Zanini, historiador, crítico de arte e curador, foi reconhecido incentivador de experimentações artísticas com mídias e por meio da relação entre arte e tecnologia no âmbito da produção contemporânea. Na introdução do Catálogo geral da 17ª Bienal de São Paulo11, realizada em 1983, Zanini, curador geral, registra mudanças promovidas pela relação entre arte e tecnologias emergentes na época, apesar de ainda enfrentar certa resistência de críticos mais conservadores:
Na parte das linguagens emergidas dos novos media, que a própria crítica mais conservadora começa enfim a reconhecer, os esforços foram redobrados para que a exposição contivesse elementos de uma produção válida. Trata-se da saga de um mundo movido pelas correntes informacionais, da mais alta significação para os destinos da arte.12
Naquela Bienal, foram expostas obras em videoarte, videotexto que utilizavam satélite, TV a cabo, SSTV e computador. Sobre a arte em videotexto (com curadoria de Júlio Plaza), Zanini salientou a importância daquele sistema eletrônico pela sua capacidade de “interação entre emissor e receptor de mensagens”13. Finaliza dizendo que estes meios e os novos usos do computador “alargam ininterruptamente as conexões entre arte e tecnologia”14.
Em 1990, outra importante contribuição foi de Abraham Moles15 e Luc Janiszewski, com a publicação Grafismo funcional16. Os autores trazem um conjunto de técnicas que tem como finalidade transmitir dados, conhecimentos e informações através das novas tecnologias da informação. Ampliam a ideia de esquema, diagrama, trama (a imagem tramada), retícula, matriz, algoritmo e código. Há ainda uma expansão da estética pelo pensamento matemático, ocupando o espaço gráfico através do computador e de outros meios eletrônicos. O livro finaliza com o grande desafio da época, que era a busca pelas miniaturizações dos dados que permitissem armazenar, estocar e distribuir um número maior de informações em suportes cada vez menores. Além disso, com a crescente complexidade tecnológica e a necessidade de tratamento da imagem para o envio de dados, foi necessária uma descentralização da produção e recepção da informação, o que fez com que a imagem tramada já nascesse com uma essência interdisciplinar.
Talvez a grande mudança tenha começado com a tecnologia do hipertexto17. George Landow18, em Hypertext: the convergence of contemporary critical theory and technology19, fez uma leitura instigante de como áreas aparentemente desconexas de investigação, a dos teóricos literários – representada por Jacques Derrida e Roland Barthes – e a das tecnologias – representada por Theodor Nelson e Andries van Dam –, convergiram para mudanças de paradigma que os levaram a abandonar sistemas conceituais baseados em ideias de centro, margem, hierarquia e linearidade, e a substitui-los por multilinearidade, nós, blocos de informação e links. Com isso, enfatizavam um novo modelo: o modelo de rede. As redes também assumem sua forma a longas distâncias e em grandes escalas, unindo várias organizações em locais geograficamente separados. Este modelo faz surgir termos correlatos como entrelaçamento, hipertextualidade, interconectividade, intertextualidade, multivocalidade, descentralização etc.
Electronic culture: technology and visual representation, de 1996, editado por Timothy Druckrey20, aborda a tecnologia como sendo responsável por uma série de transformações culturais que afetaram todos os aspectos da experiência humana. A mais visível dessas transformações ocorreu no amplo campo da ‘representação’. Recomendamos a leitura integral deste livro, mas ressaltamos o artigo “The world as interface – toward the construction of context-controlled event-worlds”, de Peter Weibel21. Com abordagem clara a respeito da evolução da geração e transferência de imagens assistidas por máquinas, o texto inicia com a fotografia, passa pela transmissão de imagens assistida por máquinas à distância, a evolução dos transistores, circuitos integrados, chips e tecnologia de semicondutores para tecnologias de processamento de dados, a tecnologia de telecomunicação interativa que veio permitir a arte na rede, chegando às pesquisas que buscam por novas interfaces com avançadas tecnologias sensoriais. Mas seu diferencial, em nosso ponto de vista, foi trazer o modelo da endofísica para o contexto das artes. A endofísica é uma ciência que explora como funciona um sistema quando o observador se torna parte dele. Essa abordagem trazida por Weibel fornece uma nova estrutura teórica para descrever e compreender as condições científicas, técnicas, culturais e sociais do mundo eletrônico pós-moderno. A endofísica aborda a relatividade do observador, da representação e da não-localidade, do mundo visto como uma interface.
