Maternidades plurais: os diferentes relatos, aventuras e oceanos das mães cientistas na pandemia | Ana Carolina Eiras Coelho Soares, Camilla de Almeida Santos Cidade e Vanessa Clemente Cardoso

Não há como uma pesquisadora e mãe ler 824 páginas compostas por 134 relatos de outras mães e pesquisadoras sem criar uma conexão autoral e afetiva. Em alguns momentos era como se estivesse lendo a minha própria experiência como mãe e pesquisadora tendo que escolher entre o Lattes e o leite1, a maternidade2 e a ciência. Uma escrita afetiva que demonstra o poder feminista e coletivo de transformar o patriarcado com seus estatutos e normas violadores e a beleza de nossas lutas para reexistir como mães e cientistas que precisam mais do que um teto todo seu (WOOLF, V. 1929). Mas de ocupar todo o mundo!

E precisamos travar batalhas, pois, muitas de nós, mesmo as “estabelecidas” no mundo acadêmico e profissional, ainda precisam viver como se entre mundos, tendo que conciliar, escolher, desafiar, revirar, reclamar. Fazer dos lutos a substância das lutas, como disse na apresentação ao livro Marinete da Silva, mãe de Marielle Franco e manifestar a presença de nossas grafias de mulheres, sobre mulheres, sobretudo para mulheres, como prefaciou Manuela D´avila, mesmo que às mães os dias pareçam se escassear de tempo, mas não de exaustão e de cansaços.

Assim, as autoras do livro inquirem (vãs) ciências, marcadas de Homem e de Branco (HARAWAY, D., 1995) que, como o mundo do trabalho, duvidam de nós: vai dar conta de produzir e educar uma criança? Com quem vai ficar seu filho? E quando ele ficar doente? Perguntas de uma sociedade cujo estatuto capitalista patriarcal nos coloca a primazia do cuidado e das multitarefas, corpos geradores da mais-valia, trabalhadoras do amor sem remuneração (FEDERICI, S., 2019). Lutamos contra a localização de nossos corpos como parte da divisão sexual que nos define e imprimi suas exigências às nossas vidas, castrando nossas escolhas, desejos e afetos, tornando nossas irmãs mais vulneráveis. Por isso, em muitos relatos, apontamos o quão profundo é o fosso das desigualdades nesse país e o quanto, apesar de tudo, nós mães cientistas, mesmo sem remuneração, temos direitos que todas as pessoas deveriam ter, apesar dos não-ditos que nos interpelam.

Por isso, apresentamos3 nessa obra as contradições e relações entre nossos seres mulher, mãe e trabalhadora produtiva não apenas durante a pandemia, mas como parte dos processos de subjetividade política que construímos através das lutas que temos travado para continuar sendo professoras, cientistas, pesquisadoras, gestoras, estudantes. Afirmamos que se estamos sobrecarregadas e se esperam que executemos perfeição em detrimento à nossa saúde mental, não glorificaremos nosso cansaço, mesmo em busca de atualizar nosso Lattes, não queremos ser guerreiras.

E Março de 2020 chegou…

Irrompeu em muitas de nós um novo puerpério, adentrando nossas casas com a força de um parto que traz pouco sono, isolamento, aprender a aprender, procurar motivos para o choro que não cessa (o do bebê ou o nosso?). Nenhuma teoria nos prepara para tamanho desafio de viver online 24 horas sem saber o que é banho sem pressa, comer degustando, descansar sem acordar assustada, sangrar, vazar leite, gritar, hormônios em ebulição, chorar, amar, nos perder, temer, bebê quer mamar trinta vezes por dia, cansar sem cair… E nenhuma teoria nos preparou para sentirmos de novo tudo isso, isoladas mais uma vez em casa, mesmo que em meio ao caos e ao medo também tenha existido poesia, música, arte, desenhos, fotografias, brigadeiro, festa, conexão.

