A historiografia da música, especialmente a do Brasil, de modo geral pouco destaque deu às cantoras líricas negras do passado. É que, de fato, trata-se de uma tarefa complexa conhecer essas histórias, uma vez que seus rastros são raros e os vestígios muito incertos. Sabe-se, por exemplo, que nos séculos XVII e XVIII senhores de escravos brasileiros mantinham em suas propriedades, por vaidade e luxo, orquestras e coros compostos somente de escravizados que continham vozes femininas no conjunto.1 No século XVIII há registros em Vila Rica de cantores e cantoras negras, geralmente maquiadas para esconder a cor da pele, se exibindo nos teatros da cidade. No século XIX escravas cantoras eram valorizadas e alugadas a bom preço para se apresentarem cantando modinhas ou trechos de ópera em salões e festas aristocráticas, como as sopranos Leonor Joaquina, Ignacia Francisca e Maria da Conceição.2 Os motivos para explicar esse quadro rarefeito são variados, a começar obviamente pelos imensos obstáculos impostos aos escravizados. Mas é preciso considerar também as incontáveis e permanentes barreiras à carreira artística feminina. Mulheres tinham restrições para apresentações nos palcos e cantar óperas no Brasil somente foi permitido a elas no começo do século XIX. E certamente esses entraves eram bem mais dramáticos às cantoras negras ou mestiças. Mesmo sendo assim, na colônia as leis muitas vezes eram tratadas de maneira mais acomodadiça, prevalecendo as práticas e necessidades impostas pelo cotidiano. Isso significava que nem sempre eram respeitadas integralmente as restrições nos palcos e plateias às mulheres, e às negras em particular.3
Por essas razões é possível encontrar desde o final do século XVIII algumas mulheres negras e mestiças que ultrapassaram individualmente essas barreiras e cantaram com destaque em teatros de Vila Rica, Salvador e Rio de Janeiro. Esse foi o caso da carioca Joaquina Maria da Conceição Lapa, mais conhecida pelo nome artístico de Lapinha.4 Apesar das enormes dificuldades, ela teve carreira relativamente bem-sucedida, chegando a realizar várias apresentações, entre o final do século XVIII e início do XIX, nas cidades de Vila Rica e Rio de Janeiro, além de uma bem-sucedida excursão a Portugal. Um pouco mais tarde, Camila Maria da Conceição (1873-1936) também superou as inúmeras adversidades de gênero e cor e apareceu com relativo sucesso no horizonte da música lírica e de concerto. Filha de mãe desconhecida, provavelmente uma ex-escravizada, foi criada por uma família adotiva pertencente à elite intelectual carioca. Nesta condição, cursou o Instituto Nacional de Música, onde se tornou professora no começo do século XX. Além da carreira docente, apresentou-se em vários teatros do Rio de Janeiro e outras cidades do país. Apesar do reconhecimento relativo, sua carreira como professora e artista foi recheada de conflitos e problemas.
Na década de 1910 o Instituto Nacional de Música recebeu também como aluna a negra Zaira de Oliveira (1891-1951). Nessa instituição ela conquistou, em 1921, a medalha de ouro no concurso de canto lírico, cujo prêmio era uma viagem à Europa. No entanto, o Instituto não lhe concedeu a viagem, com a forte suspeita de ter sido rejeitada pelo fato de ser negra.5 Zaira apresentou-se algumas vezes no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, cantando Carlos Gomes e outras óperas. Seguiu sua carreira como professora de canto e começou a apresentar-se nas nascentes emissoras de rádio e a gravar discos, aproximando-se da novidade que era o universo da música popular e de seu novo mercado artístico. Neste ambiente conheceu o cantor e compositor carioca Donga (Ernesto Joaquim Maria dos Santos, consagrado por ser um dos autores de Pelo Telefone) e com ele se casou.
A história da cantora carioca Maria d’Apparecida (1926-2017), objeto do livro aqui resenhado, adiciona elementos importantes para compreendermos melhor este horizonte social e cultural de longa duração. Mesmo com suas peculiaridades biográficas e as circunstâncias temporais específicas, sua trajetória pode ser encarada como uma espécie de desdobramento contemporâneo desta dinâmica histórica mais extensa. Apesar da distância temporal, de várias formas algumas pontas dispersas dessas histórias muitas vezes se aproximam de modo muito evidente. Vale a pena conhecer algumas delas relativas à vida de Maria d’Apparecida.