Lev Manovich, em The language of new media22, apresentava a ‘modularity’ 23 como uma das tendências de uma cultura em processo de informatização/computadorização. Para o autor, a estrutura em módulos é a base da sociedade industrial moderna, apoiado no fato de que “most products we use are mass produced, which means they are modular, i.e. they consist from standardised mass produced parts which fit together in standardised way”24. Mas há diferenças entre modularidades. Por exemplo, hoje, em estruturas modulares criadas por computador, toda vez que um módulo é reutilizado, pode ser modificado automaticamente. Ou seja, “if pre-computer modularity leads to repetition and reduction, post-computer modularity can produce unlimited diversity”25. O autor justifica que o conceito desses novos blocos já vem com informações completas necessárias para serem ‘copiados e colados’ em um novo objeto, além de poderem fazer isso autonomamente, pois “a block knows how to couple with other blocks – and it even can modify itself to enable such coupling”26. Portanto, são blocos de informação que podem se alterar infinitamente, são estruturas que se organizam por unidades ‘iguais’ e ao mesmo tempo ‘diferentes’.
Muitos outros trabalhos poderiam ser listados, mas este é o momento para dar espaço a cada autor deste dossiê para que remonte seu percurso e aponte suas próprias fontes referenciais. As pesquisas apontadas até aqui já foram suficientes para apresentar a ideia – um cenário – e demonstrar a necessidade de se repensar modelos conceituais, pois não serão os conceitos de grade, rede, malha ou interface, capazes de lidar com a complexidade futura, abrangendo forças contraditórias (que não devem ser resolvidas ou neutralizadas, nas palavras de Pepperell), coexistindo como forças flutuantes identificáveis, acomodando, tensionando e gerando as diversidades do conhecimento.
Este foi o mote das discussões acadêmicas durante o ano de 2018 entre três grupos de pesquisas de arte e tecnologia, que culminaram com a organização do 8º Encontro Internacional de Grupos de Pesquisa: Realidades Mistas & Convergências entre Arte, Ciência e Tecnologia27, realizado pela Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Estadual Paulista (Unesp), no mês de outubro daquele ano, e sediado na Escola de Comunicações e Artes da USP. O tema do encontro foi exatamente ‘Membranas’, que, na perspectiva dos grupos organizadores28 – a saber: cAt-Unesp/CNPq29 (liderado por Milton Sogabe e Fernando Fogliano), GIIP-Unesp/CNPq30 (liderado por Rosangella Leote) e Realidades-USP/ CNPq31 (liderado por Silvia Laurentiz e Marcus Bastos) – são interseções permeáveis que, ao mesmo tempo, unem e separam coisas, ideias, corpos e/ou ambientes. O conceito de membrana atualiza a ideia de interface, acomoda pensamentos paradoxais em um momento da cultura de redes em que a sobreposição entre geografias, arquiteturas e virtualidades, assim como a sinergia entre corpos e máquinas, resultam em afetos, comportamentos e topologias esponjosas. Membranas, neste contexto, são dispositivos cuja porosidade delineia confluências maleáveis, sem divisas rígidas. Além disso, estar permeado por membranas significa estar inserido; portanto, o observador faz parte do sistema. O que, em outras palavras, significa considerar também uma dimensão política e de pertencimento. Desta forma, o desafio foi refletir/perceber/experienciar o que mudou neste período de quase 20 anos, desde as publicações de Wilson e Pepperell. Uma vez que as tecnologias permeiam a tessitura do fluxo cultural de sua época, muita coisa mudou de lá para cá; logo, reverberará em novos modelos conceituais e perceptivos.
Temos consciência de que compreender a ‘lógica’ de uma determinada tecnologia ou conjunto de tecnologias não é único fator determinante para a compreensão de uma cultura. Em primeiro lugar, porque a mesma tecnologia pode produzir efeitos diferentes em contextos e condições variadas. Depois, mesmo que nos encontremos em um período de mudanças tecnológicas e culturais, pode levar anos para que seus efeitos comecem a causar verdadeiros sintomas. Além disso, toda e qualquer transformação cultural tem implicações sociais e políticas, e vice-versa. E, por último, toda adoção de novo modelo significa uma reviravolta mental para sua aplicabilidade e, ao mesmo tempo, exige um período de afastamento para análises e críticas.
