VALVERDE, Antônio José Romera. (Org.). Maurício Tragtenberg: 10 anos de encantamento. São Paulo: Educ/Fapesp, 2011. Resenha de: MACHADO, Rodolfo Costa. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.26, n.38, p.441-447, jan./jun, 2014.
Como início de leitura do livro, recomenda-se o vívido depoimento Maurício Tragtenberg, professor, de Ediógenes dos Santos, que encerra a coletânea e é tomado aqui, inversamente, como ponto de partida da resenha dos escritos apresentados durante o evento artístico- -acadêmico realizado no Teatro Tuca da PUC-SP, em 2008, homônimo ao livro organizado pelo professor de Filosofi a Antonio José Romera Valverde, em 2011. Com 13 capítulos “de análises de aspectos pontuais da obra tragtenberguiana” (p. 7), conforme a introdução “Presença encantada”, assinada por Valverde, elege-se de saída o depoimento de Ediógenes sobre suas experiências vividas com Maurício Tragtenberg (M.T.)1 e suas lembranças.
Trata-se das memórias da única mulher do grupo que cursou a disciplina História do Brasil ministrada por M.T. no ginásio “Candinho”, durante o breve período 1962-1964, inserido historicamente o autodidata na Campanha Nacional pela Escola Pública de 1963, ano em que sentiu “na pele o que é estar na direção de uma greve” (TRAGTENBERG, 1999, p.62). Na iminência, pois, da barbárie do golpe de Estado e de classe de 1º de abril de 1964, “ano que terminou sem Maurício” (p. 200) “cassado logo no começo do direito de reger aulas nas escolas públicas do estado em 64” (p. 200) pela ditadura militar bonapartista. Certamente porque, articulado à greve do magistério público no contexto das Reformas de Base nacional-popular do governo Goulart, seu quefazer pedagógico ensinava, conforme pontua Ediógenes, que “quando a história não se contenta com os heróis nacionais ela incomoda o poder estabelecido, o status quo, porque traz à tona conflitos do passado que permanecem no presente” (p. 207).
O primeiro capítulo analítico é assinado por Antonio Ozaí. “A obra de Maurício Tragtenberg – in memoriam” aponta o engajamento do intelectual que buscou incidir socialmente pelos “de baixo” nos estertores da ditadura militar – compreendendo seu processo de autorreforma “pelo alto” resultante na institucionalização da autocracia burguesa após 1988 —, através de um “diálogo com os operários e os excluídos do sistema de ensino formal” (p. 19). Como exemplo dessa interlocução, destaca-se a “coluna ‘No Batente’, publicada no jornal Notícias Populares” (p. 19). Após percorrer a obra juvenil pré-universitária de M.T., em monografia de 1954 que “lhe deu o direito de prestar o vestibular” (p. 20), o A.2 salienta “os limites do modelo sociológico weberiano” (p. 25) advertidos pelo autodidata, além de relembrar que ele sublinhava conscientemente “a necessidade de separar a produção intelectual de Marx em relação às interpretações dos seus seguidores. Recorda que o próprio Marx recusou a alcunha de ‘marxista’” (p. 28).
O segundo capítulo, “Polifonia e unidade na obra-trajeto de Maurício Tragtenberg”, de Doris Accioly, avança de modo fundamental à adequada compreensão do sentido da obra tragtenberguiana, à medida que apresenta o repúdio do intelectual brasileiro à “panaceia epistemológica do ecletismo” (p. 41). Ela rememora que M.T, às vésperas de seu falecimento, pensava “em escrever seu próximo livro sobre o ecletismo como base ideológica da conciliação política no Brasil” (p. 45), assinalando, ainda, que “Maurício repudiava em todos os planos a conciliação, o consenso, por ele entendidos como base do conservadorismo” (p. 43).
“Burocracia, poder e ideologia: a antevisão da empresa contemporânea em Tragtenberg”, de José de Faria, assinala ser a tese doutoral, de 1973, “o primeiro livro produzido no Brasil que se propõe a uma análise crítica da teoria administrativa em seu processo histórico” (p. 55). Crendo se tratar de “um texto de Teoria Crítica” (p. 55), registra o A. que Burocracia e ideologia desdobrou a tese originalíssima esboçada em artigo da FGV/SP em 1971, segundo a qual “a Teoria Geral da Administração (TGA) é uma ideologia” (p. 53). “A contemporaneidade da crítica tragtenberguiana à teoria da gestão” (p. 66) centra-se na abordagem da empresa contemporânea enquanto instituição sociopolítica e economicamente dominante, onde “a mudança do operário produtivo para o de controle” (p. 61) sincroniza-se à “sofisticação das formas manipulatórias de controle social” (p. 61).
