Perseguir os significados que a Rua Maria Antônia, no distrito da Consolação, adquiriu na vida urbana da cidade de São Paulo desde a sua origem é o principal objetivo do livro Maria Antônia, um retrato além da moldura, de Fernando Santos da Silva (2019). Trata-se de uma produção fruto da pesquisa desenvolvida pelo autor para seu mestrado na Universidade Presbiteriana Mackenzie, e que, transformada em livro, foi publicada em 2019 pela editora Appris.
Já na Introdução, o autor convoca o leitor a pensar sobre a possibilidade de a Rua Maria Antônia ser considerada um lugar de memória. Isso posto, formula a hipótese de que as instituições culturais e educacionais ali implantadas exerceram, em certo sentido, um papel fundamental, transformando-a em uma via urbana que representava a dinâmica da vida intelectual na cidade que se modernizava. Sabe-se que a criação da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Universidade de São Paulo (USP) são desdobramentos dessa relação simbiótica entre cultura e cidade que abre novas perspectivas para a leitura do lugar. Para Silva (2019), a história da Rua Maria Antônia está ligada à memória estudantil como um espaço simbólico de referências a essas duas grandes instituições que vêm formando várias gerações de intelectuais do país.
Além de atribuir à produção historiográfica a inserção da Rua Maria Antônia como um lugar de memória, o autor lembra que a via também é marcada pelos acontecimentos de outubro de 1968, conhecidos como “A Guerra da Rua Maria Antônia”. Ressalte-se que analisar o conflito não é o objetivo específico da obra, e talvez essa seja a razão pela qual seu autor não tece em minúcias sobre sua motivação e consequências. Todavia, o episódio, que preservou seu lugar na história da rua, teve início com a iniciativa de estudantes da USP de cobrarem pedágio de acesso à via para custear a realização de um congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE). Os estudantes do Mackenzie, irritados com a iniciativa, deram início a um confronto que durou dois dias e resultou na morte de um estudante secundarista, no incêndio do prédio da USP por um coquetel molotov e na prisão de dezenas de estudantes.
Silva (2019, p. 26) pondera, todavia, que “[…] tal fato projetou a rua exclusivamente como palco de conflitos e lutas ideológicas, restringindo, assim, seus muitos e amplos significados”. A partir dessa premissa, deixa claro que pretende ir além do evento de 1968 que marcou a história da Rua Maria Antônia, ou seja, não faz um revisionismo sobre o logradouro marcado por um conflito ideológico do passado.
Orientado por esse propósito, é de se destacar o escopo documental do qual se serve: mapas da cidade de São Paulo, decretos municipais, jornais, obras de cunho memorialístico, fotografias e bibliografias. Intermediado pelo tempo do historiador e um método, submete suas fontes a uma análise conceitual, problematiza, faz indagações, delineia personagens, reconstrói fatos e preenche lacunas.
No Capítulo 1, “Pensar a História, a Memória e a Cultura”, com uma linguagem simples, cuidadosa e original, Silva (2019) demonstra maturidade intelectual e rigor científico nas suas análises. Referenciando especialmente teóricos franceses membros da Escola dos Analles, revela sua orientação teórico-metodológica ao trazer a lume Lefebvre (1993), Nora (1993), Bloch (2001) e Le Goff (2003). O autor refaz sua trama de relações e interações entre história e memória, mas, como historiador, lembra o que ensina Bloch (2001): o ser humano é o principal objeto de estudo da história, sendo também estudado o que é proporcionado a partir dele próprio, ou seja, as mudanças que provoca em seu mundo. Estabelece também um diálogo com os sociólogos Fernando de Azevedo (1996) e Terry Eagleton (2011), com o antropólogo Roberto DaMatta (1997) e com os urbanistas Kevin Lynch (1999) e Jane Jacobs (2009).
