Mário Domingues – A Afirmação Negra e a Questão Colonial. Textos 1919-1928 | José Luís Garcia
Composta por dois grandes núcleos – um primeiro de cunho ensaístico e um outro de compilação de textos originais dados à estampa em títulos da imprensa portuguesa nos primeiros decénios do século XX – Mário Domingues – A Afirmação Negra e a Questão Colonial. Textos 1919-1928 (Lisboa: Tinta da China, 2022) é a mais recente obra de José Luís Garcia, concluída depois de duas décadas de estudo e de construção e análise de um vasto arquivo documental sobre Mário Domingues e sobre o movimento negro português do princípio do século XX. Quando se contabilizam 100 anos sobre a publicação de alguns dos mais arrojados e infamados artigos de Mário Domingues, como “O ideal da independência” (A BATALHA, 05/07/1922, p. 1), primeiro registo escrito impresso de defesa explícita da independência para a África colonizada, José Luís Garcia (JLG) apresenta-nos neste livro Mário Domingues como o precursor da afirmação negra em Portugal e como expoente, durante a Primeira República, da oposição política, moral e cívica ao imperialismo e ao colonialismo português. A tarefa maior que se impunha – e que esta edição concretiza – era a de recolher os artigos de Mário Domingues em circulação nos meios de grande difusão e ir em busca dos demais que pudessem ter sido publicados noutros periódicos, perceber se há neles algo de assaz notável para serem objeto de antologia, deslindar um significado comum a essa constelação de textos, construir, como diz o autor, “um facto histórico a partir de interrogações que esses documentos permitiam formular” (2022, p. 20). Este livro não se limita a recuperar e a fazer arquivo dos textos de Mário Domingues, injustamente esquecido – o que, por si só, já não seria de menos; bem mais do que isso, JLG reuniu todos esses escritos, colocou-os em diálogo com a situação colonial do seu tempo e com o ativismo do movimento negro por todo o mundo, articulou-os com aspetos biográficos de Mário Domingues, e apreendeu nessas crônicas, para lá da sua individualidade, o sentido global de uma emergência histórica, o surgimento de um símbolo, a origem de uma obra de rebelião negra.
O que resulta deste livro, e do trabalho contínuo que JLG vem desenvolvendo, desde a sua primeira chamada de atenção, num artigo em coautoria com José Castro, publicado em 1995, para o jornalismo militante de Mário Domingues e para a presença de organizações negras em Portugal, e nos outros textos que se lhe seguiram (GARCIA, 2012, p. 457-483; GARCIA, 2017, p. 125-143)2 é, pois, a constituição de Mário Domingues como personagem histórico, um protagonista da modernidade negra, um publicista da condição negra e da causa anticolonial. Mário Domingues deixou um opulento legado escrito de contraposição ao racismo e à política colonial nas duas primeiras décadas do século XX em Portugal, de denúncia da condição dos negros imposta pelas potências coloniais portuguesas – e europeias –, das crenças, atitudes e comportamentos de preconceito e discriminação social face aos negros, de promoção da dignificação humana e da solidariedade de todos os explorados e oprimidos, sem distinção de raças ou fronteiras. O clamor deste mulato contra o império português acontece num contexto em que o poder político se mostrou decisivamente orientado para a ocupação militar e administrativa das colônias em África, mas forma também o momento da emergência de um movimento negro politicamente organizado em Portugal, que lutou contra o racismo e iniciou um processo de questionamento do colonialismo e da proclamada “missão civilizadora” do colonialismo português, com uma expressiva atividade política, cívica e artista, nomeadamente através dos jornais e das revistas que essas organizações negras fundaram (VARELA e PEREIRA, 2020). O surgimento desse movimento negro revelou-se integrado no pan-africanismo internacional da época (ANDRADE, 1997; ADI, 2018; GRILLI e GERITS, 2021; TAYE, 2021) e articulado com a afirmação da negritude nas capitais europeias (GOEBEL, 2015; MATERA, 2015; BOITTIN, 2010; NDIAYE, 2009).
