Quem nunca ouviu falar e/ou leu sobre Maria I, a rainha louca? A memória e a historiografia de modo geral tenderam, durante muitos anos, a classificar a rainha portuguesa como louca e dotada de um fanatismo religioso sem limites. Diversos escritos, muitas vezes como forma de atrair público leitor e/ou inseridos em contextos historiográficos comprometidos em construir uma legenda negativa da monarquia portuguesa, encobriram uma multiplicidade de elementos históricos sobre uma mulher que vivenciou, entre os séculos XVIII e XIX, um dos momentos mais turbulentos da história moderna: a ruína do absolutismo monárquico.
Diante de tais aspectos, a obra Maria I: as perdas e as glórias da rainha que entrou para a história como “a louca”, da historiadora Mary Del Priore, autora de outras obras sobre a história das mulheres, demonstra que era preciso se debruçar para além de uma simples assertiva de loucura dada à Maria I pela memória e pela historiografia. Dividido em nove capítulos, o livro procura apresentar a trajetória de rainha, desde seu nascimento em 1734, momento em que, segundo a autora, “[…] Portugal vivia uma época esplendorosa” (DEL PRIORE, 2019, p. 13), aos seus últimos dias na cidade do Rio de Janeiro, em 1816, quando a corte portuguesa se encontrava no exílio. O objetivo de Del Priore (2019) é, ao percorrer a trajetória de D. Maria, buscar respostas para uma mudança comportamental na rainha a partir da década de 1780, sem incorrer em explicações automáticas e/ou simplistas.
Assim, a autora inicia a obra com o nascimento da infanta Maria, em 17 de dezembro de 1734, longe de qualquer relação com a “loucura” construída posteriormente. Filha de d. José, príncipe de Portugal, e d. Mariana, infanta da Espanha, Maria era a primeira das quatro filhas do casal. Cercada de inúmeras cerimônias religiosas, a princesa teve como padrinhos os avós paternos, o rei do d. João V e a rainha d. Maria Ana de Áustria, o que em realidade era uma tradição na corte lusitana. A obra explora a vida da monarquia absolutista portuguesa, em que a Igreja permanecia como uma instituição poderosa e influente nas decisões dos monarcas, e algumas trajetórias de vida dos membros da família real, como da infanta Mariana, do príncipe d. José, da rainha d. Maria Ana de Áustria e do rei d. João V. Da mesma forma revela os primeiros anos de Maria que, segundo Del Priore (2019), recebera educação severa e profundamente marcada pelo catolicismo, bem como uma educação voltada para a formação de uma infanta, em que ser doce, ter compaixão e amor maternal eram essenciais, o que seria bastante distinto dos infantes. No que diz respeito ao poder político, o texto nos apresenta o adoecimento de d. João V, seu falecimento em 1750, o coroamento de d. José I e dona Mariana, e o fortalecimento político de um dos maiores oponentes de Maria: Sebastião José de Carvalho e Melo, conhecido posteriormente como Marquês de Pombal. Este que defendia abertamente o nascimento de um menino, um príncipe, que pudesse futuramente subir ao trono português, em contraposição a menina Maria. Carvalho e Mello, conforme cita a autora, “[…] não queria uma rainha. Queria o poder nas mãos de um homem, não de uma mulher” (DEL PRIORE, 2019, p. 30). Cabe notar que a época, século XVIII, correspondia à valorização do poder político nas mãos de homens, entendidos como melhor capacitados a atuar na esfera pública.
Del Priore discorre sobre a devastadora catástrofe de 1755, o terremoto, seguido de maremoto e incêndio, em Lisboa. Nessa época Maria tinha 21 anos e nunca esqueceria o episódio de grandes dimensões. A interpretação que corria pela nação portuguesa era de que a catástrofe era um castigo divino, resultado de pecados do reino. Maria partilhava dessa crença e ouvia cotidianamente os murmúrios, as “fofocas” da Corte, de que seu pai, d. José, tinha uma amante, a marquesa Teresa de Távora e Lorena. Maria, cercada de religiosos, assim grande parte da sociedade portuguesa da época entendia que a “[…] a decadência moral do rei podia levar à decadência do reino” (DEL PRIORE, 2019, p. 45). Segundo Del Priore (2019), os episódios de adultério de d. José, bem como o julgamento dos Távora, repercutiram fortemente para que Maria visse a figura do pai como insuportável, ao mesmo tempo em que deveria ser respeitada, afinal ela era filha e soberana sucessora. Enquanto Lisboa ressurgia dos escombros, Maria casou-se, aos 26 anos de idade, com seu tio d. Pedro; assiste ao adoecimento e falecimento de seu pai, e consequentemente seu coroamento em 1777, tornando-se então d. Maria I, a primeira mulher a comandar o vasto império lusitano.
Del Priore (2019) define também as inúmeras dificuldades encontradas por d. Maria I por ser mulher em contexto político predominantemente masculino. Isso evidentemente alimentado por discussões da época que entendiam as mulheres como seres inferiores aos homens. A autora delineia com precisão o empenho da soberana em superar em muitos aspectos seus antecessores, incentivando a iniciativa privada do reino, em contrapartida a política econômica pombalina, assim como no campo diplomático reconheceu a independência dos Estados Unidos da América, em 1783. No entanto, Del Priore chama-nos atenção para o fato de que o reinado de Maria foi marcado pelo catolicismo carola, afinal de contas “[…] ela foi educada e modelada para isso” (DEL PRIORE, 2019, p. 84), e por uma administração que não assegurava as necessidades básicas da população do reino.