Silva (2019, p. 45) emprega o conceito de cultura em seu sentido sociológico e antropológico, e, no caso da Rua Maria Antônia, afirma ser o termo duplamente importante em sua análise:
[…] de um lado, por referir-se às práticas culturais diversas, que incluem arte, educação, religião e imaginário; do outro, por fazer referência aos aspectos propriamente característicos de uma sociedade específica, no caso, a sociedade brasileira, a sociedade paulista, com as suas singularidades que se fazem presentes também no espaço da rua.Dessa forma, explicita que “[…] é a cultura que confere identidade ao grupo e é na moldura da cultura que essa conexão se realiza” (SILVA, 2019, p. 46). Portanto, os significados da Rua Maria Antônia são relevantes para a memória dos moradores da cidade de São Paulo como espaço de desenvolvimento no campo da cultura e da educação.
Tal como Lynch (1999), que pesquisou as cidades de Boston, Jersey City e Los Angeles, Silva (2019) vai em busca de um novo olhar sobre a Rua Maria Antônia, pois, à medida que a relação entre indivíduo e lugar alicerça uma identidade ligada à vida prática ou emocional, também o tempo e a história afetam a percepção das pessoas sobre determinados espaços das cidades. Com base nos estudos de Jacobs (2009) sobre planejamento e princípios de reurbanização pautados nas relações econômicas, o autor acentua a necessidade e a importância de serem percebidos os espaços, a vida, as ações desses ambientes como contribuição sociocultural, política e econômica.
Silva (2019) analisa a rua como espaço de conhecimento, de relações entre sujeitos, e que por isso não pode ser vista apenas como um lugar no qual trafegam os transeuntes. A rua pode ser percebida individualmente, com base na bagagem intelectual do sujeito, em suas vivências e pela percepção que tem dos traços arquitetônicos, que podem suscitar as mais variadas interpretações, inspirações e também um rememorar. A rua constitui, portanto, uma porta para o universo das sensibilidades.
O Capítulo 2, “Da Sesmaria ao Logradouro, Origens históricas da Rua Maria Antônia”, tem como principais fontes mapas, gravuras e os primeiros desenhos de uma planta da cidade de São Paulo de 1807, que evidenciam o começo da vida urbana do lugar. Apesar de não se identificarem traçados da Rua Maria Antônia nas representações cartográficas, sabe-se que ela já existia com o nome de Rua Pacaembu.
O autor também faz um mergulho na história da colonização de São Paulo por meio dos escritos de Jorge (2006) sobre a política empregada pelo império português com o sistema de capitanias hereditárias2. A cidade de São Paulo foi construída na faixa de terra denominada Sesmaria do Pacaembu, que foi dividida em três partes, uma das quais, Pacaembu de cima, hoje Higienópolis, foi doada aos padres jesuítas. Vinte anos após a expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pombal, ocorrida em 1759, as terras foram leiloadas e/ou divididas em chácaras partilhadas. Entretanto, com a Lei de Terras de 1850, os terrenos foram adquiridos pela elite paulistana.
Em seus achados de pesquisa, Silva (2019) localizou a Rua Maria Antônia na planta paulistana elaborada em 1890 por Jules Victor André Martin (1832-1906), logo após a Proclamação da República. Entretanto, sua oficialização como logradouro municipal ocorreu somente em 24 de agosto de 1916.
No Capítulo 3, “O Perfil de uma Dama”, Silva (2019) ocupa-se de desvelar o universo de Dona Maria Antônia da Silva Ramos. Ele destaca que várias ruas de São Paulo receberam nomes de mulheres no século XIX, mas que apenas os das três fundadoras do bairro de Higienópolis permaneceram: Dona Maria Antônia, Dona Veridiana e Dona Angélica. O autor acredita que, por serem três mulheres de negócio e da elite paulistana, conseguiram ser bem aceitas pela sociedade patriarcal da época (MODELLI, 2018).