E por isso a importância teórica e política desse livro! 134 relatos autobiográficos, mas que conversam com muitas outras realidades maternas cientistas pandêmicas! Mãeeeeeeeeeeeeee, barulho, obra, vizinho e cachorro, aula síncrona, mais uma reunião, mãe tô com fome, mãe o braço do boneco saiu, mãe, vai trabalhar de novo? Filho: espera! a internet caiu, vocês me escutam? Mãe, olha! Aprendi a letra D, de Dante! Andou?! Comeu verdura pela primeira vez sem cuspir, aprenderam novas habilidades sem nossa presença, voltadas para dentro de nós mesmas e de nossas telas, admiramos essas belezinhas que fizemos enquanto catamos os brinquedos e vemos a educação positiva ficar nos livros… Cuidado em meio ao medo, ao horror de assistir paralisadas notícias de 3000 mortes diárias, cadê a vacina? Ufa! Acabei o texto, o filho dormiu, vou descansar…A louça está na pia! Queremos pausa…

Pausamos a força e ainda queremos aquele tempo que nos ensinou a academia: silêncio, concentração, pesquisadora full time e assim nos frustramos com os artigos geniais que não serão escritos [eu, prefiro dormir…]… Choramos, mais uma vez, temos 500 páginas para ler, bancas, orientações, trabalhos finais, escrever artigos, assistir lives e conteúdos e trocar idéias com as amigas, cadê as pessoas, vamos abrir um meet? Olhamos a janela, o silêncio lá fora, o horror, e dentro de nós, desejamos o silêncio capaz de nos permitir produzir com excelência. Silêncio, a casa dormiu, vamos escrever…

Ora, silêncio não é bom quando se tem crianças, o quê os silêncios que nos formaram cientistas nos falaram durante a pandemia? Com quais deles precisamos romper? Nessa obra rompemos com o da sociedade adultocentrada que exige de nossas crianças viver sem infância, logo, sem ruídos, sem vida, sem movimento. Nós mães já não sabíamos, em meio a muitos nãos, como a vida é uma programação desordenada, com interstícios, interrupções? Como nós aprendemos novas habilidades naqueles 40 dias de puerpério! Esqueceram? E como, mais uma vez, precisamos aprender nesses novos intensos dias quando temos que conciliar tantos sentimentos, protocolos, risco, exposição, rotinas, “home”, “office”. E o temor e a luta também.

Quando as autoras escreveram esse livro estávamos com cerca de 100 dias de pandemia. Hoje, quando eu escrevo já estamos chegando aos seus 600 dias. Mais de 543 mil vidas perdidas, vacinação que não acelera, vírus em mutação, a maioria da classe trabalhadora no presencial e a sua própria má sorte. A pandemia evidenciou as estruturas de desigualdades raciais, sociais, econômicas, laborais, de gênero, regionais e suas contradições e como continuam estruturando a sociedade brasileira. E impactando sobremaneira à vida das mulheres, as tornando mais vulneráveis e desiguais. Rompemos assim com mais esse silêncio!

Por isso nosso horror, pois, mesmo que o cuidado tenha se mostrado tão necessário em tempos de isolamento social segue ausente não apenas das políticas públicas dos governos, mas do nosso vocábulo social. Sabemos que cuidar tem historicamente sido verbo conjugado apenas e solitariamente pelas mulheres. É preciso torná-lo uma ação coletiva e plural quando todes sejam cuidadores não apenas em tempos de crise, como a que vivemos, mas como estatuto de nossa humanidade.

Assim, muitas de nós, nesse livro e alhures, rompemos os silêncios que nos colocaram e nos organizamos para publicar, participar e continuar nossos Lattes4 trazendo a marcação da política feminista envolta dos nossos cotidianos de pesquisa, pandemônios, cozinha, crias, rotina, escola, virtual, trabalho, cuidado 24 horas, solidão, exaustão. Para além de etiquetas e caixas que definem, privilegiamos intempéries e o quão aprendemos a planejar dificuldades e executar tarefas como é possível, pois sabemos que no meio do caminho, o inesperado acontece: braço quebrado, febre, virose, mudança de fase, pico de desenvolvimento, desmame, desfralde ou apenas mais um grito: mãeeeeeeeeeeeeeee. As madrugadas voltaram a ser nossas amigas e a exaustão nossa carne. “Vai dar certo!”