Nesse conjunto de textos, onde Mário Domingues escreve, em contracorrente com o espírito dominante do seu tempo, em defesa dos negros e exortando à liberdade e independência da África colonizada, JLG descortinou a expressão de uma eloquente autoconsciência negra – para usar os termos do próprio autor – e a gênese de um modo de pensamento propício à libertação das colônias portuguesas, em sintonia com o movimento negro internacional e os ideais propugnados nos coetâneos Congressos pan-africanos, e com muitos pontos de contato com a linha ideológica do pan-africanista norte-americano W.E.B Du Bois. Assim escreveu há cem anos Mário Domingues, em “O ideal da independência” (A BATALHA, 05/07/1922, p. 1):
Ainda ninguém teve a coragem de vir a público, à clara luz do dia, arrostando com todos os perigos que a proclamação da verdade possa provocar, dizer nitidamente que o separatismo se alojou definitivamente no cérebro e no coração do negro escravizado e vexado por uma colonização iníqua, Pois afirmamo-lo nós, dizemo-lo nós! (…) Têm ou não os negros direito à independência? Têm. Como alcançá-la? Lutando. Pois bem, que essa luta se revista de coragem, desassombro, união! (…) Haja, pois, coragem de afirmar aspirações! Nós afirmamo-las desde já. Desejamos ardentemente a independência do povo negro, porque somos partidários da independência de todos os povos, porque queremos ver a humanidade livre, absolutamente livre, vivendo em paz e em harmonia!
Na figura de Mário Domingues, JLG viu um ator da negritude, um antecessor do discurso de orgulho racial negro, um mensageiro avant la letre que deu expressão pública, por via do jornalismo e da literatura, à questão negra e colonial, mais ainda, um símbolo “da passagem do negro de uma condição de subalternidade na sociedade portuguesa para autor da sua vida” (2022, p. 13). O seu contributo criativo e cívico salda-se, por um lado, na relação com os povos negros, impelindo-os a ver no colonialismo um crime e encorajando-os a romper com todas as formas de submissão, à luta contra a dominação colonial – dotando o anticolonialismo do cariz de ato de humanidade, de dignidade humana; e, por outro, no âmbito mais vasto do social, do cultural, do intelectual, do político, do influxo sobre as correntes de opinião. Será talvez abusivo atribuir ao próprio Mário Domingues a consciência do poder de influência social do medium impresso; mas JLG, que se dedica também aos estudos da comunicação, do jornalismo e dos media, terá bem presente – e o seu livro está imbuído dessa intuição e sugestiona-nos nesse sentido – a noção da significância dos discursos produzidos nos jornais; é que tais discursos, como explica JLG num outro texto da sua autoria, são, por inerência, “um novo facto, porque produto do trabalho dos jornalistas, e uma nova ocorrência, devido ao fazer jornalístico como promotor de notabilidade, a qual induz por sua vez novos acontecimentos” (GARCIA, 2009, p. 71). Todo o trabalho de recolha e análise que funda este livro traz em si o entendimento da força produtiva desse fazer jornalístico, da escrita no mundo do jornal e da difusão cotidiana como uma forma de ação social, de modelação de ideias, valores e sensibilidades – poder-se-á especificar, no âmbito temático abrangido por esta obra, um meio de propagação de uma consciência anticolonial e antirracista e, quiçá, um potencial veículo de uma transnacionalidade negra.
