MARKWALD Ricardo (Org), Obstáculos ao crescimento das exportações: Sugestões para uma Política Comercial (T), IPRI (E), ITABORAHY Felipe B. (Res), Meridiano (Mrr), Exportações, Política Comercial | Celso Lafer
No livro A Identidade Internacional do Brasil e a Política Externa Brasileira: passado presente e futuro Celso Lafer coloca que, em análise da política externa, a visão do país sobre o mundo em que vive e seu funcionamento deve ser considerada o ponto de partida do analista para que este compreenda com maior nitidez seu objeto de estudo. O autor discute no capítulo primeiro o significado de identidade internacional em um mundo globalizado. Grosso modo, a identidade é trabalhada em termos coletivos e lastreada na idéia de um bem ou interesse comum. Além disso, a identidade (inter)nacional de um país tomaria forma e daria vida ao sistema internacional, no contato e na interação com os outros Estados. Sendo assim, ele argumenta que o termo identidade pode ser entendido como “um conjunto mais ou menos ordenado de predicados por meio dos quais se responde à pergunta: quem sois?” (p.15).
Consoante Lafer, a lógica da identidade que assinala uma especificidade para cada um, diferenciando um Estado do outro, interage no sistema internacional com a lógica da globalização que dilui a fronteira entre o interno e o externo; reescrevendo em novos termos o jogo dialético de implicação mútua entre a “História do eu” e a “História do outro”. O autor reconhece que uma multiciplicidade de atores integra o campo das interações no plano internacional. Ele admite, numa alusão a Aron, que as relações internacionais contemporâneas já não se fazem apenas com “diplomatas e soldados” – símbolos da soberania – como preconiza a visão realista. Não obstante, como diplomata que é, acredita que o Estado e as nações ainda mantêm papel importante na dinâmica internacional. Pois, argumenta que a legitimação dos governos apoia-se cada vez mais na capacidade destes de em atender as necessidades e aspirações dos povos que representam, tanto na instancia interna como na externa. Destarte, a política externa nada mais é do que uma política pública orientada para “traduzir necessidades internas em possibilidades externas para ampliar o poder de controle da sociedade sobre seu destino” (p.16).
Voltando sua análise para o Brasil, Celso Lafer advoga que a visão de mundo do país pode ser vista por uma dimensão de continuidade. Para ele, a inserção do país na vida internacional foi acompanhada por certos “fatores de persistência” – escala continental do território, relacionamento com os dez países vizinhos; unidade lingüística; distancia dos focos de tensão do cenário internacional, tema da estratificação mundial e o desafio do desenvolvimento – que oferecem elementos essenciais para se entender a política externa brasileira. Portanto, o passado traz implicações para o presente e o futuro dos Estados.
“Esses fatores de persistência contribuem para explicar traços importantes da identidade internacional do Brasil, ou seja, o conjunto de circunstâncias e predicados que diferenciam a sua visão e seus interesses, como ator no sistema mundial, dos que caracterizam os demais países.” (Lafer, 2001:20).
O autor argumenta ainda, que no caso brasileiro a “consciência da memória de uma tradição diplomática” confere coerência à política externa brasileira e faz do estilo de comportamento do Itamaraty a expressão de uma visão de mundo. Nos capítulos seguintes, Celso Lafer examina traços básicos da identidade internacional do Brasil no intuito de apontar os fatores de persistência que configuram a política externa do país desde os tempos do Império até os dias atuais. Primeiramente, o autor coloca que a especificidade brasileira no plano internacional reside na construção de um Estado de escala continental e na criação de um governo soberano em 1822.
A configuração da dimensão territorial é vista como resultado de um processo histórico iniciado no ano de 1500 e obra de três agentes sociais: navegantes, bandeirantes e diplomatas. A fixação das fronteiras nacionais seguiu um padrão pacífico, negociador, de solução de conflitos internacionais pelo uso de recursos diplomáticos e pelo uso da força. Este legado deixado por Rio Branco é segundo Lafer uma constante no comportamento diplomático brasileiro e se baseia numa leitura grociana da realidade internacional: o sistema internacional apresenta um elemento se sociabilidade que permite o uso da Diplomacia e do Direito para lidar com as questões de guerra e de cooperação. A leitura grociana do sistema internacional constitui, para Lafer, um fator de persistência na política externa brasileira. Assim, este elemento é incorporado à identidade internacional do Brasil que revela um país respeitador do Direito Internacional que busca solucionar as controvérsias internacionais por meios diplomáticos e/ou jurídicos.