O resultado de parte destas discussões está contido neste dossiê. Não se trata, contudo, de um conjunto fechado de ideias, e nem de proceedings do evento citado. Antes, apresenta um pensamento fluindo entre pessoas de diferentes países, que se mantêm conectadas, além de outros autores que, de forma independente, submeteram seus trabalhos para esta revista e que, na visão deste editorial, vieram ao encontro desta discussão em plena sintonia com a relação entre arte, ciência e tecnologia através do viés do conceito de membrana explorado.
Uma das questões importantes do livro de Pepperell é o fato de que uma mudança histórica não poderia ser vista como essencialmente linear, com pontuação abrupta; ao contrário, as transições entre estados sempre são atenuadas e confusas. Ou ainda, diferentes pontos de vistas sobre um mesmo evento podem ser considerados sem relação explícita de causalidade, mesmo que paradoxais entre si. A pesquisa histórica dos desenvolvimentos midiáticos e das técnicas ainda se encontra em expansão e começa a esboçar novos modelos conceituais, o que poderá ser observado neste dossiê a partir do trabalho de diferentes autores.
Em “Normatividad entre esteticidad y tecnicidad según Simondon: hacia una Estética del Derecho como Mecanología de las normas jurídicas”, Gonzalo S. Aguirre apresenta o desconforto de Gilbert Simondon com a atual concepção de técnica e de objetos técnicos. Um grave problema, destaca Aguirre, é pensar ‘tecnologia’ como um estado determinado de coisas, e não como uma concepção discursiva dos processos tecno-estéticos em ação. Além disso, o modo de produção e composição do objeto tecno-estético responde hoje pelas mesmas características do que chamamos ‘tecnologia’, gerando um discurso sobre a técnica que se autorreferencia. Aguirre propõe um diferencial discursivo entre norma e valor dos objetos, que poderia ser também chamado de membrana, com ênfase no seu caráter tecno-estético.
Andrés Burbano, em “La (ciencia de la) naturaleza y su propia voz: tiempo profundo de la interacción entre arte, tecnología y ciencia en América del Sur”, faz um extenso e perspicaz comentário ao texto “Zoofonía: tesis sobre la posibilidad de describir los sonidos y las articulaciones de la voz de los animales,” escrito em 1829, no Brasil, por Hércules Florence. Profundo conhecedor do trabalho de Florence, Burbano acredita que a grande riqueza e força do pensamento do inventor francês está em antecipar claramente os debates contemporâneos sobre a necessidade de articular diferentes campos do saber para propor respostas à complexidade das questões do mundo. O estudo científico de campo proposto por Florence se justifica ainda hoje, uma vez que atua entre a experiência da escuta e do registro. É um resgate de uma arqueologia das mídias, demonstrando intensas relações iniciais entre arte, ciência e tecnologia.
Fernando Luiz Fogliano, Daniel Malva, Melina Cesar Furquim, em “Arte: estabilidade e ruptura, do modernismo ao zeitgeist da contemporaneidade”, fazem uma abordagem da arte contemporânea utilizando princípios de complexidade a partir de modelos de dinâmicas evolutivas. O modelo de Evolon, da Teoria Geral de Sistemas, foi considerado pelos autores ideal para entender a dinâmica de caos e ordem, numa reflexão sobre o estético e o político, tendo em perspectiva as crises que a sociedade contemporânea atravessa.
Sérgio Roclaw Basbaum escreve “Scientificizing McLuhan: predicates of man-machine coupling, the triplex isomorphism hypothesis, and its aesthetic consequences”, com o objetivo de entender a relação entre tecnologia midiática e experiência individual e coletiva. Apoiado em pesquisas da neurociência, defende que nossos corpos, assim como nossos cérebros, devem estar mudando de alguma forma devido à era da computação ubíqua, e lança a hipótese de que seria possível relacionar de alguma forma nossos corpos, nossa experiência e as máquinas que definem nossa cultura. A complexidade aumenta, pois vivemos em uma cultura em rede, na qual a noção de experiência dificilmente pode ser pensada em termos unicamente individuais.
German Alfonso Nunez, em “O beijo da morte e o seu contexto cultural e social: uma introdução à emergência da arte tecnológica ou digital”, apresenta sua perspectiva sobre a emergência das práticas artísticas englobadas pelo termo Arte, Ciência e Tecnologia (ACT) nos Estados Unidos e Europa. Recorda o contexto social e cultural que possibilitou o seu surgimento e conclui ser ainda uma prática isolada, com alto grau de especialização e, principalmente, identificada com certa autonomia em relação à arte contemporânea.