Na primeira parte do livro, de gênero ensaístico, JLG dá-nos a conhecer a história de vida deste mulato, nascido em 1899 na ilha do Príncipe, filho de mãe angolana negra levada à força para as roças de São Tomé e Príncipe, para trabalhar em condições de escravidão, e de um pai branco, funcionário nessas mesmas roças, que veio a trazer Mário Domingues para Lisboa com apenas 18 meses de idade, separando-o para sempre da mãe – acontecimento que marcaria de modo inexorável a índole de Mário Domingues, na sua vida e na sua escrita. Longe de ser um capítulo estanque desta introdução ao livro, os laivos biográficos deste personagem – o seu percurso escolar, a sua convivência familiar, a memória da sua mãe – vão assomando e revelando a sua pertinência, paulatinamente, à medida que o livro acontece, deixando perceber que a biografia, tendo embora um valor de per se, estará também ao serviço da compreensão da expressão escrita, em prol de algo como uma história das ideias políticas. E se assim ocorre é porque a obra de Mário Domingues está intimamente vinculada ao seu passado, às suas origens, à sua trajetória de vida; ela é inextrincável do modo como, na sua meninice e depois em jovem, Mário Domingues pensa e sente e sofre o colonialismo.
Ao longo do ensaio, constituído por 8 grandes subpontos, escritos de forma não linear, sem uma estrutura rígida, oferecendo liberdade ao leitor para reconstituir a história aqui contada, somos levados a descobrir Mário Domingues nas suas mais diversas facetas: enquanto jornalista, cronista, repórter – primeiro, com apenas 20 anos de idade, no órgão anarcossindicalista A Batalha, depois, nos finais dos anos 1920, em periódicos mais voltados para a cobertura de causas sociais e de crimes; mais tarde, em meados dos anos 1930, enquanto escritor profissional, autor de um manancial de livros policiais e de aventura, de ficções de cowboys, novelas e peças de teatro, muitas vezes assinados com nomes ingleses e franceses, ou inclusive nomes de tradutores fictícios dos seus próprios escritos. Mário Domingues notabilizou-se ainda como tradutor de novelas populares e de romancistas da chamada grande tradição. E, na fase final da sua vida, definiu um plano literário de uma tremenda ambição, que o levou a escrever, pelo menos, duas dezenas de romances em redor de episódios e figuras históricas.
Nas cerca de 80 páginas que constituem o ensaio introdutório, apoiadas em referências sociológicas, historiográficas e literárias diversas, e abundantemente documentadas com reproduções de fotografias, cartas, telegramas, boletins, capas de livros (coligidas ao longo dos anos de arquivos privados de familiares e amigos de Mário Domingues), JLG comenta de perto as publicações que serão exibidas na segunda parte do livro, focando os temas mais caros e recorrentes nos artigos de agitação e de denúncia de Mário Domingues: a defesa da independência para a África; a desmistificação da retórica da missão civilizadora do colonialismo português e da falsa benevolência da dominação imperial – qualquer que ela seja; a acusação dos aspetos sociológicos, ideológicos e políticos do racismo, em geral, e a “caricaturização” do racismo especificamente português, explanado na figura-tipo, por ele mesmo concebida, do “Anastácio José”, um fanfarrão anafado, conservador e racista, mas com uma atitude de insistente negação – o racista que se diz não-racista; a contestação da exploração dos trabalhadores e da opressão das mulheres; a valorização da produção cultural dos negros, na poesia de expressão portuguesa e na literatura, na música e nas artes cênicas animadas por artistas e intelectuais negros nos EUA e na Europa Ocidental.