Ela era filha de uma empregada doméstica negra que vivia nos anos 1920 em São Paulo e foi engravidada pelo filho de seu patrão. Com o objetivo de resolver a questão, a família paulistana enviou a jovem mãe grávida para o Rio de Janeiro. Acolhida pela família carioca para trabalhar nas tarefas domésticas, logo depois Dulcelina deu à luz e, depois do nascimento, ela e a recém-nascida nunca mais tiveram contato com o pai. Em pouco tempo duas mortes selaram o destino da criança: o falecimento do chefe da nova família e, na sequência, de sua mãe. Nessas circunstâncias trágicas a menina acabou adotada informalmente e permaneceu na família como irmã de criação, prática bem comum à época. Deste modo, ela frequentou as mesmas escolas das irmãs adotivas e se formou normalista, tornando-se professora. Insatisfeita com a vida docente, começou tomar aula de canto lírico e frequentou o Conservatório Brasileiro de Música. Ao mesmo tempo, para sobreviver, tornou-se locutora de rádio, estabelecendo novas relações com o mundo musical. Foi assim, de maneira um tanto involuntária, que Maria d’Apparecida começou a carreira artística, cheia de obstáculos, mas também com êxitos.
De acordo com as memórias de Apparecida, as dificuldades relacionadas ao fato de ser negra a impediram de exercer com autonomia a prática do canto lírico no país, obrigando-a a arriscar a carreira no exterior. Convidada pelo compositor e pianista paraense Waldemar Henrique para participar de uma excursão à Europa, aproveitou a oportunidade para não mais regressar ao Brasil, e permaneceu em Paris. Na capital francesa tratou de deslanchar sua carreira de cantora lírica, alcançando reconhecimento a partir dos anos 1960, chegando a se apresentar como solista na clássica peça Carmen, de Bizet. Neste meio tempo conheceu o pintor surrealista Félix Labisse, com quem manteve até o fim da vida dele conflituosa relação amorosa, já que o artista era casado. Sua vida pessoal e artística, portanto, concentrou-se em Paris e apenas esporadicamente retornava ao Brasil. A fatalidade de um sério acidente automobilístico em 1974 a obrigou a arriscar mudanças no seu percurso profissional, já que algumas sequelas a impediram de continuar como cantora lírica. Como já tinha conhecimento e experiência com a música popular brasileira, passou a cantar este repertório em palcos franceses. Nesse período conheceu o violonista Baden Powell, que já vivia na França há algum tempo, e gravou um disco com ele. O sucesso do LP ajudou a torná-la mais conhecida e ativa musicalmente até meados da década de 1980, atraindo a atenção de vários artistas nacionais e estrangeiros de seu tempo (por exemplo, a referência no título à negroluminosa foi retirada de um poema de Carlos Drummond de Andrade dedicado a ela). A partir dos anos 1990, uma série de circunstâncias pessoais determinou o retraimento da carreira e seu recolhimento pessoal, implicando certo esquecimento até sua recente morte em 2017.