Os estudos sobre Remix evidenciaram como as manifestações culturais se desenvolveram a partir de um espaço de compartilhamento de histórias, conhecimentos e valores. É o que conduz a “Conversation between Monica Tavares and Eduardo Navas” sobre questões relacionadas à cultura Remix e sobre como surge a reciclagem de ideias – e as formas como essas ideias são manifestadas, reformuladas e redefinidas –, à medida que a tecnologia emergente é continuamente normalizada.
“Discourses around vertical videos: an archaeology of ‘wrong’ aspect ratios”, de Gabriel Menotti, procura fornecer referências históricas para o exame de formas contemporâneas de imagens em movimento vertical, incompatíveis com os padrões audiovisuais estabelecidos no Ocidente. Faz um recorte desde os primeiros desenvolvimentos do cinema moderno e da videoarte dos anos 1980/90 até as plataformas em rede e eventos com curadoria das diferentes formas artísticas tecnológicas atuais.
Cornelia Lund, em “Elastic realities: documentary practices between cinema and art”, apresenta seu estudo sobre as práticas documentais e a relação com a realidade, arte e política. Nas palavras da autora, recentemente, as práticas documentais, incluindo aquelas que trabalham com imagens em movimento, conheceram um boom sem precedentes no campo da arte que provocou críticas, mas também levou a discussões frutíferas entre os dois campos: as práticas documentais artísticas e o cinema documental mais tradicional. Este artigo pretende contribuir para esta discussão.
Sergio José Venancio Júnior, em “Arte e inteligências artificiais: implicações para a criatividade”, propõe uma reflexão sobre as obras de arte e princípios de inteligência artificial, tangendo questões como autonomia e criatividade. Referências de algoritmos evolutivos e da cibernética culminam em um modelo particular de análise de obras em termos de sintaxe, semântica e pragmática. Dentre os desafios do autor está esclarecer um potencial de desenvolvimento para máquinas criativas.
Em adição à linha adotada por Venancio Junior, ressaltaríamos que inteligência artificial (IA), algoritmos evolutivos e cibernética são importantes nesse momento, pois temos que ter claro que os computadores não serão apenas mais rápidos e eficientes em cálculos, como se imaginava em seus primórdios. Conforme Yuval Noah Harari32, em 21 lições para o século 21 (2018), a IA está começando a “superar os humanos em um número cada vez maior dessas habilidades [refere-se a habilidades cognitivas como aprender, analisar e comunicar], inclusive a de compreender as emoções humanas”33. Partindo do princípio de que nossas tomadas de decisões são resultado de bilhões de neurônios que calculam probabilidades numa fração de segundo, que “intuição humana”34 é a capacidade de reconhecer padrões, e que emoções e desejos não são “mais do que algoritmos bioquímicos, não há razão para os computadores não decifrarem esses algoritmos”35. O que sugere que o
cérebro reconhece padrões bioquímicos ao analisar expressões faciais, tons de voz, movimentos das mãos e até mesmo odores corporais. Uma IA equipada com os sensores certos poderia fazer tudo isso com muito mais precisão e confiabilidade do que um humano.36
Mas o problema não está só na superação de habilidades que pareciam ser exclusivamente humanas, e sim, no fato de que existem habilidades não-humanas que diferenciariam a IA de maneira qualitativa nesse processo. Conforme Harari, conectividade e capacidade de atualização nos colocariam em desvantagem no futuro37. E a IA é, desta forma, uma nova camada, um outro tipo especial de ‘membrana que nos conecta’, mais um motivo para ficarmos atentos.
A respeito da busca por novos modelos perceptivos, que consta também como uma das preocupações em ambos os livros-referência supracitados, ela está presente nos próximos artigos.
“O visível do invisível: data art e visualização de dados”, de Suzete Venturelli e Marcilon Almeida de Melo, trata da relação entre os sentidos perceptivos e os métodos técnicos de amostragem da realidade material em códigos digitais que permitem o acesso em tempo real a seus dados. A preocupação dos autores é compreender qual visão de mundo teremos através de dados. Artistas que lidam com dados utilizam diversos métodos para capturar, processar e representar a realidade, agora abstraída em instruções binárias, acionadas por algoritmos que objetivam cada vez mais mediar a experiência sensível com a realidade.