“A magia em Maurício Tragtenberg”, de Ana Paula Paes, noticia a impressão de Fernando Prestes MoĴ a acerca da originalidade da crítica às teorias organizacionais presente em M.T., a sua maneira “independente do movimento critical management studies” europeu (p. 81). Embora consciente de que “não há consenso sobre o caráter de suas posições anarquistas” (p. 82), a A. assevera que o anarquismo representa o fundamento teórico da obra de M.T., enxergando em Weber a própria base ou o fundamento da crítica tragtenberguiana à burocracia. Para um melhor equacionamento do marxismo anarquizante de M.T., valeria a pena, talvez, atentar a uma ideia recorrente sua, segundo a qual “a história é a história dos modos de produção, onde as estruturas burocráticas existem para realização de seus objetivos” (TRAGTENBERG, 1979, p.65). Evitar-se-iam, assim, imputações indevidas — porque extrínsecas — ao “texto” tragtenberguiano apanhado em sua unidade ideológica própria.
Na sequência, “O político e o econômico na obra de Maurício Tragtenberg”, de Lúcia Bruno, apesar do mérito de trazer à baila debate fundamental, encontra apenas em Lévi-Strauss os subsídios para afirmar o político como ineliminável atributo humano. Se “não existe sociedade sem poder político” (p. 90) — “o fundamento da vida em comum” (p. 89) —, nem “economia apolítica” (p. 94), interditando a “pergunta acerca de qual elemento é o determinante na constituição das sociedades humanas” (p. 95), passa-se por alto a abordagem tragtenberguiana do “real no nível do social e não do político” (TRAGTENBERG, 1983, p.283), haja vista que “o homem é um animal social antes de ser um animal político” (TRAGTENBERG, 1979, p.58). Interdita-se, assim, o fato de M.T. entender “por modo de produção”, para além de quaisquer determinismos, “uma combinação específica de diversas estruturas e práticas, onde o econômico aparece finalmente como dominante” (TRAGTENBERG, 1979, p.60).
Em seguida, “Tragtenberg e a questão ideológica da TGA”, de Maria Ester de Freitas, particulariza a ambiguidade básica do processo ideológico, que “se vincula às determinações sociais reais enquanto técnica” (p. 112) — daí sua função histórico-operativa —, mas em sua pseudoneutralidade “se afasta dessas determinações e compõe um universo organizado e sistematizado” (p. 112). Afrânio Catani disseca, por sua vez, o germano “Walter Rathenau analisado por Maurício Tragtenberg”, cujo pioneirismo na análise do filósofo, político, técnico, economista e um dos maiores industriais alemães aparece em Relatório de 1980 da FGV/SP, intitulado Rathenau e a crise do liberalismo.
“Travessia: o pensamento político de Tragtenberg”, de Antonio José Romera Valverde, retoma a frequência do autodidata “aos sapateiros anarquistas do bairro paulistano do Brás e a leitura dos jornais libertários conservados por militantes, especialmente pelo arquivista Edgard Leuenroth” (p. 138). Considera Tragtenberg “herdeiro de modo próprio da premissa do Prof. Cruz Costa, que apregoava o entendimento do pensamento brasileiro, no sentido amplo, como objeto e fim do trabalho de intelectuais nativos” (p. 140). Apresenta, ainda, texto de M.T., até pouco praticamente inacessível, em diálogo com artigo de 1983 (Marx/Bakunin), intitulado Uma leitura libertária de Marx, no qual criticamente sumariava e rejeitava “o estereótipo de que Marx é um autoritário e Bakunin um libertário” (p. 142).
Por sua vez, Evaldo Viera, em “Maurício Tragtenberg: assim vale a pena”, destaca a análise tragtenberguiana do “falso”, porém efetivo, filtro do vestibular, que num “quadro socioeconômico mais amplo” (p. 153), na sociedade de classes capitalista, mascara “uma seleção social preexistente” (p. 152), escolhendo assim, pedagogicamente, os escolhidos socioeconomicamente.
Em “Maurício Tragtenberg: ousou saber, ousou dizer”, Paulo Edgard Resende relembra, nesta “época de muitos pós-nada e pós- -tudo” (p. 159), “o companheiro que nos demostrava ser possível viver perigosamente, para viver com dignidade e afetividade” (p. 164). Isso em um contexto “altamente repressivo” (p. 164), de uma ditadura militar a serviço do grande capital estrangeiro associado ao capital atrófico nacional, porém travestida “com roupagem de la patrie en danger, na insana luta contra o suposto comunista atribuído a quem não assimilasse o discurso da Doutrina de Segurança Nacional dos manuais da ESG” (p. 162). Ideologia que, despida da retórica militar e proprietarista aglutinada naquela escola, é apanhada na análise tragtenberguiana como o conservadorismo, de fato, “da insegurança nacional”, basicamente “antipovo”.