Como se percebe, a trajetória de Maria d’Apparecida é intrigante e se relaciona de vários modos com as outras histórias de cantoras líricas negras. Neste sentido a personagem é muito cativante para a construção biográfica. No entanto, a memória e a historiografia da música são repletas de estratégias e armadilhas, sendo o esquecimento e a glorificação duas delas que, apesar de antitéticas, caminham perigosamente muito próximas, exigindo, portanto, sempre muita atenção. Desse modo, desvendar a trajetória de Maria d’Apparecida colabora imensamente para evitar o silenciamento da artista e para conhecermos um pouco mais aspectos da história da música no Brasil. Por isso, o livro escrito por Mazé Chotil, ao projetar um esboço biográfico de Maria d’Apparecida, tem relevância logo na partida. Mas, exatamente o imenso esforço para evitar o alheamento da cantora, muitas vezes dispara a armadilha e o livro resvala quase sempre em certo tom de exaltação reminiscente. Na verdade, esse é um traço recorrente na prática biográfica, sobretudo na historiografia da música, seja a de concerto ou a popular. Tradicionalmente a musicologia se serviu preferencialmente das biografias como instrumento privilegiado para contar de maneira glorificante suas histórias.6 As biografias deveriam permitir ao mesmo tempo identificar as singularidades dignificantes dos autores e penetrar nas suas obras admiráveis. Mesmo quando ela inverteu essa lógica e procurou narrar linearmente processos mais amplos a partir dos gêneros musicais, geralmente utilizou os indivíduos e suas obras como seus modelos exemplares. Isso significa que o binômio vida-obra associado a certo tom de exaltação sempre prevaleceu, mesmo na historiografia da música popular.7 E, de certo modo, as ações dos indivíduos serviriam para exemplificar ou justificar os contextos mais amplos. Contudo, esse é um tipo de modelo biográfico que ficou no passado. Os esforços, seja da historiografia ou da musicologia, já há algum tempo seguem outras direções, mais criativas e nuançadas.8
Se o livro sobre Maria d’Apparecida apresenta de diversos modos os traços laudatórios, ao mesmo tempo tem alguma dificuldade em estabelecer as relações mais abrangentes. São raríssimas as referências ao universo da cultura musical e até mesmo às mais gerais relativas aos processos culturais que poderiam colaborar para entender melhor a artista e sua época. Ao longo do livro não se percebe o esforço de dialogar com as várias dimensões que compõem a vida do indivíduo e da personagem biografada: deste modo, aparece apenas a vida de Apparecida contada linearmente. Indício desse panorama rarefeito é a evidente carência bibliográfica e as discussões e debates que essas obras e conteúdos poderiam contribuir para melhor encadeamento dos eventos e do livro. Pode-se argumentar, claro, que o interesse dele não está direcionado aos pesquisadores e estudiosos, mas destinado a um público mais amplo: o que é justo. Ocorre que a bibliografia colabora para justamente ultrapassar os limites da memória e lembranças da biografada. Por isso, a narrativa dá a sensação de que simplesmente empilha os acontecimentos numa certa linearidade superficial, dificultando ao leitor penetrar de fato na vida cativante de Maria d’Apparecida e no fascinante tempo em que ela viveu.
Neste passo aparecem aspectos importantes do livro que devem ser salientados. O gênero biográfico, que mantém um longo e polêmico percurso na prática historiográfica, contém uma tensão irresoluta entre o desejo de contar um passado vivido e a tarefa literária de narrar a vida que não existe mais.9 Assim, a biógrafa está sempre em relação direta com a biografada e constantemente deve estar atenta a esses conflitos da composição biográfica. Muitas vezes, nessa relação, o discurso da biógrafa sempre corre o perigo de confundir-se com o da biografada. Neste caso específico isso se revela, por exemplo, quando a autora em diversas passagens dá vazão à convicção da biografada de que na Europa ela “se sentia respeitada” ao passo que no Brasil foi-lhe impossível fazer uma carreira “por causa da cor de sua pele”. É perfeitamente justo e compreensível que d’Apparecida avaliasse deste modo, mas caberia à biógrafa problematizar a questão, já que a França é historicamente conhecida por sua discriminação aos judeus, muçulmanos, magrebinos, vietnamitas e, claro, negros. Outro caso evidente deste conflito de limites ocorre quando a biógrafa repete de maneira insistente, em vários capítulos, que pela primeira vez uma cantora negra teria cantado Carmen no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Certamente o evento – ocorrido em agosto de 1965 – foi um fato relevante na vida da biografada. Além do retorno triunfante ao país, intimamente tratava-se de uma espécie de reparação pública aos obstáculos que lhe foram injustamente impostos em seu país. Mas à biógrafa caberia relativizar esses triunfalismos e não se confundir com eles, repetindo-os de maneira tão insistente.