A independência do Brasil na primeira onda de descolonização instituiu a Monarquia no país regida pelo próprio príncipe herdeiro de Portugal e conferiu ao Brasil um caráter suis generis em sua identidade internacional. O Brasil se construiu como o diferente das Américas, um Império em meio as Repúblicas. Posto que o processo de construção da identidade internacional se dá na interação com o “Outro”, no século XIX na América do Sul, ser brasileiro era ser “não-hispânico” (p.35). Com a proclamação da República em 1889, surge a percepção de que ser brasileiro era ser (latino)americano. A “americanização” das relações exteriores buscava desfazer a imagem do Brasil como o diferente da América. Assim, a América do Sul se torna parte do “eu diplomático” brasileiro e a construção de um ambiente pacífico propício ao desenvolvimento do espaço nacional na América do Sul passa a constituir um fator de persistência na política externa brasileira (p.52). O Mercosul, por exemplo, é expressão deste processo de transformação de “fronteiras-separação” em “fronteiras-cooperação” que visa ampliar a integração econômica regional e o desenvolvimento nacional dos Estados envolvidos. Destarte, segundo o autor, a construção e manutenção da paz – via cooperação – na América do Sul revela-se uma constante na política externa pós-Rio Branco e constitui um forte elemento na identidade internacional do Brasil (p.64).
Um outro componente da identidade internacional do Brasil é o posicionamento da nação no sistema internacional como uma potência média de alto viés grociano. Segundo Lafer, o Brasil busca participar da gestão da ordem internacional, por ser uma potência com “interesses gerais” (p.72). A seu ver, a dimensão territorial e a competência diplomática do país asseguram “naturalmente” ao Brasil um posicionamento relevante no plano internacional (potência média). Além disso, a escala continental implica ao país a necessidade de se preocupar com o ordenamento mundial para poder perseguir e defender os interesses nacionais. O autor coloca que a diplomacia brasileira tem revelado, a partir do século XX, a capacidade de articular consensos, isto é, de mediar posições entre grandes e pequenos no plano multilateral. Assim, o Brasil construiu sua inserção internacional – em termos de presença política – com base na confiança e na coerência de seu comportamento, baseado no Direito e na Diplomacia, gerando um soft power necessário para a busca do meio-termo (p.76-77). Consoante Lafer, quando se trata do eixo assimétrico de poder do sistema internacional, o exercício do papel de mediador é um fator de persistência na identidade internacional do Brasil. Assim como o multilateralismo é um forte componente da inserção do país na vida internacional.
A busca pelo desenvolvimento do espaço doméstico, traduzido no “nacionalismo de fins”, é apontado por Lafer como mais um fator de persistência na identidade internacional do Brasil. O desenvolvimento foi interpretado pelos formuladores da política externa brasileira como o meio de reduzir a diferença de poder nas relações internacionais do Brasil com as grandes potências. Para o autor, a questão do desenvolvimento do espaço nacional e o tema da pobreza se refletem na idéia do elemento Outro Ocidente, como componente da identidade internacional do Brasil: “mais pobre, mais enigmático, mais problemático, mas não menos Ocidente” (p.40).
De acordo com Lafer, a Revolução de 1930 trouxe à tona a noção do Brasil como país subdesenvolvido. Em conseqüência, veio a percepção de que era preciso superar as “falhas” constitutivas da formação econômica do país – desigualdade social (p.87). Surge aí o “nacionalismo de fins”, diferente do “nacionalismo expansionista”, pois era o meio para se atingir o desenvolvimento e não uma tentativa de imposição de valores e nem uma simples expressão cultural. A partir de 1930, a política externa brasileira passou então a seguir duas linhas mestras para conduzir o nacionalismo de fins no plano internacional: a ampliação do espaço da autonomia e a identificação de possibilidades externas que possam atender às necessidades internas (p.88). Em outros termos, a política externa se torna uma política pública que tem por objetivo “traduzir necessidades internas em possibilidades externas, ampliando o poder de controle do país sobre seu destino” (p.90).
Para concluir, Lafer aponta, no último capítulo do livro, que o grande desafio que a política externa brasileira encontrar na virada do século XXI é a administração da aceleração dos tempos – “internacionalização” do mundo – de modo a preservar um espaço próprio no plano interno. Para o autor, a mudança do paradigma de funcionamento do sistema internacional, com o fim da Guerra Fria, impele a diplomacia brasileira a trabalhar as mudanças dentro da continuidade que lhe é característica pela reformulação conceitual. Num mundo de “polaridades indefinidas”, as diferenças entre o interno e o externo deixam de ser claras, os fluxos financeiros se globalizam aceleradamente, o processo produtivo se espalha pelo mundo (outsourcing) e a inserção do país na economia mundial passa a ser ditada pela integração. Assim, a lógica do nacionalismo de fins, que visava a inserção pelo distanciamento, se torna inoperante e o Brasil deixa de conseguir administrar os acontecimentos mundiais como “externalidades”, pois a globalização os internalizou.