“Um parresiasta no socialismo libertário”, de Edson PasseĴ i, afirma que M.T. teria dado a um de seus livros o título Socialismo (e não marxismo) heterodoxo (sic)3 (p. 165), alegando que o autodidata “sabia” ser a revolução “ato contínuo de reposição do soberano” (p. 167). Se o homenageado é estampado de “anarquista como Bakunin” (p. 170), dever-se-ia atentar com rigor às suas próprias palavras: “‘pelo que li em Bakunin é que sua herança é ambígua. Ela pode tanto ser interpretada no sentido libertário, como também tem muitos aspectos negativos, no sentido do vanguardismo de alguns pós-marxistas’” (p. 143). Além disso, ao abrir as portas à descaracterização de parte fundamental da obra tragtenberguiana, com uma renitente repetição da falta de teoria política do marxismo “notada” por M.T., suposta e igualmente “ciente” de que eventual “preenchimento” reporia o soberano em nome do proletariado, veda-se acesso ao fato de que “a grande novidade da Comuna de Paris – vista por Marx – era ser um poder político em extinção, escreve Tragtenberg” (SILVA, 2008, p.220). Já que não se trata de “delegar a uma ditadura, no sentido tradicional do termo, a transferência da práxis política e social do proletariado” (TRAGTENBERG, 1983, p.285), apostava M.T. em “um processo revolucionário que desenvolveria uma socialização do poder, da existência e do trabalho” (TRAGTENBERG, 1983, p.281), caminhando, pois, nas trilhas (heterodoxas) de Marx e tomando a Comuna como o anti-Estado, necessariamente, para além do salariato e da sociabilidade (e politicidade) do capital.
“Um convite: pensar é resistir”, de Flávia Schilling e Cintya Ribeiro, mencionando apenas a crítica tragtenberguiana “tanto aos macro como aos micropoderes” (p. 179), não obstante a sincera homenagem, optou por uma justaposição, “inventando um Maurício Foucault e um Michel Tragtenberg” (p. 176), tendendo a um maior acento no pensamento do francês, entretanto.
Enfim, “Maurício Tragtenberg como um autor complexo”, de Gustavo Gutierrez, “procurando ser fiel ao que seus textos dizem” (p. 189), aduz que o desvelamento tragtenberguiano da burocracia fundamenta-se em “uma análise social marcada pelo processo de exploração de classes que caracteriza o modo de produção capitalista através da apropriação da mais-valia” (p. 193). Donde se afigura arguta observação sobre o marxismo heterodoxo de M.T. “Ontem, a palavra-chave era heterodoxo, talvez hoje a palavra-chave seja marxismo” (p. 189).
Por tudo isso que há de atual e por aquilo que ainda haverá de ser (re)descoberto, divulgado, debatido e aclarado (sem sectarismos extemporâneos) com a corrente e fundamental publicação da totalidade da obra de M.T. — unidade em relação a qual a coletânea 10 anos de encantamento deve ser situada enquanto expressão contemporânea do estágio de seu entendimento e aproximação —, eis a urgência do resgate da crítica social tragtenberguiana. Crítica de vital importância e contribuição para a retomada do hoje rebaixadíssimo debate ideológico nacional, a fim de que melhor se compreendam os móveis históricos das lutas populares e de seus antagonistas estruturais, as classes proprietárias e o Estado de direito do capital, sempre municiados dos mais variados tipos de violência institucional e socioeconômica, ao seu dispor.
Enfim, tendo M.T. basicamente estudado o passado por estar preocupado com o futuro, convencido de que o presente também é história (i.e., o passado é presente), acreditamos, com Ediógenes, que “a melhor homenagem que podemos prestar é divulgar seu pensamento, adotando seus livros e escritos para leitura e discussão de aula” (p. 207). Conscientes, portanto, de que a luta social, em sua potente pedagogia de esclarecimentos, é a grande educadora, relembrando- -nos urgentemente M.T. de “uma lei geral dos movimentos sociais: toda vez que a base abandona o espaço, a burocracia ocupa seu lugar” (TRAGTENBERG, 1981b, p.4).
Mãos à obra!
Notas
1 Passaremos a referenciar Maurício Tragtenberg pelas iniciais de seu nome (M.T.).
2 Adiante, referenciaremos o autor do respectivo capítulo pela abreviação A. (Autor).
3 Cf. TRAGTENBERG, 1981a.
Referências
TRAGTENBERG, M. Memórias de um autodidata no Brasil. São Paulo: Editora Escuta, 1999.
TRAGTENBERG, M. A delinquência acadêmica: o poder sem saber e o saber sem poder. São Paulo: Editora Rumo, 1979.
TRAGTENBERG, M. (Org.). Marxismo heterodoxo. São Paulo: Brasiliense, 1981a.
TRAGTENBERG, M. Editorial: Educação e Política. Educação & Sociedade, v.4, n.10, p.4, set. 1981b.
TRAGTENBERG, M. Marx/Bakunin. Nova Escrita Ensaio, v.5, n.11-12, p.279- 299, 1983.
SILVA, A. O. da. Maurício Tragtenberg: militância e pedagogia libertária. Ijuí: Ed. Unijuí, 2008.
Rodolfo Costa Machado – Mestrando em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, SP – Brasil. E-mail: rod.cmachado@gmail.com
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