Alfonso Bovero, Antonio Carini, Alfonso Splendore, Alessandro Donati, Carlos Foá, Mário Artom, Archimede Busacca, Carlos Brunetti e tantos outros deixaram suas marcas na saúde pública de São Paulo e no curso de medicina da Faculdade de Medicina de São Paulo. Todos eram médicos italianos vindos para São Paulo no final do século XIX e começo do século XX.
O livro de Maria do Rosário Rolfsen Salles responde a nossa curiosidade em saber por que esses e outros médicos deslocaram-se para São Paulo e como se inseriram no mercado de trabalho, ou melhor, em que setores eles desenvolveram suas carreiras para cumprirem o objetivo da ascensão social. O livro soma-se ao de Carlos da Silva Lacaz, Médicos italianos em São Paulo: trajetória em busca de uma nova pátria —, e traz novos elementos à história da saúde pública e da ciência médica em São Paulo.
O tema abordado insere o trabalho em uma nova vertente em história social, que procura explicar a formação da elite científica e médica no país, mas adiciona um novo componente: a origem estrangeira dessa elite. Distintamente da elite médica nativa, os médicos italianos não dispunham de laços de família, de amizade e patronagem junto à elite política e profissional brasileira, de modo a favorecer sua ascensão social. A identificação de outros expedientes de ascensão social nas trajetórias dos médicos italianos em São Paulo é um dos objetivos do trabalho, que assim acaba por estabelecer um diálogo com o artigo de Odaci Luiz Coradini, ‘Grandes famílias e a elite profissional na medicina no Brasil’, publicado em História, Ciências, Saúde — Manguinhos, vol. III(3), nov. 1996-fev. 1997.
A historiografia sobre a imigração de europeus, em especial de italianos, para as terras paulistas, é bastante extensa; entretanto, estudos sobre imigrantes que não vieram para os trabalhos nas lavouras cafeeiras são poucos. Diferentes razões moveram indivíduos com formação profissional específica — médicos — a deixarem sua pátria. Eles não emigraram porque a Itália não lhes propiciou condições de sobrevivência, escapando, portanto, do comentário de Mário de Andrade (Aspectos da literatura brasileira, São Paulo, Martins, p. 58), ao observar aquelas tristes figuras da pintura de Segall, Navio de Emigrantes: “os seres do Navio de Emigrantes são de todas as nacionalidades, apenas os fugitivos das distribuições defeituosas, os enxotados, os que serão sempre demais para os que pretendem gozar o luxo do mando total.”
Os médicos não vieram por razões puramente econômicas, pela ausência de condições de sobrevivência nas distribuições sociais e econômicas defeituosas criadas pelo avanço do capitalismo no pós-unificação italiana. O livro explora as motivações da vinda e encontra pistas em alguns elementos facilmente intuídos e em outros realmente novos. Os médicos vieram para São Paulo, obviamente, porque a grande imigração para este estado, predominantemente composta por italianos, atraiu contingentes de novos e variados profissionais. Além da questão da nacionalidade, pesou a precariedade das condições de atendimento médico à população trabalhadora nas terras paulistas. Uma vasta documentação registra a falta de médicos e, mais ainda, a precariedade das condições médico-sanitárias, cuja manifestação contundente registra-se nas taxas de mortalidade por doenças infecto-contagiosas, responsáveis por 25% a 58% dos óbitos nas principais cidades do estado, como São Paulo, Santos, Campinas e Ribeirão Preto, e nas elevadas taxas de mortalidade infantil (de mil nascidos vivos, 166,81 a 183,09 não atingiam 12 meses de vida).
Na última década do século XIX, a saúde pública começou a ser organizada no estado de São Paulo. Em 1896, o serviço sanitário contava com 203 funcionários entre médicos, cientistas, engenheiros sanitários, enfermeiros e serventes. Além desses funcionários da saúde pública estadual, os municípios dispunham de um quadro próprio de funcionários na Intendência de Higiene, porém, o serviço municipal era muito precário, a ponto de os médicos e diretores do serviço sanitário estadual o acusarem de negligente e responsável pela propagação da febre amarela nas cidades do Oeste Paulista.
A política de saúde pública e o serviço sanitário orientaram-se com exclusividade para o estudo, prevenção, policiamento e atendimento das doenças infecto-contagiosas. À exceção da tuberculose, os inspetores sanitários e os médicos lotados nos institutos públicos de pesquisa científica e de produção de vacinas e soros e no Hospital de Isolamento cuidavam de prevenir e tratar de doenças como cólera, febre tifóide, varíola, difteria, febre amarela, escarlatina, malária, tracoma, ancilostomíase etc.
Do quadro de doenças que recebiam as atenções das autoridades sanitárias não faziam parte aquelas que exigiam um acompanhamento clínico individualizado e de intervenção cirúrgica e, portanto, distinto do conferido às doenças infecto-contagiosas. As doenças não contagiosas e a própria obstetrícia eram tratadas por clínicos em consultórios, hospitais privados e no próprio domicílio.
O grande contingente de italianos e a participação significativa de empresários de origem italiana na indústria de São Paulo — Matarazzo, Scarpa, Siciliano, Crespi, Pinotti, Gamba, Puglisi e tantos outros — explicam o fomento e o financiamento à criação de hospitais, casas de beneficência e sociedades de socorro mútuo. Essas instituições atraíram a vinda de médicos para prestar assistência à população trabalhadora, predominantemente italiana. A autora mostra que a ascensão do grupo de médicos foi facilitada pela formação de sociedades de beneficência e pela fundação do Hospital Umberto I, criados pela iniciativa da comunidade italiana e de empresários industriais de origem italiana.