Os textos publicados em A Batalha e a consideração de um arquivo colonial permitem a JLG sair muitas vezes do contexto estrito dos Estados Coloniais e abordar a interseção entre a questão da raça e os problemas de classe, alargar o debate do racismo ao da iniquidade, colocar em evidência o apelo formulado por Mário Domingues de união dos trabalhadores “de todas as cores e de todas as raças” contra a “burguesia negra, amarela, branca ou vermelha”, (“A questão de raças”. A BATALHA, 04/05/1921, p. 1), tendente a uma verdadeira luta universal dos explorados contra o explorador, não obstante as raças ou as fronteiras, que, nesta perspetiva, não serviriam senão para dividir. Permitem-lhe também enfatizar a banalização do racismo, tão bem epitomizada nessa alegoria do “Preto que resiste a todos os portugueses”, (“O negro, vítima secular”. A BATALHA, 30/06/1922, p. 1), inclusive ao divertimento obtuso, vexatório, abjeto e odioso da Feira Mayer, onde um branco pintado de negro é feito alvo das boladas dos brancos, que ganhavam, se o alvejassem, um charuto. É esse uso desmedido da força e da brutalidade contra o corpo do negro, e contra os seus costumes e a sua terra, é essa anulação do sujeito negro, percebida também na forma de nomeação dos negros colonizados, desprovidos de uma identidade individual, indistintamente identificados pela alusão à sua cor de pele, que Mário Domingues acusa, e JLG revisita, como gatilho para pensar a força coerciva do poder e da norma da branquitude, por contraste ao estigma da inferioridade da negritude – e nestas tribulações sentidas pelos negros para entrarem na dialética do “Eu” e do “Outro” fica claro como os escritos de Mário Domingues antecipam o que Frantz Fanon viria a observar em Pele Negra Máscaras Brancas: “O negro quer ser branco, o branco incita-se a assumir a condição de ser humano” (FANON, 2008 [1952], p.27).
Num exercício de aproximação compreensiva ao sentido desses textos, JLG revela o cuidado de inscrevê-los no seu tempo, enquadrando-os com o espírito da época em Portugal e com o pano de fundo do internacionalismo negro – e nessa atenção ao ativismo negro e ao movimento negro internacional está um enlace, uma afinidade que une o autor da obra ao protagonista do enredo, Mário Domingues. A intemporalidade da produção escrita e a atualidade da sua mensagem universalista ficam bem patentes no último ponto desta primeira parte do livro, designado “O jovem Mário Domingues está de volta”, no qual se alcança ao mesmo tempo o impulso teleológico que instiga este trabalho de JLG. Hoje, apesar das normas vigentes e de um zeitgest que antagonizam, em teoria, o racismo e as visões darwinistas sociais de uma superioridade civilizacional europeia e ocidental, continuam a recrudescer as forças, os discursos e as atitudes que obstaculizam o apreço pelos valores igualitários e a erradicação do preconceito e da discriminação racial. E, no entanto, remata o autor deste livro, “valores democráticos, anticolonialismo e antirracismo são essencialmente afins” (2022, p. 76).
A segunda parte do livro oferece a todos quantos se interessarem – a historiadores e sociólogos dedicados ao tema do (anti)colonialismo e do (anti)racismo, ao âmbito dos black studies, dos Estudos da Cultura e dos Estudos humanísticos, a associações cívicas, jornalistas, estudantes, leitor comum – a oportunidade, até hoje inexistente, de disporem dos textos originais de Mário Domingues de há um século vindos a público no diário A Batalha e, casualmente, em outros periódicos, como o ABC, o Correio de África, A Tarde ou Ilustração. Estes textos podem finalmente ser vistos, lidos, apreciados no seu conteúdo e na forma da sua escrita, acutilante, irónica, permeada de um humor rebelde. Vale a pena demorarmo-nos por entre essas cerca de 230 páginas de transcrições e rememorar o exemplo de coragem, audácia e ousadia de Mário Domingues, o escritor-nato que, de forma bastante precoce e ainda de tenra idade, fez dos textos farpas contra o regime colonial do seu tempo.