Luisa Paraguai, em “Sensescape: narrativas flutuantes”, aborda o sentido do olfato enquanto articulador e mediador do processo de construção de lugares e memórias, narrativas e experiências urbanas. Apresenta os artistas Peter de Cupere e Hilda Kozári e, respectivamente, as obras Smoke cloud (2013/2016) e Air (2003), como ações poéticas nas quais o cheiro atua como elemento tático para inferência de dados e a percepção das relações espaço-temporais nos espaços urbanos.
“Sinestesia nas artes: relações entre ciência, arte e tecnologia”, de Loren P. Bergantini, traz uma reflexão sobre o conceito de sinestesia, muito utilizado pelas artes, a partir de posicionamentos de pesquisadores tanto das ciências cognitivas quanto do universo artístico. Do ponto de vista das neurociências, destaca-se principalmente a relação entre sinestesia e criatividade. Propõe a necessidade de uma definição mais específica sobre o que significa sinestesia na arte, destacando três formas de abordar o tema: metafórica, mnemônica e por simulação.
Em “Tecnoperformance e instalação: possibilidades emergentes de produção artística com drones”, Rosangella Leote e Caio Pompeu Cavalhieri se apropriam da popularização de drones enquanto um fenômeno recente e repleto de possibilidades para as artes. Neste artigo, os autores apresentam o processo criativo de uma ‘tecnoperformance com drone’. Eles descrevem a performance como um voo, conduzido em tempo real, com base nos gestos faciais e movimentos de cabeça de uma artista com síndrome de locked in, que demarca no solo um caminho, feito por um laser instalado em um drone. O caminho projetado pelo laser orienta movimentos de dança criados por dançarinas no local da performance, misturando assim procedimentos eletrônicos e analógicos experimentais, improvisos e precisão tecnológica, complexidade e vulnerabilidade. O artigo também traz considerações sobre o processo de desenvolvimento entre os campos da engenharia, tecnologia e arte.
Em sua 35ª edição, a revista Ars convidou o artista José Dario Vargas Parrapara a produção da capa e do ensaio visual. Para a capa, Vargas produziu um projeto gráfico instigante e inovador, utilizando realidade aumentada (RA) para ser visualizada com aplicativo no celular38.
Para o ensaio visual, Dario Vargas criou Membranas de uma dissecação cartográfica, pensando nas fronteiras geográficas enquanto membranas que filtram e rejeitam pessoas, em especial em locais de conflito: as fronteiras México/Estados Unidos, África/Europa, Venezuela/Colômbia/Brasil. Conforme o autor, as imagens adquiridas pelo Mapbox (https://maps3d.io/), capturadas via satélite, permitem obter camadas de rotas e fronteiras entre estados e países que, embora virtuais, demarcam geopolíticas que interferem com fluxos de pessoas e legislações, causando conflitos sociais e econômicos que se tornam globais (crise econômica, mão de obra barata, política neoliberal, Brexit etc.). Por outro lado, elementos infográficos impressos em embalagens de produtos comercializáveis revelam sua posição crítica acirrada em face dos acontecimentos atuais.
Aproveitamos a oportunidade para agradecer o apoio ao evento 8º Encontro Internacional de Grupos de Pesquisa: Realidades Mistas & Convergências entre Arte, Ciência e Tecnologia à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp – processo nº 18/13696-7), ao Departamento de Artes Plásticas e à Escola de Comunicações e Artes da Universidade São Paulo, e ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Unesp. Agradecemos também aos líderes dos grupos de pesquisa envolvidos na organização do evento, e aos membros da comissão organizadora do grupo de pesquisa Realidades, pois sem eles esta proposta não existiria.
Reconhecemos ainda a importante participação de Lara Rivetti e Bruna Mayer na produção desta edição especial.
E, finalmente, agradecemos ao corpo editorial da revista Ars pela confiança e oportunidade para a realização deste dossiê e a todos os autores que tornaram esta edição possível, bem como aos pareceristas ad hoc que contribuíram para o enriquecimento das discussões. Muito obrigada.
Notas
Organizadora
Silvia Laurentiz – Universidade de São Paulo (USP).
Referências desta apresentação
LAURENTIZ, Silvia. Editorial. ARS. São Paulo, v.17, n. 35, p. 7- 17, 2019. Acessar publicação original [DR]
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