Marxismo na América Latina | Escrita da História | 2019
As ideias de Marx e Engels chegam à América Latina no final do século XIX. Além da influência dos escritos de diversos autores marxistas europeus no pensamento latino-americano, verificou-se sua intensa presença na militância política e na formação de interpretações que consideram as particularidades de um subcontinente extremamente diverso com formações econômicas e culturais distintas. De forma que podemos dizer que a influência do marxismo veio a formar um marxismo latino-americano, onde pensadores de grande envergadura repensam a obra de Marx e a aplicam em sua realidade concreta. É inegável, mesmo aos que discordam de sua teoria, o papel de Marx na configuração da geopolítica do continente americano, destacando-se o emblemático caso da Revolução Cubana. Em um momento em que a América Latina passa por experiências políticas intensas, em que tanto se debate sobre esquerda e direita, e governos ascendem e caem em nome do conservadorismo ou das promessas de justiça social, é necessário revisitar o marxismo em suas particularidades, esclarecendo e ampliando-o. É com essa perspectiva que a Revista Escrita da História publica seu 12º Dossiê: Marxismo na América Latina.
Abrimos a edição com uma nova seção na Revista, destinada a homenagear intelectuais de grande gravidade para as ciências humanas. A homenageada nesta edição é Lívia Cotrim, intelectual e militante marxista falecida em agosto de 2019. Docente da PUC ʹ SP e da Fundação Santo André ʹ faculdade que se destacou por, historicamente atender trabalhadores e seus filhos na região do ABC paulista ʹ Lívia era uma defensora árdua da Universidade Pública e professora inesquecível para seus alunos, grupo do qual tenho orgulho em fazer parte. Além de sua produção teórica ʹ suas pesquisas sobre individualidade, política, estética, humanismo e, mais recentemente, a obra de Engels; tradução, organização e comentários na edição brasileira de “A Nova Gazeta Renana” de Marx ʹ suas aulas sobre marxismo eram de uma profundidade e erudição impressionantes, não deixando de ser acessíveis aos mais diversos tipos de estudantes que compunham as turmas de cerca de 70 alunos nos meus tempos de Fundação. Além de sua marca como intelectual e professora comprometida, Lívia também marcou gerações de estudantes por sua generosidade em esclarecer as mais diversas dúvidas sob inúmeros contextos, formar grupos de estudos com os discentes ou mesmo chegar antes de seu horário de aula para conversas despretensiosas sobre nossa pesquisa científica. Despertando sonhos e formando lutadores, Lívia Cotrim segue viva no legado que deixou, seja por sua produção intelectual, seja pela formação sólida de seus estudantes.
A homenagem, além destas breves palavras, é compreendida pelo texto Destruidora de ilusões burguesas: uma homenagem à nossa mãe, escrito por suas filhas, as professoras Ana e Vera Cotrim. Em seguida, e já em diálogo com o tema do Dossiê, trazemos um texto da própria Lívia Cotrim que tem como título J. Chasin ʹ Metapolítica e Emancipação Humana Geral, no qual a autora destaca as descobertas de José Chasin, intelectual ímpar para o marxismo latino-americano e mundial, dadas suas contribuições inéditas sobre a obra marxiana e sobre a realidade contemporânea. Neste artigo, Lívia Cotrim ressalta a necessidade, afirmada por Chasin, de combater o marxismo vulgar pela redescoberta de Marx. Através da análise imanente das obras marxianas e das indicações de Lukács, Chasin propõe o reconhecimento do caráter ontológico do pensamento marxiano e a necessidade de se combater as visões “gnosio-epistemológicos” e “politicistas” sobre o pensamento de Marx. Lívia Cotrim nos mostra que, partindo da ontologia lukáchiana, Chasin vai além e reconhece em Marx a determinação ontonegativa da politicidade e a autodeterminação dos indivíduos como única forma de alcançarmos a real emancipação humana.
Continuando o debate sobre o Marxismo latino-americano, o primeiro artigo do Dossiê, escrito por Aruâ Silva Lima, A Internacional Comunista entre Argentina e México: exemplos de descompassos entre a Revolução Mundial e a classe trabalhadora (1917-1924), resgata as primeiras tentativas da Internacional Comunista de estabelecer ligações na América Latina, através dos PCs mexicano e argentino. Em um tempo em que o debate acerca da Revolução Mundial era ordem do dia, o autor nos mostra que nem sempre os objetivos do Comintern eram os mesmos dos trabalhadores que pretendiam representar nos países citados e não necessariamente os representantes da URSS estavam em acordo com os propalados objetivos da Internacional. Ainda, Lima traz o interessante apontamento de que, apesar da Revolução Mundial ser a pauta oficial soviética, o princípio da livre determinação dos povos absorvido pela IC levava a possibilidade da utilização da pauta nacionalista sob um argumento internacionalista.