Começa-se com a mostra do texto “Colonização”, datado de 9 de setembro de 1919 e que é – tanto quanto o autor confessa ter conseguido apurar – o primeiro artigo assinado de Mário Domingues em defesa dos negros. Mário Domingues escreveu depois um volume surpreendente de artigos até 1928, muitos dos quais coligidos e reeditados nesta segunda parte do livro, expostos em quatro grandes grupos: “Pela emancipação dos negros”, seção que agrega os principais textos de Mário Domingues, publicados entre setembro de 1919 e outubro de 1921, de denúncia da escravatura, do racismo e de reivindicação categórica da independência para o continente africano; “Um Preto que resiste a todos os portugueses”, grupo que reúne artigos da série “Para a história da colonização portuguesa”, entre junho e dezembro de 1922, onde Mário Domingues enumera as deploráveis condições morais e materiais das populações nativas, o tormento dos negros subjugados à dominação colonial, as formas dissimuladas de escravatura, sob o disfarce de “trabalho forçado”, o extermínio do mundo social e cultural dos povos nativos dos territórios colonizados, sob o comando de Norton de Matos: “Se Dante (…) tivesse assistido às cenas bárbaras, brutais, provocadas por esse capitão autoritário”, diz Mário Domingues num dos textos desta série referindo-se ao alto-comissário Norton de Matos, “Em Angola. Enterrados vivos. As proezas dum capitão e a indiferença do sr. Norton de Matos” (ABATALHA, 14/07/1922, p.1), “tê-las-ias aproveitado decerto para aumentar a dolorosa emoção que o seu génio imprimiu no seu poema imortal”. É também neste conjunto de textos expostos neste segundo grupo que Mário Domingues reporta e exorta ao despertar dos negros para o combate rumo à independência; o terceiro segmento, “A Angola do Alto-Comissário Rego Chaves”, junta textos difundidos entre janeiro de 1924 e agosto de 1925 e é um ataque fervoroso à regência colonial do novo alto-comissário de Angola, tenente-coronel Rego Chaves, aos jogos financeiros entre ele e o Banco Nacional Ultramarino (BNU), e à política econômica e corrupção dos banqueiros do BNU; o último conjunto de textos, designado “Pan-Africanismo Cultural”, consiste num elogio à produção cultural dos negros, esboçado em artigos saídos num intervalo de tempo mais extenso e de forma mais esporádica, de janeiro de 1921 a setembro de 1928.
A impossibilidade de abarcar a produção jornalística de Mário Domingues no seu todo fez com que ficassem de fora desta seleção alguns outros artigos, como a série de textos (muitos dos quais não assinados, mas sobre cuja autoria de Mário Domingues há pouca margem para dúvida) que arrasam com a administração colonial de Norton de Matos. Essa ausência faz-se sentir e será decerto lamentada entre os leitores que viram a sua curiosidade acicatada pela alusão a esses escritos no ensaio introdutório. Ainda assim, não parece infundado avançar que este livro cumpre o objetivo a que se propõe: o de resgatar Mário Domingues do esquecimento e assim reparar a injustiça de ele permanecer marginalizado e pouco debatido, nos meios acadêmicos e não só – uma injustiça notada naquela profícua carta de Alfredo Margarido, reproduzida no livro, ao pintor António Pimentel Domingues, filho de Mário Domingues e vulto das artes do neorrealismo e do surrealismo. Além de uma referência cultural e cívica para pensar o passado colonial e a sociedade contemporânea (a contemporaneidade específica do pós-colonialismo português e da vanglória dos impérios passados num tempo em que se agitam os impérios do presente), o livro pode também vir abrir novas hipóteses de estudo. Vários aspetos na vida e obra de Mário Domingues merecem ser analisados de forma mais aprofundada para se conhecer e compreender ainda melhor esta figura tão fascinante, nas suas convicções, nas suas lutas e também nas suas ambiguidades. Falta articular todos os escritos que agora são tornados acessíveis ao público com o estudo das organizações negras, e averiguar qual o papel de Mário Domingues no quadro mais vasto do debate entre as diferentes fações internacionais; aferir a autoria dos textos não assinados que têm como alvo a pessoa de Norton de Matos; esclarecer se os textos que reportam os congressos pan-africanos têm a participação de Mário Domingues. Sendo uma figura chave dentro do movimento negro, impõe-se ainda examinar a relação que ele teve com escritores e intelectuais durante esse período e posteriormente. Que esta obra seja, pois, um ponto de partida para novas investigações e para tornar audíveis outras vozes negras que, à semelhança de Mário Domingues, têm permanecido estranhamente sonegadas.