Ao traçar o perfil de Dona Maria Antônia, Silva (2019) oferece uma visão cronológica de sua vida, mas, como pouco se sabe sobre sua infância e adolescência, existem algumas lacunas. Uma dentre os seis filhos de João da Silva Machado, o Barão de Antonina, e de Dona Ana Ubaldina, Maria Antônia teria recebido uma excelente educação para os moldes da época. Casou-se com o tenente-coronel Mariano José da Cunha Ramos, com quem teve dois filhos. Em seus escritos, o autor destaca o seu contato com as ideias do reverendo George Whitehill Chamberlain, fundador da Igreja Presbiteriana do Brasil e da Escola Americana. Tal aproximação levou à conversão de Dona Maria Antônia à religião presbiteriana e seu engajamento com os ideais educacionais da Escola Americana, onde matriculou não apenas seus filhos, mas também a filha de uma de suas escravas (GARCEZ, 2004).
À Junta de Missões Estrangeiras da Igreja Presbiteriana do Norte dos Estados Unidos doou parte de sua propriedade para a ampliação do espaço físico da escola, hoje sede do Instituto Presbiteriano Mackenzie e do Colégio Mackenzie. O autor pontua: “[…] com essa atitude, Dona Maria Antônia da Silva Ramos inscreveu de vez seu nome na história de São Paulo, de um lado, pela implantação de uma importante via pública que leva o seu nome e que nasceu com objetivos educacionais e culturais” (SILVA, 2019, p. 70). Dona Maria Antônia faleceu em 11 de março de 1902, em São Paulo, e foi sepultada no mausoléu do Barão de Antonina no Cemitério da Consolação.
No Capítulo 4, “Os Significados de uma Rua”, a discussão gira em torno da maneira como a historiografia atribuiu significado à Rua Maria Antônia e de apontamentos sobre o campo da memória e das sensibilidades na história, em busca de novos significados para aquela via. Amparado pela acepção de Nora (1993), de que a memória é feita de lembranças e esquecimentos, Silva (2019, p. 79) afirma que “[…] pouco se sabe sobre as origens da Rua Maria Antônia, mas muito se sabe sobre os eventos de outubro de 1968, pois o processo de seleção já foi realizado”. Entretanto, não abre mão do que aprendeu com Lynch (1999), para afirmar que “[…] o espaço ‒ anônimo, neutro, mera extensão física de terra ‒ é transformado, pela intervenção humana, em um lugar que possui identidade, e em torno qual se constrói um conjunto de valores, sentimentos, aos quais se vinculam emoções e lembranças” (p. 79).
Ainda à luz das considerações de Lynch (1999), reconhece desde o início os significados que a rua adquiriu:
[…] de mero espaço, tornou-se, originalmente, chácara de propriedade de dona Maria Antônia, a pessoa que posteriormente, ao vender o terreno para o que seria a Escola Americana, conferiu àquela área um novo significado. Nascia, assim, um novo lugar, que deixava de pertencer a uma única família para integrar o conjunto da sociedade paulistana, na condição de rua, na qual passaram a coexistir a esfera pública e a privada (SILVA, 2019, p. 80).
A criação da Escola Americana, posteriormente Universidade Presbiteriana Mackenzie, e da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCL/USP) atribuiu à Rua Maria Antônia um caráter muito específico de abrigo estudantil e que contava com uma diversidade de eventos culturais e acadêmicos. Em locais adjacentes, foram instaladas as faculdades de Arquitetura e Urbanismo, de Economia e de Administração, todas pertencentes à USP, e também a Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). O autor afirma que as transformações materializadas com a criação dessas instituições propiciaram o surgimento de ambientes de sociabilidades nos arredores da Rua Maria Antônia, tais como bares e cafés, que se tornaram pontos de encontro de artistas, poetas, prosadores, estudantes, professores, jornalistas, filósofos, sociólogos, enfim, da intelectualidade paulistana.