O outro motivo da emigração de médicos italianos, menos conhecido, foi a situação da ciência e da clínica médica na Itália. A medicina italiana distinguia-se da do resto da Europa no século XIX. A laicização do atendimento médico que se seguiu à reforma protestante por toda Europa não se verificou na Itália. Ao contrário, nos estados italianos da contra-reforma, o sistema de atendimento médico caracterizado pela beneficência foi reforçado e manteve-se como um vasto e diferenciado complexo de obras pias, justificando a caridade cristã. O controle exercido pela Igreja nos hospitais obstaculizava a ascensão na carreira do seu corpo clínico. Segundo a autora, o controle religioso católico das práticas médicas dificultou a absorção das descobertas que revolucionaram a medicina no século XIX — a revolução pasteuriana. Portanto, a opção pela emigração encontra sua razão também nas próprias condições de desenvolvimento da ciência e da prática médica italianas (pp. 82-6)
A emigração foi uma alternativa para um grupo de médicos italianos porque São Paulo concentrava grande contingente de trabalhadores de origem italiana que não dispunha de atendimento médico, contando com uma forte burguesia industrial de origem igualmente italiana disposta a financiar hospitais e casas de beneficência. Ao mesmo tempo, São Paulo passava por profundas transformações ditadas pela política de saúde pública e pela formação de instituições públicas de pesquisa e de ensino, que abriam perspectivas de inserção profissional para os médicos italianos.
Nos úteis e sintéticos quadros organizados pela autora, nos quais demonstra as trajetórias sócio-profissionais, observa-se o predomínio da clínica médica, seguida de longe pela atividade de pesquisador, professor e higienista, cirurgião, clínico operador, ginecologista, oftalmologista, obstetra, pediatra, radiologista e cardiologista. Uma das especialidades de maior incidência era a oftalmologia, pondo em evidência, por assim dizer, uma clara associação entre a escolha da especialidade e a doença d’olhos ou tracoma, que, por muitos anos, alastrou-se epidemicamente entre os trabalhadores do campo, levando-os à cegueira. Dois médicos se sobressaem no tratamento e na pesquisa sobre a doença: Francisco Pignatari e Archimede Busacca (pp. 64 e 139).
Chama a atenção a participação dos médicos italianos como cientistas e pesquisadores, que os liga à formação da comunidade científica paulista, ao desenvolvimento da pesquisa científica e à difusão da ciência microbiológica. Um exemplo expressivo, embora pouco explorado pela autora, é a participação dos médicos imigrantes italianos como professores da Faculdade de Medicina de São Paulo. Criada em 1912, a Faculdade de Medicina seguia uma orientação fortemente voltada para a formação de médicos clínicos. As disciplinas clínicas eram ministradas por professores recrutados junto à elite médica paulista, possivelmente por conferirem maior prestígio social e ganhos financeiros, ao passo que as disciplinas básicas, como parasitologia, microbiologia, fisiologia, patologia e anatomia patológica, eram deixadas aos professores estrangeiros, em especial, italianos: Alfonso Bovero, professor de anatomia; Alessandro Donati, professor de patologia geral e experimental, e Antonio Carini, professor de microbiologia e imunologia.
Na década de 1920, um grupo de cientistas perseguidos pelo regime fascista veio para São Paulo, reforçando com seus conhecimentos em ciências médicas básicas a comunidade científica local. Muitos eram professores e pesquisadores de universidades e institutos de pesquisa italianos, como Dino Vannucci, Archimede Busacca e Carlo Foá. Vannucci e Busacca dedicaram-se à anatomia patológica e tornaram-se grandes divulgadores do progresso da ciência médica, por meio do periódico Folia Clinica et Biologica, por eles fundado, e dos artigos publicados nos Archivos de Biologia, revista editada pela empresa farmacêutica Laboratório Paulista de Biologia, cujo diretor científico era outro cientista italiano de grande projeção na comunidade científica de São Paulo, Antonio Carini.
O envolvimento dos médicos italianos na formação e divulgação da ciência médica estende-se à participação no Instituto Bacteriológico, onde Splendore trabalhou com Adolpho Lutz, investigando toxoplasmose, leishmaniose, blastomicoses, doenças tropicais etc., e à fundação do Instituto Pasteur, instituição privada de pesquisa, de produção de vacina contra raiva e de análises bacteriológicas, onde atuaram Ivo Bandi e o próprio Antonio Carini.
Na difusão científica, a contribuição dos médicos italianos concretizou-se na criação da revista Ars Medica (1923-26), maior veículo de divulgação da atividade científica do grupo, e na fundação da Associação Italiana para o Estudo e Incremento das Disciplinas Médicas (pp.130-9). Em 1929, foi criada a revista Folia Clinica et Biologica, que constituirá na década de 1930 a grande sucessora da Ars Medica, contribuindo não apenas para a divulgação científica, mas também para a consolidação da identidade do grupo de médicos italianos em São Paulo (pp.141-2).
Ao esquadrinhar a atuação e a identidade dos médicos italianos, por meio das intervenções nos hospitais privados, financiados por grandes industriais italianos, nas clínicas privadas e nas associações de caráter científico, o livro traz grande contribuição à história da saúde pública e da ciência no país, fornecendo novas pistas para futuras investigações.
Resenhista
Maria Alice Rosa Ribeiro – Professora da Faculdade de Ciências e Letras (Unesp). E-mail mribeiro@fclar.unesp.br
Referências desta Resenha
SALLES, Maria do Rosário Rolfsen. Médicos italianos em São Paulo (1890-1930): um projeto de ascensão social. São Paulo: Editora Sumaré, 1997. Resenha de: RIBEIRO, Maria Alice Rosa. Trajetórias dos médicos italianos em São Paulo. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.5, n.1, mar./jun. 1998. Acessar publicação original [DR]
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