Vinícius de Oliveira Juberte, em seu texto O design como expressão da luta política: o caso da Editorial Calvino Limitada, expõe a relação entre política e design a partir da análise das capas dos livros da Editorial Calvino Limitada, editora que esteve a serviço do PCB nos anos 1940, durante a Segunda Guerra Mundial. Juberte assinala que, uma vez tomadas por Lênin como importantes formas de organização política, a literatura e a arte passaram por diversas abordagens no interior do Movimento Comunista. A Cultura Proletária e o Realismo Socialista não deixaram de influenciar os adeptos do comunismo pelo mundo, como foi o caso da Editorial Calvino, interessada em divulgar o marxismo de vertente soviética e os feitos da URSS no Brasil. Tomando o livro como meio de difusão de ideias, o autor não deixa de assinalar, no entanto, certa autonomia do design brasileiro em relação ao PCUS.
No artigo O Marxismo e o debate sobre os modos de produção no Brasil: uma revisão da literatura, Luccas Bernacchio Gissoni retoma o debate que marcou o marxismo da América Latina sobre os modos de produção existentes no Brasil. Percorre, desde a querela entre feudalismo ʹcujo grande representante fora o Partido Comunista Brasileiro nas letras de Alberto Passos Guimarães e Luiz Werneck Sodré, mas também advogado por Mariátegui e Ernesto Laclau ʹ e Capitalismo ʹ representado por Caio Prado Jr, Fernando Novais, Sérgio Bagu e André Gunder Frank ʹ e suas diversas ramificações, passando pelas teses dualistas da CEPAL, pela Teoria da Dependência de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Falleto até chegar à teoria do Escravismo de Ciro Flamarion e Jacob Gorender. Perpassado este produtivo debate, Gissoni ressalta a importância e a singularidade das reflexões latino-americanas que superam a equivocada e conservadora afirmação de que o subdesenvolvimento é mera etapa ao desenvolvimento.
Lineker Noberto, resgata parte da história da esquerda no Brasil através da trajetória da Liga Socialista Independente em Uma Rosa vermelha no jardim político brasileiro: a Liga Socialista Independente entre o Luxemburguismo e o Trotskismo. Organização política composta por antistalinistas e dissidentes trotskistas, a Liga reuniu jovens que iriam se tornar destacados intelectuais marxistas ʹ como Hermínio Sacchetta, Moniz Bandeira , Alberto Luiz da Rocha Barros , Maurício Tragtenberg, Paul Singer, Michael Lowy, Gabriel Cohn, Eder e Emir Sader, entre outros ʹ sob a bandeira luxemburguista. Fazendo oposição, principalmente, às ideias do PCB, esta pequena organização se posicionava contra a união entre trabalhadores e burguesia brasileira, aderindo à tese de Revolução Permanente desenvolvida por Trotsky.
O artigo La Gestión de las Industrias en el Ministerio de Ernesto Guevara: Caracterización del Sistema Presupuestario de Financiamiento, escrito por Ramon Rodrigues Ramalho, levanta a contribuição de Che Guevara para além da figura de guerrilheiro, refletindo sobre sua contribuição como intelectual e Ministro da Indústria em Cuba. O autor destaca que, neste posto, Che desenvolveu inovadora forma de administração empresarial, essencialmente diferente da aplicada na URSS. Através deste sistema, Che aclara sua concepção sobre a forma como se deve desenrolar o socialismo, refletindo sobre qual a posição do Estado na administração pública e propondo maior descentralização das decisões político-econômicas. Ao valorizar a autogestão, Che encosta em um ponto chave na discussão sobre a planificação, a saber, o combate à burocracia estatal. Ramalho teoriza ainda que esta concepção do revolucionário argentino, no quesito organização da produção, estava à frente do seu tempo, podendo ser comparada a elementos do Toyotismo que surgiria anos depois.
Por fim, Henrique de Bem Lignani contribui com o artigo Teoria Marxista da Dependência e trotskismo: a crítica ao dualismo estrutural e ao caráter democrático burguês da revolução brasileira, no qual mostra a relação entre a Teoria Marxista da Dependência (TMD)- desenvolvida vipor Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos e Vânia Bambirra- e o trotiskismo. Partindo das teorias de Trotsky sobre o Desenvolvimento Desigual e Combinado e Revolução Permanente, que permitem a Trotsky afirmar a existência de uma dinâmica própria do desenvolvimento capitalista nos países atrasados, Lignani reforça as importantes contribuições dos teóricos da TMD na busca pela forma particular que o capitalismo se desenvolve no Brasil. A partir disso, Lignani expõe as concepções da TMD de que o Capitalismo Dependente é um modo de produção diferente dos clássicos arrolados por Marx, onde as leis tendenciais capitalistas teriam uma especificidade própria da periferia. Entendendo que esta dependência externa gera características na dinâmica interna dos países dependentes, Lignani nos chama atenção para características marcantes de nossa formação histórica, como a superexploração da força de trabalho e a transferência de valor como intercâmbio desigual.