De um modo geral, o movimento intelectual instaurado à época não reproduziu um ritmo sincrônico na história. Segundo Silva (2019), em tempos distintos, a rua foi palco de confrontos, e, além da “Guerra da Maria Antônia”, destaca o protesto de 1958 liderado por estudantes do Mackenzie e secundaristas contra o aumento da tarifa do transporte público, que teve como saldo mais vítimas fatais que o confronto de 1968. O autor também lembra que mais recentemente, em 2013, o aumento da tarifa de ônibus levou estudantes e policiais a se enfrentaram novamente na Rua Maria Antônia, em um embate que, segundo ele, se desviou totalmente da pauta inicial.
Silva (2019) situa alguns trabalhos que contribuíram para consolidar, no imaginário popular, a Rua Maria Antônia como cenário de conflitos, privilegiando os de Cardoso (1996), Santos (1988), Mendes (2000), Garcez (2004) e Amendola (2008). Em geral, todas as obras trouxeram à tona o conflito de 1968, porém, com olhares diferentes e elementos variados sobre o episódio.
Na última parte do capítulo, o autor retoma a história do surgimento da cidade de São Paulo, destaca o papel dos bandeirantes e se estende até a década de 1950, momento de modernização, de avanços urbano-industriais e de mudança do padrão de comportamento. Tais transformações foram materializadas com a criação de diversas instituições e movimentos culturais, tais como o Museu de Arte de São Paulo (MASP), o Museu de Arte Moderna (MAM), o Museu de Arte Contemporânea (MAC) e a Companhia Cinematográfica Vera Cruz.
Entre os embates político-ideológicos daquela época, o autor lembra a polarização política entre o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), que defendia uma política estatizante e nacionalista e o crescimento econômico do país, e aqueles que se manifestavam a favor do liberalismo econômico e da instauração de um Estado mínimo. Já a influência do Partido Comunista do Brasil (PCB) sobre intelectuais e artistas provocou, segundo ele, uma verdadeira renovação da dramaturgia nacional. Como exemplo, cita a peça de teatro “Eles não usam black-tie” (1958), de Gianfrancesco Guarnieri ‒ que narra o cotidiano de uma família operária em período de greve ‒ e seu acolhimento pelo meio intelectual da classe média e estudantes.
O autor lembra, ainda, que acontecimentos externos contribuíram não só para fazer aflorar mas também para implementar o aparato repressivo militar instaurado após 1964. O movimento de contracultura surgido em 1968 nos Estados Unidos levou uma multidão de jovens de vários outros países a protestar contra qualquer tipo de autoridade. No Brasil, a agitação estudantil começou no Rio de Janeiro com o protesto de trezentos jovens contra o preço e a péssima qualidade do alimento servido no restaurante central dos estudantes, resultando na morte do estudante Edson Luís de Lima Souto por policiais militares. A repercussão de sua morte transformou o seu enterro em ato político organizado pelos movimentos estudantis e coordenados por dissidentes do PCB, que, posteriormente, se transformaria em várias organizações guerrilheiras pela luta armada no confronto contra o regime militar, o que resultou na edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5), momento de maior repressão no país. Para Silva (2019), tanto a guerrilha armada quanto o Comando de Caça aos Comunistas devem ser levados em consideração na análise dos eventos da Rua Maria Antônia em outubro de 1968.
No Capítulo 5, “Velhos Espaços, Novos Olhares”, Silva (2019) retorna aos anos de 1950 e 1960, período em que a Rua Maria Antônia atinge seu auge, para reforçar que cultura e educação não são elementos dissociados, alheios ao contraditório, e que os acontecimentos ali registrados vão além daqueles ocorridos em 1968. Para tanto, concentra-se no nos depoimentos colhidos por Santos (1988), dentre os quais o de José Rodrigues, proprietário do Bar do Zé, destacado como ponto de encontro da juventude engajada e interessada nos problemas sociais do país, e o do escritor e crítico literário Antônio Candido. Silva (2019, p. 108) pontua: “[…] o que talvez o senhor José Rodrigues não soubesse é que seu bar era considerado uma espécie de ‘sede informal do movimento estudantil brasileiro’, uma extensão da FFCL, como destacou um dos líderes desse movimento, José Dirceu”. Sobre Candido, afirma que “[…] para o crítico literário […] ficou o estigma de uma ‘polarização entre a direita Mackenzista’ governista e conservadora e a esquerda uspiana, subversiva e desordeira” (p. 114).