A coleção de todos estes artigos é, por si só, um trabalho de imenso valor. Mas interessa assinalar que subjacente a essa missão de recolha está a visão de JLG, que neles percebeu a afirmação de uma figura maior, um libertário negro, crítico implacável do colonialismo e do racismo, até onde e até quando pôde, um pensador, um dissidente, um ironista por excelência. O que terá acontecido nas etapas posteriores da sua vida, com a ascensão do regime ditatorial de Salazar, a instauração da repressão às liberdades, a perseguição policial e a imposição da censura, extravasa o âmbito deste livro, nitidamente mais centrado no jovem Mário Domingues, e abre-se a um espectro vasto de possíveis – até que ponto é exequível reconstituir os factos de uma vida? Responder a esta pergunta implicaria estudar com rigor o conteúdo, o sentido, o tom e até os subtextos dos muitos romances históricos que Mário Domingues publicou na fase já mais tardia da sua vida. Ainda assim, é oportuno, a respeito desse improvável percurso, o de um jovem rebelde até às vísceras, condecorado pelo regime do Estado Novo no fim da sua vida, levar em consideração a máxima do poema de Manuel António Pina de que “é tudo para sempre”. JLG invoca-a para questionar o sentido dessa aparente viragem, que marca e marcará para sempre a história de Mário Domingues (p. 32). Mas a mesma máxima, de que “é tudo para sempre”, pode ser aplicada à produção torrencial de textos jornalísticos do jovem Mário Domingues. Independentemente do que poderá ter sido, depois da sua juventude, são esses textos, coligidos e publicados neste livro, que ficam, para sempre, indiscutivelmente, como a obra da aurora da rebeldia negra. E são eles que colocam de vez Mário Domingues no mapa da afirmação negra anticolonial, da defesa dos direitos humanos dos negros e da liberdade em África, fundamentando a asserção de JLG de que “a história e a sociologia da luta anticolonial e do racismo em Portugal não podem prescindir do legado de Mário Domingues” (2022, p. 16).
Nota
2 Além destas publicações, José Luís Garcia tem realizado conferências em eventos acadêmicos e em associações cívicas, em Portugal e no estrangeiro, e submetido projetos à Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), centrados na figura e ação de Mário Domingues no seio do movimento negro de Portugal da época.
Referências
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Resenhista
Tânia Alves – Doutora em Sociologia (2018), pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Autora do livro 1961 sob o viés da imprensa. Os jornais portugueses, britânicos e franceses na conjuntura da eclosão da guerra no império português (Imprensa de História Contemporânea, 2021), de vários artigos académicos e de capítulos de livro e co-organizadora do livro Salazar, o Estado Novo e os Media (Edições 70: 2017). O trabalho que tem vindo a desenvolver pretende contribuir para uma nova compreensão da relação entre os media e a queda do império colonial português, a partir de uma perspetiva interdisciplinar que privilegia as interações entre comunicação, política, sociedade, cultura e identidades nacionais, e estendendo este domínio de investigação de um modo que inclua um comprometimento com os estudos pós-coloniais. E-mail: tania.alves@ics.ulisboa.pt https://orcid.org/0000-0002-0341-882X
Referências desta Resenha
GARCIA, José Luís. Mário Domingues – A Afirmação Negra e a Questão Colonial. Textos 1919-1928. Lisboa: Tinta da China, 2022. Resenha de: ALVES, Tânia. Há um século. Mário Domingues, o anarquista negro que fustigou o colonialismo português. Revista de História. São Paulo, n. 182, r00722, 2023. Acessar publicação original [DR/JF]