A autora explora ainda os martírios de Maria em torno dos pecados e das injustiças de seu pai, o que, segundo Del Priore (2019) não abandonavam sua mente, contribuindo ainda mais para um aumento do isolamento da rainha. Somava-se a isso a chegada de notícias nada agradáveis dos acontecimentos da França revolucionária, tais como os relatos de violência praticada pela população contra a aristocracia, gerando medo e insegurança ao reino e, consequentemente um mergulho de Maria num quadro cada vez mais depressivo. É seguramente este aspecto a contribuição da obra à historiografia sobre a rainha lusitana. Conforme Del Priore, embora não podemos falar em depressão nos séculos XVIII e XIX, “segundo o relatório médico da casa Real, d. Maria apresentava sintomas do que hoje chamamos de depressão” (DEL PRIORE, 2019, p. 151). Para se somar a esse quadro debilitado da soberana, temos ainda seu afastamento do trono, em 1792, na crença de sua futura melhora. Diante disso, Maria ficava cada vez mais apática, triste, abatida, relaxada e sedentária. A rainha, que outrora era enérgica, passou a sofrer de insônia e falta de apetite, assim como de convulsões, rigidez muscular, cansaço, espasmos na cabeça e no pescoço. Maria entendia que seu destino estava em arder no fogo do inferno, como seu pai. E que “a morte de filhos, netos e tantos entes queridos era o castigo divino por seus pecados” (DEL PRIORE, 2019, p. 159). Dessa forma, permanecia cada vez mais reclusa a ponto de não aparecer mais em público. Mesmo diante dos esforços de médicos e dos padres que rezavam pelo retorno da rainha ao trono, Maria não dava sinais de melhora o que fez com que d. João assumisse formalmente a regência a partir de 1799. Importante destacar que a análise sobre a mudança comportamental da rainha realizada por Del Priore (2009) rompeu com a falsa ideia de “loucura” tão difundida posteriormente, buscando explicações mais profundas para além do medo da queda do antigo regime em Portugal.
Diante do bloqueio continental, decretado por Napoleão Bonaparte em 1806, e do definitivo alinhamento à Inglaterra, depois de oscilar entre franceses e ingleses, a corte portuguesa viu-se obrigada a fugir para o Brasil, em 1808. Nesse contexto, a soberana passou a ser cada vez mais ignorada e esquecida. Como diria Del Priore, “escondia-se e era escondida. Vivia mergulhada num mundo à parte” (DEL PRIORE, 2019, p. 174). Poucos são os registros sobre as atividades de Maria no Rio de Janeiro. Sabe-se que cruzava o centro da cidade todos os dias em uma carruagem, sempre vestida de preto, em um infinito luto pelo marido há muito falecido. Nunca deixou seu catolicismo para trás e, na verdade sempre buscou formas de adaptá-lo à vida nos trópicos.
Em fins de 1815 as notícias sobre Maria eram de que havia piorado. Febre alta e outras indisposições haviam tomado a velha soberana que veio a falecer no ano seguinte, em 20 de março de 1816, aos 81 anos de idade. Seu cadáver, no entanto, encontrou repouso somente em 1822, quando seu corpo foi finalmente transladado para Portugal.
Louca? Nada! Assim, mais do que recontar a história da rainha Maria I, Mary Del Priore (2019) descortinou uma série de personagens que compunham as relações da soberana ao longo de sua vida. Maria, antes de rainha era mulher, mãe, esposa, irmã e religiosa. Longe de uma leitura simplista do passado português e de sua soberana, a historiadora nos oferece uma rainha em sua complexidade. A grande contribuição da obra é nos fazer entender os motivos que levaram Maria à dolorida depressão de que foi acometida. Não era de modo algum louca, mas resultado de uma série de aflições e desgastes que, somados, levaram-na à extrema “melancolia”, como diriam na época. No entanto, a obra abre espaço para investigarmos em profundidade o porquê uma rainha, em grande medida reverenciada quando viva, ficou conhecida como “louca” quando já morta. Ou seja, como se operacionalizou, no campo da memória e da própria historiografia, a imagem de Maria I como louca? Quando, por quem e quais foram os motivos que levaram a representação de Maria como uma soberana maluca? Esses questionamentos são importantes para entendermos os mecanismos de construção da memória e da escrita da história ao longo dos anos, em Portugal e no Brasil. O livro de Mary Del Priore é de leitura agradável e clara, e nos leva com maestria a um universo político e cultural dos séculos XVIII e XIX.
Resenhista
Eduardo Chaves – Doutorando do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa Catarina.
Referências desta Resenha
DEL PRIORE, Mary. Maria I: as perdas e as glórias da rainha que entrou para a história como “a louca”. São Paulo: Benvirá, 2019. Resenha de: CHAVES, Eduardo. “Louca? Nunca!”: a história de Maria I. Ofícios de Clio. Pelotas, v. 5, n. 8, p. 367- 370, jan./ jun. 2020. Acessar publicação original [DR]
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