Na segunda parte do capítulo, o autor retoma mais uma vez o conflito de 1968 entre estudantes mackenzistas e uspianos, que para ele estava consolidado em análises historiográficas pautadas na “[…] vivência em suas instituições, e não no movimento estudantil que atuava em paralelo, muitas vezes, na contramão do posicionamento político adotado por suas instituições” (SILVA, 2019, p. 86). Contrapondo-se a essas análises, afirma que não havia uma mobilização estudantil na Universidade Mackenzie supostamente hegemonizada por grupos de extrema-direita e composta por estudantes da burguesia paulistana. O autor aventa, entretanto, que a visão de polarização poderia ser uma decorrência da relação com os acontecimentos de 2013, “[…] beirando a um anacronismo que desvaloriza os vários significados da Rua Maria Antônia, marcado pela riqueza de aspectos educacionais e culturais” (p. 115).
Apesar de no fim da década de 2000 a Universidade de São Paulo e a Universidade Presbiteriana Mackenzie terem implementado, juntas, projetos na Rua Maria Antônia (EXAME, 2008), Silva (2019) pondera que esses não foram suficientes para encobrir as marcas de decadência da via, uma vez que os problemas estruturais permaneceram. Conforme o autor, muitos bares da vizinhança que vicejaram no período de 1950 a 1960 desapareceram, restando alguns poucos que resistiram ao tempo e à concorrência com estabelecimentos mais sofisticados. O público, por sua vez, também se tornou mais exigente, o que fez com que o empresariado do ramo investisse no local.
Atualmente, aponta Silva (2019), o que se vê na Rua Maria Antônia são os chamados “pancadões”, realizados todas as sextas-feiras próximo ao Mackenzie (NETO, 2018). O autor constata que o cenário político e cultural na contemporaneidade é marcado pelo prazer da diversão e cita trecho da matéria do jornalista Leão Serva (2018, online) publicada no jornal Folha de S. Paulo: “Quem anda pela rua vê que atualmente a única disputa intensa é entre as marcas de cerveja. Os bares sempre lotados desconhecem divisões ideológicas”.
Mas mesmo reconhecendo a decadência da Rua Maria Antônia, à qual se soma a transferência da FFCL para o campus da USP no Butantã, Silva (2019) acredita que a instalação do Centro Universitário Maria Antônia no antigo prédio onde funcionava a faculdade é uma mostra de que os significados originais da rua não se perderam. Para ele, a revitalização do antigo prédio “[…] contribuiu para ampliar os significados da rua, que passou a contar com um núcleo multidisciplinar de intensa atividade, no qual são realizadas as mais variadas práticas acadêmicas, culturais, científicas de ensino” (p. 124). Ciente de que os espaços urbanos pulsam e que nesse movimento constituem preciosos universos culturais em meio aos quais emergem histórias e memórias (individuais e coletivas), Silva (2019) sinaliza para elementos que justificam seus significados, dentre os quais o fato de a via tornar-se um lugar pensado para ser um espaço de cultura e educação.
O autor conclui o livro destacando que, por ter sido um espaço onde instalaram-se instituições científicas educacionais (USP e Mackenzie), lá formou-se uma geração de intelectuais que durante as décadas de 1950 e 1960 assistia a uma onda desenvolvimentista no país, em função do processo de industrialização em curso e do diálogo intenso dos paulistanos em torno das renovações culturais no espaço urbano. Sob forte influência de movimentos sociais vindos de fora do país e cientes dos problemas estruturais da sociedade brasileira, esses jovens fizeram das universidades, dos bares e dos cafés da Rua Maria Antônia palco de reflexões, debates e namoros.