Para evitar esses desvios e sobreposições, formalmente a prática da narrativa biográfica se apoia na bibliografia e nas fontes, associando-se a uma certa intuição literária criadora. Deste modo ela assegura o acesso às realidades do passado, remontadas e escritas de modo sedutor. Ao contrário da bibliografia escassa, é perceptível que a autora lidou com uma diversidade de fontes primárias (entrevistas, discografia, iconografia e imprensa). Mas, assim como no caso da bibliografia, elas não se relevam claramente e não percebemos como estabelecem relações com o texto central. Nem ao menos as referências sonoras são indicadas ao leitor, o que seria muito interessante e tornaria a leitura muito mais enriquecedora. Essa prática com as fontes é básica e fundamental para superar as memórias turvadas e as lembranças imaginárias dos biografados, concedendo autoridade externa ao texto.
O outro polo do “desafio biográfico” composto pela intuição literária criadora também é um tanto nebuloso. Além da confusão com o discurso da biografada, ela está limitada por uma evidente tautologia narrativa somada à dificuldade de criar tramas. Isso significa que o texto gira numa certa repetição de fatos e de escrita, ao mesmo tempo em que é essencialmente descritivo, acumulando fatos e eventos em forma de intrigas. Em suma não se percebe “o canteiro de obras”10 que permitiu à autora construir a biografia de d’Apparecida e erguê-la em forma de livro.
Esse panorama aponta que a obra é ainda apenas um esboço biográfico, como aliás indica justamente o título. De um lado sua insondável “operação historiográfica” colabora muito pouco para conhecermos melhor as histórias da cultura e da música no Brasil. E de outro, o livro tem dificuldades evidentes para enfrentar o complexo “desafio biográfico” para revelar a cantora em seu tempo. Em contrapartida, a obra tem uma imensa contribuição à memória da biografada, o que revela um grande valor em si mesmo, sobretudo em um país tradicionalmente submetido às forças dos esquecimentos.
Em tempo: atualmente é muito mais simples acessar as fontes sonoras para escutarmos os artistas do passado. Para aqueles que se interessam em conhecer e escutar Maria d’Apparecida, seguem algumas referências interessantes:
Notas
1 Gilberto Freyre, Casa grande e senzala, 26ª ed., Rio de Janeiro: Record. 1989, pp. 344, 417; e Sobrados e mocambos, 13ª ed., Rio de Janeiro: Record, 2002, pp. 76-77.
2 Sérgio Bittencourt Sampaio, Negras líricas. Duas intérpretes negras brasileiras na música de concerto (séc. XVIIIXX), Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008, p. 24.
3 Rogério Budasz, Teatro e música na América portuguesa. Ópera e teatro musical no Brasil (1700-1822): convenções, repertório, raça, gênero e poder, Curitiba: DeArtes; UFPR, 2008.
4 Paulo Castagna, “Palmas e preconceitos”, Revista de História da Biblioteca Nacional, n. 64 (2011), pp. 76-79.
5 Rui Castro, Metrópole à beira-mar. o Rio moderno dos anos 20, São Paulo: Companhia das Letras, 2019, pp. 294-296.
6 Jolanta T. Pekacz, “Memory, History and Meaning: Musical Biography and its Discontents”, Journal of Musicological Research v. 23, n. 1 (2004), pp. 39-80.
7 José Geraldo Vinci de Moraes, “Do jornalismo ao livro: itinerários de uma historiografia da música popular no Brasil (anos 1960/70)”, História, n. 39 (2020), pp. 1-30.
8 Ver, respectivamente, Giovanni Levi, “Usos da biografia” in M. M. Ferreira e J. Amado (orgs.), História Oral. Usos e abusos (Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1996), pp. 167-182; Leonardo J. Waisman, “La biografía musical en la era post-neomusicológica”, Revista del Instituto de Investigación Musicológica Carlos Veja, n. 23 (2009), pp. 177-194.
9 François Dosse, O desafio biográfico. Escrever uma vida, São Paulo: EDUSP, 2009.
10 Michel de Certeau, A escrita da história, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
Resenhista
José Geraldo Vinci de Moraes – Universidade de São Paulo. https://orcid.org/0000-0002-0501-2102
Referências desta Resenha
CHOTIL, Mazé Torquato. Maria d’Apparecida. Negroluminosa voz. Esboço biográfico. São Paulo: Editora Alameda, 2020. Resenha de: MORAES, José Geraldo Vinci de. Dilemas entre biografia e música. Afro-Ásia, 66, p. 655-662, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]
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