Mas, logo nos impacientamos, cozinhando e participando de um evento, ao ouvir homens e quem não têm filho ou não cuida deles, o quão maravilhoso tem sido o isolamento. Como produzimos! Quem? E nós? Todas as mulheres desse livro produziram, e produzem, mas o fazem a partir de possibilidades diferenciadas pelos marcadores sociais da diferença presentes na maternidade e no cuidado, mesmo quando compartilhados, o que tornamos central nessa obra.

E ela não se divide em capítulos que estruturam um argumento para explicar o problema inicial. Será? Cada autoria que fia em forma de relato suas experiências se alinha como/entre conexões e mesmo que não tenham o mesmo sinal, passam a mesma mensagem: nossas maternidades são plurais e precisam ser ouvidas. E as autoras trazem essa narrativa educativa – como mães e trabalhadoras – através de um diálogo em simetria, de construção coletiva para defender suas maternidades, mas por espaços de formação que acolham as diversidades e as particularidades que somos! Por isso, seus diários de um cotidiano maternal, científico, pandêmico, são discussões conceituais sobre problemas sociais, colocados pela intimidade que nos toca, nos fura e nos conecta como mães. Narrativas de tempos pretéritos de vivências como pesquisadoras e mães e de desejos para um futuro de cidadania e de direitos. Ditos de potência empírica e teórica, urgentes!

É uma obra rizoma construída por maternidades e por ciências que multipliquem e não dividam. Atravessada por novos devires que desejam ora classificar pra explicar conceitos e ora provocar as verdades que paralisam pensamentos. As autoras, assim, fizeram narrativas fissuradas por agenciamentos entre corpos e mentes, afetos e escritos. Mas que epistemologicamente provocam repensar as construções ontológicas que distribuíram seres e coisas como unidade natural e que alocaram os sujeitos como expressões de um referente ausente, de um desejo faltante. Tudo que essa obra não é. Ela é a pluralidade de pensamentos que se expandem como as crianças que estão também nela, não como representação de uma realidade de constância, mas como não maquinário, não prescrição, linhas de fuga desse lugar-comum que nos territorializa. Com elas, nos recompomos e compomos, assim, esse livro, como acontecimentos desterritorializados, cientistas e mães, suas crias, uma pandemia5.

Por isso, nos avolumamos nesse texto, mas na rua e nas redes, na ciência e na vida, como águas que crescem quando se encontram e se irmanam e se enredam como nós, nomeadas, escritoras, na escrita, na história, colocando para fora nossas opressões, desejos, afetos, falando de nós mesmas, sobre nós, em bando, sem amarras, mas com ABNT, irrompemos nossas ciências, refazemos nossas exigências, rompemos com interditos, volumosas, arrebatadoras e brutas ainda assim, serenas, seguindo os cursos, os decursos, encontrando-nos com outras, cursos, nascentes, encontros, livros, publicações, seleções ganhas, mulheres, mães e cientistas, sem representações!

“Vai dar certo!”

Metade da humanidade somos nós e a outra nossos filhos. Somos muitas para continuarmos sendo excluídas, silenciadas, retiradas dos espaços de poder, de decisão, de participação, se precisamos ainda de isolamento social, recusamos o isolamento político e acadêmico, sermos tornadas paredes do doméstico privado do patriarcado. Não seremos mais submetidas a qualificações para publicar, amamentar, socializar, nos dedicar aos filhos, irmos a congressos como se fossemos descarnadas de quem nós encarnamos. Seremos cientistas e mães segundo nossas individualidades e diversidades, somos plurais, nossas maternidades também são.