Nesse universo, segundo Silva (2019), emergiu um leque amplo de iniciativas, lutas sociais, políticas e culturais, denotando que a Rua Maria Antônia, como território urbano da cidade de São Paulo, tornou-se solo fértil para a cultura e a educação que ali brotaram, uma espécie de “[…] centro nevrálgico do movimento estudantil e nascedouro da Música Popular Brasileira” (p. 126). Por conseguinte, a Rua Maria Antônia continua sendo palco de lutas sociais, apesar de comportar novos empreendimentos e uma realidade própria da pós-modernidade e, como se nota, permeados por valores e costumes do espírito de seu tempo.
“A Rua Maria Antônia: um retrato além da moldura” é uma notável contribuição para o entendimento das condições políticas, sociais e institucionais do país durante as décadas de 1950 e 1960, anos de grandes transformações no Brasil e no mundo, sobretudo no campo sociocultural e político. Assim, a obra apresenta-se como uma grande referência para pesquisadores que trabalham com a temática cidades no âmbito da história, da sociologia e da arquitetura, dentre outros. Nas últimas décadas, com o advento da história cultural, os espaços urbanos têm sido o lugar privilegiado de discussões. Nesse novo cenário de renovações epistemológicas, formas e tempos da cidade são entendidos em suas diferentes manifestações, enquanto os conceitos de representação, memória e imaginário assumem relevância como objetos de análise e interpretação de variadas realidades espaciais.
Nessa perspectiva, a tarefa de apresentar a resenha do livro “Maria Antônia, um retrato além da moldura”, de Fernando Santos da Silva, consiste em tornar visível o olhar sensível do geógrafo, historiador e educador para aquela que se conhece como uma das vias menos importantes da cidade de São Paulo. Com seu espírito inquieto e focado em alcançar espaços ainda poucos explorados, mas nem por isso olvidáveis, Silva (2019) faz um diálogo interdisciplinar com várias áreas das humanidades para uma compreensão abrangente de seu objeto, abarcando as relações entre passado e presente, os conceitos de memória, história e cultura, e o dinamismo da vida urbana, transformando e reinventando significados do espaço urbano que se formou na Rua Maria Antônia, como um importante lócus de cultura para a cidade de São Paulo
O que parece predominar em suas reflexões é o dinamismo da escrita historiográfica, que trata com astúcia a história desse logradouro desde os seus primórdios, com suas várias personagens, importantes ou secundárias. De um lado, protagonistas, personagens lendárias, como é o caso das três senhoras fundadoras do bairro de Higienópolis e das ruas que levam seus nomes: Maria Antônia, Maria Angélica e Veridiana, e de outro, pessoas que se diluem em categorias sociais simples.
Nota
2 Terras pertencentes à Coroa portuguesa nas Américas, foram divididas em faixas territoriais que iam do litoral da América portuguesa ao Meridiano de Tordesilhas.
Referências
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SILVA, Fernando Santos da. Maria Antônia, um retrato além da moldura. Curitiba: Appris Editora, 2019.
Resenhista
Jacqueline Siqueira Vigário – Doutora em História pela Universidade Federal de Goiás, com sanduíche na Università Degli Studi di Genova, Itália. Integra o Grupo de Estudos de História e Imagem (GEHIM – UFG/CNPq), no qual desenvolve pesquisa sobre artistas italianos no Brasil e sobre a história da arte no Centro-Oeste. E-mail: vigario.jacqueline@gmail.com
Referências desta Resenha
SILVA, Fernando Santos da. Maria Antônia, um retrato além da moldura. Curitiba: Appris Editora, 2019. Resenha de: VIGÁRIO, Jacqueline Siqueira. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Uberlândia, v. 18, n. 1, p. 540- 550, Jan./Jun. 2021. Acessar publicação original [DR]
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