Marx Selvagem | Jean Tible
A relação entre o pensamento marxiano e as cosmopolíticas indígenas ainda não foi suficientemente escrutinada nas ciências sociais ou na historiografia brasileiras por um conjunto de razões: primeiro, as sociedades indígenas não foram levadas a sério durante muito tempo; segundo, o alegado caráter eurocêntrico das análises de Marx. Por fim, cabe observar que o marxismo não é uma base teórica usualmente empregada pelos historiadores da “Nova História Indígena”.
Mas é justamente este diálogo improvável que encontramos no livro Marx Selvagem, de Jean Tible. Originalmente tese de doutorado, Marx Selvagem foi publicado pela primeira vez em 2011, conhecendo acolhida positiva. Em 2018 foi publicada a terceira edição do livro, revista e ampliada.
A proposta do livro é confrontar o pensamento de Marx com as “lutas ameríndias e uma certa antropologia” (p.27). Não se trata de uma questão puramente teórica, pois é fato inegável que a “expansão do capitalismo […] penetrou em todos os espaços do planeta, alcançando mesmo os povos indígenas” (p.28). Neste sentido, o diálogo foi informado pelas lutas geradas por este processo e pelo seu apreender teórico, fossem as teorias- lutas de Marx ou as cosmopolíticas indígenas. A compreensão deste apreender teve como ponto de partida metodológico o conceito de “simetria”, isto é, o estabelecimento de análises não eurocêntricas, a intenção de “trabalhar a partir das perspectivas nativas”, (p.40).
O argumento que é desenvolvido ao longo do livro é o de que no diálogo entre Marx e a América indígena articula-se “a crítica de duas formas de transcendência, do Estado (divisão entre o representante e o representado) e do capital (divisão entre o produtor e o produto)” (p.288). Se a crítica ao Estado e ao capital não é exatamente nova, o ponto importante aqui é que ela deve ser feita em bases não eurocêntricas. Isto demanda, em primeiro lugar, romper com o paradigma estatal, que naturaliza o Estado e que cria categorias analíticas e escalas classificatórias nas quais quanto mais próximas as sociedades estão do Estado, mais desenvolvidas elas são. Em segundo lugar, o diálogo também se torna possível e produtivo a partir do questionamento da separação do par natureza e cultura, o que possibilitaria pensar significados outros para a noção de “produção”.
O livro é divido em três capítulos. No primeiro, a partir de uma leitura meticulosa dos textos de Marx e Engels, Tible analisa como eles refletiram sobre os “outros”. Entre 1840 e 1860, eles pensaram os grupos não europeus ocidentais dentro de um arcabouço evolucionista de estágios de desenvolvimento das sociedades, classificando-os como “semi bárbaros”, “sem história” e carentes de civilização (p.55-58).
A partir de 1860, Marx e Engels se tornaram crescentemente críticos do colonialismo, e nos escritos deles a visão evolucionista e linear da História perde força. Neste sentido, é significativo que eles tenham abandonado a noção de “povos sem História” (p.66-69). Após a publicação de O Capital, Marx deixou de utilizar a noção de progresso e reconheceu a multiplicidade de desenvolvimentos históricos a partir de dois processos: o contato com as discussões teóricas acerca da comuna rural na Rússia (mir); o diálogo com os estudos feitos por antropólogos, especialmente Lewis Morgan. A análise de Tible certamente seria mais rica se tratasse da questão do evolucionismo na obra deste antropólogo, afinal, conforme Tible, ele foi central para Marx se afastar de posições eurocêntricas.
O segundo capítulo Marx e Clastres contra o Estado é certamente o melhor do livro. Tible demonstra não apenas que Marx e Clastres associaram o Estado ao capitalismo, mas também à recusa da alteridade e à homogeinização. A partir da leitura das obras de ambos autores, Tible argumenta que tanto Marx quanto Clastres desenvolveram uma visão anti estatal a partir de pontos de partida distintos. Na obra do revolucionário alemão, o Estado é analisado como uma universalidade que seria a mistificação da dominação de classe. De fato, o capitalismo não seria possível sem o Estado. Justamente por isso, a emancipação seria o autogoverno dos trabalhadores, um levante que também seria contra o Estado.
Como Marx, Clastres desenvolveu a sua visão antiestatal através da desnaturalização do Estado. Esta premissa foi central para que o antropólogo francês compreendesse as sociedades indígenas não como “sociedades sem Estado, mas contra o Estado” (p.160). Isto significa que os ameríndios desenvolveram meios de conjurar os perigos do desenvolvimento de desigualdades que resultassem na relação mando – obediência, própria ao Estado. Neste sentido, o profetismo seria um fenômeno de rejeição ao surgimento de chefias poderosas que poderiam resultar no surgimento do Estado; as chefias indígenas não teriam poder coercitivo e a onipresença da guerra impediria “a mudança social e o surgimento das desigualdades via dispersão dos diferentes grupos” (p.169).