Esta edição também traz uma seção de artigos livres. O primeiro deles é Educação e Revolução: a Cruzada Nacional de Alfabetização na Nicarágua (1980) escrito por Túlio Almeida de Ázara e Roger dos Anjos de Sá. Com a Revolução Sandinista, ocorrida em meio à Guerra Fria, a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) depôs o governo de Somoza após 40 anos de ditadura. A nação nicaraguense experimentou, a partir de então, uma reconfiguração política e econômica em prol dos interesses nacionais. Em um país no qual o analfabetismo atingia 50% da população, a FSLN promoveu a Cruzada Nacional de Educação ao enxergar a educação como instrumento para a construção e manutenção da consciência política e da hegemonia popular. Os autores discorrem sobre essa formidável experiência humana e revolucionária, apresentando o projeto ideológico e educacional da FSLN, bem como seus resultados e consequências. Entre elas, podemos destacar a utilização da metodologia de Paulo Freire e a redução da taxa de analfabetismo para 12,9% da população em apenas cinco meses.
Ainda no espectro da esquerda, Janis Caroline Boiko da Rosa nos apresenta o artigo Homage to Catalonia: a narrativa testemunhal da Guerra Civil Espanhola por George Orwell. Sua pesquisa sobre o relato memorialístico de Georg Orwell é circunscrita ao livro Homenagem à Catalunha ou Lutando na Espanha (na versão em português), onde Orwell narra suas experiências como miliciano voluntário no Partido Obreiro de Unificação Marxista (POUM). Orwell, que ficou mais conhecido por suas críticas severas a União Soviética presente nos livros A Revolução dos Bichos e 1984, publica o livro em questão em 1938 na Inglaterra, com a intenção de apresentar a perspectiva do POUM, injustamente disseminada pela imprensa mundial e pelos próprios comunistas aliados à URSS. O autor chama a atenção para o fato de que a Guerra Civil espanhola não era apenas uma luta antifascista, mas uma “guerra civil dentro da guerra civil”, dadas as especificidades dos componentes e dissidentes da Frente Popular. Mesmo por isso, os dissidentes foram perseguidos- como foi o caso de Orwell- e a Revolução sufocada pela própria URSS que então adotava a postura de Frente Popular. Boiko da Rosa nos mostra como o relato do autor é permeado por intensa paixão de quem viveu os desafios e dificuldades do pós-Revolução, mas também seus potenciais e promessas. O envolvimento do autor também é explicação para as intensões de seu relato: reagir às injustiças cometidas contra seus companheiros caídos e contribuir para a sua justa memória de um momento único de camaradagem e decência. Não à toa que a experiência de George Orwell no front irá moldar não somente sua literatura, mas a sua posição política como “não-soviética, revolucionária e fraternal”.
A seção livre traz ainda dois artigos cuja temática comum é educação. No primeiro deles, Gabriel Abreu Gonçalves Paiva, em Movimento Escola Sem Partido (MESP) no Brasil: uma breve contextualização a partir das elaborações teóricas de Gramsci nos traz sua pesquisa sobre o conservadorismo em ascensão no Brasil, especificamente em seu aspecto educacional. Afirmando que discursos de neutralidade no projeto educacional brasileiro como as do projeto de lei “Escola sem partido” são, na verdade, tentativas de imposição de interesses reacionários de parte da sociedade brasileira como naturais e de interesse coletivo, o autor analisa as posições de um dos principais grupos que a defendem, o Movimento Escola Sem Partido. A partir do referencial gramsciano de hegemonia, Paiva afirma que agrupamentos como este devem ser lidos como aparelhos privados de hegemonia, ou seja, grupos da classe dominante que, na esfera da sociedade civil, trabalham para promover o consenso e a consequente subordinação da população, contribuindo para a manutenção do poder da classe burguesa. Ficaram notórias no Brasil, nos últimos anos, diversos episódios atrelados a tal Movimento, de tentativa de criminalização do trabalho docente e culpabilização do professor pelo fracasso escolar o que, na perspectiva do artigo devem ser inseridos neste contexto maior de ataque a democracia, ao espaço público e ao avanço das pautas progressistas.