Desejamos que essa obra que narra as marés de nosso oceano toque cada leitora. Elas vieram do espaço da domesticidade, em pandemia, mas rompem com a ideia de que ser mãe é “padecer no paraíso”. Afirmamos em ondas, nossas maternidades como ato político, parte da vida da espécie e lugar social público. Cotidiano, político, feminista, cientista. Se um espaço não aceita uma criança, também não aceita a mãe, logo, precisamos repovoar as ciências, a academia, as universidades! Portanto, nesse livro, ao colocar o privado como espaço de poder e de política, dizemos a nossas ciências e também a sociedade: não mais silenciarão às mulheres! E se as mães continuam a ser ouvidas sem empatia, com julgamentos e palpites, continuaremos falando sobre as dores e as delícias de ser quem somos: cidadãs, mulheres, mães, cientistas, plurais, enredadas, que desejam silêncio sem silenciamentos, enteladas, conectadas, afetadas, já vou filho…

Notas

1 Aqui faço referência à exposição que fiz curadoria juntamente com Olívia de Melo Fonseca, Barbara Breder Machado e Dulcinea Duarte de Medeiros – “Entre o Lattes e o Leite: Maternidade Real” – na página de nosso coletivo Poiesis Alquimia Feminista (@poiesisalquimia) que reúne mães cientistas.

2 Há uma discussão conceitual sobre as categorias de maternagem e maternidade nos debates feministas que não é tratado no livro como aporte teórico central, mas que se fazem presente em alguns de seus relatos.

3 Escrevo em primeira pessoa do singular e do plural como autora afetiva desse nós mesmas que somos, mães e cientistas.

4 Por conta dos impactos da pandemia nos contextos laborais de mulheres, avolumaram-se pesquisas de metodologia survey e publicações sobre a temática. Assim como a organização de coletivos de mães cientistas pelas redes sociais e fora delas. O coletivo Parent in Science tem se dedicado a levantar dados sobre as realidades parentais na ciência e a pautar políticas públicas e universitárias para as mães. Uma dessas conquistas se deu em abril desse ano quando a plataforma Lattes liberou o cadastro das licenças-maternidades. O coletivo também realizou uma pesquisa com cerca de 15 mil cientistas (discentes, pós-doutorandos e docentes) sobre o impacto da pandemia em suas produtividades. Cf. STANISCUASKI F. et al. Impact of COVID-19 on academic mothers Science (368), 2020a, Issue 6492, pp. 724, [DOI: 10.1126/science.abc2740]. Recentemente liberou dados da pesquisa “Mulheres e maternidade no ensino superior no Brasil”, 2021.

5 Esse parágrafo está referenciado pela teoria das multiplicidades e o conceito de devires e desterritorialização de Deleuze e Guatari. Cf. DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. vol. 4. São Paulo: Ed. 54, 1997.


Referências

WOOLF, V. Um teto todo seu. São Paulo: Círculo do livro, 1929.

HARAWAY, D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, n. 5, p. 07-41, 1995.

FEDERICI, S. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. Trad. Coletivo Sycorax. São Paulo: editora Elefante, 2019.

Resenhista

Tatiane dos Santos Duarte – Doutora em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (UnB). Pesquisadora colaboradora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher/Nepem do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares/CEAM da Universidade de Brasília/UnB. Engravidei no final do doutorado, fiz concomitantemente tese e gestei gente, pari Dante em setembro de 2017, apenas em fevereiro de 2018 obtive da universidade o direito a licença maternidade. Defendi a tese em agosto de 2018, com um bebê de 11 meses. Dante fará em breve quatro anos e eu sigo em busca de um trabalho remunerado como pesquisadora. E-mail: tatiane.duarte@unb.br  ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0532-6790


Referências desta Resenha

SOARES, Ana Carolina Eiras Coelho; CIDADE, Camilla de Almeida Santos; CARDOSO, Vanessa Clemente. Maternidades plurais: os diferentes relatos, aventuras e oceanos das mães cientistas na pandemia. Belford Roxo: Bindi Acadêmico, 2020. Resenha de: DUARTE, Tatiane dos Santos. Maternidades, sempre plurais e políticas. Projeto História. São Paulo, v. 72, p. 390-396, set/dez. 2021. Acessar publicação original [DR]

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