Os dois primeiros capítulos do livro, portanto, desenvolvem o argumento de que Marx se afastou do eurocentrismo a partir de 1867 e que o antiestatismo permeou toda a sua obra. Assim, ao menos teoricamente, haveria possibilidades de um diálogo entre o revolucionário alemão e a América indígena.
Esta possibilidade é experimentada no terceiro capítulo, no qual a aproximação entre Marx e as sociedades indígenas é pensada através das lutas Yonomami e do perspectivismo ameríndio. Os termos desta aproximação não são óbvios. Num ensaio clássico, Eduardo Viveiros de Castro apontou a existência de duas “escolas” antropológicas em relação aos povos indígenas: a “clássica”, que se destacou pelo desenvolvimento do perspectivismo ameríndio; e a do contato, cuja principal preocupação seria o contato interétnico ou o “contexto” enquanto Estado ou a expansão do capitalismo. Viveiros de Castro criticou a escola do contato por ser pouco esclarecedora em relação aos povos indígenas, contrastando com a abordagem que ele e outros etnólogos “clássicos” teriam adotado. [1]
É provável que, ao menos em parte, Tible tenha concordado com as críticas de Viveiros de Castro à escola do contato, o que explicaria então a opção de dialogar mais de perto com os etnólogos informados pelo perspectivismo ameríndio. Contudo, as razões da escolha não são explicitadas no livro. Explicá-las certamente facilitaria ao leitor acompanhar os pontos de partida usados para a construção do argumento central da obra.
No terceiro capítulo são desenvolvidos três pontos de aproximação entre o pensamento marxiano e a América indígena. O primeiro são as formas contra o Estado desenvolvidos pela classe operária e grupos indígenas. Aquela desenvolveu a forma-comuna na Comuna de Paris; estes elaboraram a forma – confederação, e as Confederação dos Tamoios e dos Iroqueses são exemplos disto, e a forma -conselho, que pode ser vista nos conselhos desenvolvidos pelos Yonomamis na Venezuela.
O segundo elemento de aproximação é a crítica da economia política. Aqui, é o pensamento desenvolvido pelo líder Yonomami Davi Kopenawa que entra em cena e fica bem clara a sua potência crítica. Assim, os brancos seriam “o povo da mercadoria”, e justamente a mercadoria teria esfumaçado o seu pensamento (p.272). Na verdade, tudo seria conformado por ela, desde as leis, a escrita, a violência urbana e a desigualdade. O ponto de partida é de horror ao capitalismo e o contraste não poderia ser maior: “não temos pobres. Cada um pode usar terra, pode brocar roca, pode caçar, pescar” (p.274).
O terceiro ponto é o mais polêmico deles: o deslocamento do sentido da produção. A partir das contribuições dos autores do perspectivismo ameríndio, Tible argumenta que “produção” no conceitual indígena envolve a interação entre humanos e não humanos, e a predação teria um papel central aqui. Este trânsito entre humanos e não humanos coloca em questão a separação entre natureza e cultura.
Em uma tentativa de aproximação com o pensamento marxiano, Tible afirma que Marx teria desenvolvido “sua concepção da relação homem- mundo na qual o homem é imediatamente um ser do mundo e parte da natureza” (p.267). O homem faz parte da natureza e não produz nada sem ela, de maneira que a produção não o retira do reino dela, da natureza. Ainda assim, estamos distantes do conceitual indígena. Esta distância talvez indique que há limites para a aproximação entre Marx e as sociedades indígenas.
Um aspecto importante do livro foi usar a chamada etnologia “clássica” na confrontação com o pensamento de Marx. Em contraste, os historiadores da “Nova História Indígena” tem privilegiado o diálogo com a “escola do contato”, principalmente por causa das dificuldades que a primeira coloca ao historiador. Neste sentido, as contribuições de Marx Selvagem podem ajudar na avaliação de potencialidades da investigação histórica sobre sociedades indígenas a partir de um diálogo com a etnologia “clássica”.
Nota
1. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B. Etnologia brasileira. In: MICELLI, Sérgio. O que ler nas Ciências sociais (1970- 1995). v.1. São Paulo: Sumaré/ ANPOCS, 2002. p.109-223.
Referência
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B. Etnologia brasileira. In: MICELLI, Sérgio. O que ler nas Ciências sociais (1970- 1995). v.1. São Paulo: Sumaré/ ANPOCS, 2002. p.109-223.
Resenhista
Samuel Rocha Ferreira – Mestre em História Social Universidade Federal de São Paulo – USP. E-mail: samueellrochafe@hotmail.com
Referências desta resenha
TIBLE, Jean. Marx Selvagem. 3ed. São Paulo: Autonomia Literária, 2018. Resenha de: FERREIRA, Samuel Rocha. Temporalidades. Belo Horizonte, v.12, n.3, p.1016-1020, set./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]