O texto Rap-sando a educação: o movimento hip hop nas práticas pedagógicas para implementação da cultura étnico-racial de Janaina de Jesus Lopes Santana e Angela Maria de Souza se baseia em pesquisa realizada com estudantes de uma escola pública em Foz do Iguaçu em torno da Lei 10.639/03 que dispõe sobre a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira em escolas públicas e particulares. A partir de oficinas aplicadas a estudantes do 7° e 8° anos, as autoras refletem sobre a importância de se utilizarem práticas culturais dos próprios estudantes para a conscientização e o debate em torno de questões étnico-raciais. Desta forma, Santana e Souza propõem a utilização do Rap como instrumento pedagógico de interação com os estudantes, uma vez que este estilo musical aborda justamente questões vivenciadas pela juventude brasileira, como a violência e a exclusão social da população negra. O Rap seria, nesta visão, mais que música, uma produção intelectual politizada e instrumento de reflexão social crítica.
Integrando ainda a seção livre, “A luz do Dalai Lama brilhará no Ocidente”: análises das aproximações feitas pelo 14° Dalai Lama com a ciência, escrito por Leonardo Henrique Luiz. Em seu texto, Luiz nos apresenta as mudanças sofridas pelo budismo tibetano após a invasão chinesa ao Tibet e o consequente exílio do 14º Dalai Lama. Com o distanciamento de seu país e percebendo um Tibet cada vez mais globalizado, o Dalai Lama, que, além de líder religioso, é também líder político, passa a dialogar com a ciência em suas reflexões. A partir de então, ocorre uma penetração cada vez maior dos ideais budistas no mundo ocidental. O autor, portanto, faz a interessante reflexão sobre os motivos que levariam este fenômeno a acontecer: em mundo encharcado de modernidade e consumismo, muitas vezes os indivíduos não encontram nestes parâmetros uma “conduta ética positiva”, ou seja, o Ocidente e seu discurso cientificista acabam por negligenciar o desenvolvimento interior e não apresentar respostas para questões existenciais. O budismo se encaixaria nesta lacuna, flertando com os livros de autoajuda, uma vez que 14º Dalai Lama oferece a possibilidade do “caminho do meio”, ou seja, a aceitação de que a ciência é tão importante quanto o desenvolvimento espiritual.
Por fim, Poder disciplinar na penitenciária modelo de Aracaju (1926) de Wagner Santos, aborda, sob a perspectiva de Michael Focault, a vigência do poder disciplinar no início do século XX em uma prisão sergipana. A partir de um importante levantamento de fontes primárias, o autor adentra na discussão a respeito do disciplinamento e da resistência na sociedade em um de seus principais mecanismos de controle: a possibilidade de reclusão. Esta penitenciária, construída em 1926 para abrigar indivíduos considerados perigosos para a sociedade, tinha como foco a atuação do poder disciplinar, representado tanto em sua estrutura física quanto nas instituições que a constituíam, como escola, oficina de trabalho, capela e até o semilazer. No entanto, apesar dos detalhes desta estrutura pensada como objetivo da “docilidade dos corpos”, ela também gerava indisciplina, rebeldia e manifestações por parte dos detentos.
Creio que o retorno aos autores marxistas latino-americanos seja uma necessidade premente diante da atual conjuntura, em que as mais absurdas divagações são propaladas por parte do conservadorismo no poder. Acredito também que a ausência de um debate rigoroso destes mesmos autores no interior do campo progressista nos levou a cometer equívocos práticos irrecuperáveis e nos leva a nadar sem bússola em meio à tormenta. Mais do que para lutar contra estes que insistem em manter as chagas latino-americanas vivas, necessitamos do marxismo para entendermos o que somos e porque aqui chegamos. Só munidos do arsenal de consciência do que nos particulariza poderemos enfrentar o gigante universal que nos submete.
Boa leitura a todas e todos!
Organizadora
Valquíria Kelly Zanzarini Braga
Referências desta apresentação
BRAGA, Valquíria Kelly Zanzarini. Apresentação. Escrita da História, v.6, n.12, p.3-8, jul./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]
Historiografia crítica em revista: um balanço temático | Escrita da História | 2020
Historiografia crítica em revista: um balanço temático | Escrita da História | 2020, IACHTECHEN Fabio Luciano (Org d), Historiografia Crítica (d), Escrita da História (EHd)
Organizador
Fabio Luciano Iachtechen
Referências desta apresentação
IACHTECHEN, Fabio Luciano. Apresentação. Escrita da História, v.7, n.14, p.3-6, jul./dez. 2020. Acesso apenas pelo link original [DR]