A globalização acelerou o tempo financeiro e da mídia, que operam agora num tempo on-line. A volatilidade financeira provocada pela aceleração temporal passou a demandar dos mercados emergentes uma atenção redobrada nas negociações sobre a nova ordem financeira internacional (p.118- 119). Já a aceleração do tempo da mídia deslocou o foco dos processos para o fato. Há uma concentração exagerada no presente, em detrimento dos embasamentos passados e implicações futuras do evento em pauta, que fragmenta a agenda da opinião pública e dificulta a construção do soft-power da credibilidade internacional (p.119). Lafer identifica ainda o desafio da sincronização do tempo financeiro e econômico – do ciclo produtivo e do investimento – com o tempo político – por onde transitam as reformas necessárias para a diminuição do “custo Brasil” e, conseqüente, aumento da competitividade nacional – para a condução das políticas públicas (p.120). O desafio de assegurar espaço para a condução das políticas públicas passa também pelo tempo diplomático das negociações comerciais nos âmbitos global, regional e inter-regional. Sendo que a internacionalização do mundo pela crescente regulamentação multilateral exige uma qualificação negociadora que dê conta da importância das matérias e da complexidade das negociações.
Isso posto, o autor salienta que a “internacionalização” do mundo não afetou, no entanto, a identidade internacional do Brasil de modo significativo. A visão brasileira de seu papel nas relações internacionais permanece inalterada. O que muda é a percepção de como operacionalizar essa visão de mundo dada as novas condições do sistema internacional (p.114). Lafer sintetiza o argumento alegando que
“a visão de mundo e do papel do Brasil nas relações internacionais é fruto das circunstâncias históricas que foram definindo nossa identidade internacional (…). Neste processo, certos valores foram se afirmando. Entre eles o da autonomia possível para uma potência média de escala continental situada na América do Sul. Este valor, com seus desdobramentos, passou a integrar o mapa da ação diplomática brasileira. (…). Os valores têm igualmente várias dimensões. Uma delas, além do significado direcional, é a possibilidade de realização (…). É precisamente o tema da possibilidade de realização de uma visão de mundo que, na dialética mudança/continuidade, se colocou na agenda diplomática brasileira na década de 1990” (Lafer, 2001:114-115).
No mundo contemporâneo, a construção da autonomia necessária para o desenvolvimento se dá em função da dinâmica do funcionamento da ordem mundial: ela deve ser construída pela via multilateral. Uma participação ativa nos foros multilaterais permite ao país atuar na elaboração das normas e pautas de conduta da gestão da ordem mundial. Segundo Lafer, o Brasil pode atuar como co-gestor das questões mundiais nos anos 1990 em razão de suas credenciais históricas, como a leitura grociana da realidade internacional que permeia a conduta diplomática dom país, e de conquistas recentes, como a consolidação da democracia, o estabelecimento de uma economia de mercado, e a estabilização monetária (p.118). Somando a tudo isso, os investimentos em credibilidade feitos pelo país pela inserção em sua agenda internacional dos chamados “novos temas”: meio-ambiente, direitos humanos, desarmamento, etc.
Em suma, tem-se que para o autor, o componente ocidental da identidade internacional do Brasil e sua conduta diplomática pautada na visão grociana facilitam a inserção internacional do país, no mundo pós-Guerra Fria, enquanto desafios reais aparecem para o Brasil campo econômico e na construção do soft-power. No entanto, é um desafio para o qual os fatores de persistência presentes na construção da inserção e da identidade internacional do Brasil “oferecem um significativo lastro para a ação bem-sucedida” (p.122).
Sendo assim, é possível identificar ao longo do livro uma visão otimista quanto ao passado, presente e futuro do Brasil. O caráter grociano do comportamento externo brasileiro, por exemplo, se fundamenta mais na retórica do que na prática: o histórico de recusa de participação brasileira em certos regimes e instituições internacionais é simplesmente ignorado. O autor não se prende a uma corrente teórica específica para realizar sua análise da política externa brasileira, mas é possível identificar traços liberais/institucionais pela identificação de fatores domésticos responsáveis pelo formato e condução da política externa brasileira. Vale salientar ainda, que embora a concepção da construção da identidade passe pelo processo de interação social no plano internacional, não é possível afirmar um corte construtivista na analise do autor. Pois, a co-constituição entre agente e estrutura não é nem explorada ou mencionada.
Resenhista
Sylvia Ferreira Marques
Referências desta Resenha
LAFER, Celso. A identidade internacional do Brasil e a política externa brasileira: passado, presente e futuro. São Paulo: Perspectiva, 2001. Resenha de: MARQUES, Sylvia Ferreira. Meridiano 47, v.6, n.57, p. 18-21, abr.2005. Acessar publicação original [DR]